sexta-feira, 30 de setembro de 2016

“Páginas Recolhidas” – Machado de Assis

“Páginas Recolhidas” – Machado de Assis



Resenha Livro - “Páginas Recolhidas” – Machado de Assis – Ed. Globo

“SERMÃO DO DIABO

(....)

16º Igualmente ouviste o que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao Senhor os teus Juramentos.

17º Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade, nua e crua, além de indecente, é dura de roer; mas jurai sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou, todos acenderão velas”.

É consensual dentro da crítica literária a opinião segundo a qual Machado de Assis foi um dos maiores escritores das letras brasileiros. Muitos não sem razão consideram-no o maior de todos.

Machado de Assis transitou por todos os gêneros literários: sua primeira obra literária denomina-se “Crisálidas” (1864) e foi livro de poesia. Escreveu contos, romances, peças de teatros e crônicas de jornal. Mas é seguro dizer que foi no romance e nos contos donde  Machado de Assis galgou a posição de um artista com uma vocação universal. O que é uma arte com vocação universal? Trata-se da arte que perdura ao longo do tempo, que é capaz de tocar intimamente o homem numa dimensão tal que faz com o romance, a pintura, a escultura, o conto, etc., tenha a mesma vocação de dialogar com pessoas em diferentes lugares e momentos da história. Machado de Assis é motivo de orgulho para todos os brasileiros e pode certeiramente ser equiparados a outros escritores fora do Brasil com vocação universal como Dostoiévski ou Tolstói, para remetermos a dois exemplos de escritores russos.

É conhecida a divisão da obra machadiana em duas grandes fases. Uma primeira fase situa-se na chamada 3ª fase do Romantismo Brasileiro. São deste período romances mais folhetinescos[1], voltados à abordagem de costumes (e não propriamente à crítica sutil e irônica de costumes do realismo literário) referentes ao panorama social do Rio de Janeiro. São desta fase romances como Helena[2] (1876), a Mão e a Luva[3] (1874) e Ressurreição[4] (1872).

É comum escutar certa opinião segundo a qual os romances da 1ª fase de Machado de Assis teriam um valor menor. Aqui há de se ter um certo cuidado. É certo que com o advento de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) há um salto qualitativo na obra do autor e Machado de Assis inaugura na literatura brasileira o realismo literário. Mas seus romances de primeira fase ainda que não possuam a aguda análise psicológica, a arguta e fina ironia que resvala frequentemente numa sagaz crítica social, ainda assim, os romances românticos de Machado de Assis já têm um brilho peculiar do autor: o estilo refinado com que descreve personagens e ambientes já se observa nos romances de folhetim; aqueles romances têm o enorme interesse histórico para se adentrar aos costumes, ao meio burguês de uma sociedade agrário-exportadora que buscava referências culturais, artísticas e estéticas em França, conquanto convivia com a contradição da escravidão no fundo do quintal ou mesmo dentro de casa.

Será como, dissemos, com o advento de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e com a perspicaz ideia de um narrador defunto (ou de um defunto narrador) que se concretiza o projeto do realismo literário: o fato de Brás Cubas narrar suas memórias após sua morte livra-o de toda e qualquer vacilação, constrangimento e preocupação em face dos julgamento dos vivos. Isto propicia uma narração totalmente franca junto ao leitor, incluindo momentos e passagens de vida temerárias do próprio Brás Cubas que o confessa sem qualquer pudor, na própria condição de defunto autor.

E chegamos finalmente à presente obra. “Páginas Recolhidas” (1899) são, conforme o prefácio do próprio autor, “contos e novelas, figuras que vi ou imaginei, ou simples ideias que me deu à cabeça reduzir à linguagem”. O humor, a ironia, o desencontro no amor, o desencanto e um certo pessimismo fazem com que esta coletânea se situe na segunda fase, a fase do realismo literário.

Tomamos como exemplo o conto “Lágrimas de Xerxes”. Xerxes foi um cruel imperador persa. Certo dia, caiu-lhe a ficha de que as multidões sobre quem governava, “que ali tinha diante de si às suas ordens, não existiria(m) um só ao cabo de um século”. A Lua propõe que as lágrimas do imperador se configurem numa estrela da paixão. Prevalece todavia a opinião do Sol que fará das lágrimas de Xerxes um monumento do sarcasmo – observa-se aqui uma clara alusão ao trágico-cômico, algo que remonta corriqueiramente aos romances realistas e que dizem respeito de uma catarse (purgação) que envolve o riso do trágico.

“FREI LOURENÇO- Não, porque os ventos foram também ao sol, e tu que conheces a lua, não conheces o sol, amiga minha. Os ventos levaram-lhe as lágrimas, contaram a origem delas e o conselho do astro da noite, e falaram da beleza que teria essa estrela nova e especial. O sol ouviu-os e redarguiu que sim, que cristalizassem as lágrimas e fizessem delas uma estrela; mas nem tal como pedia a lua, nem para igual fim. Há de ser eterna e brilhante, disse ele, mas para a compaixão basta a mesma lua com a sua enjoada e dulcíssima poesia. Não; essa estrela feita de lágrimas que a brevidade da vida arrancou um dia ao orgulho humano ficará pendente do céu como astro da ironia, luzirá cá de cima sobre todas as multidões que passam, cuidando não acabar mais e sobre todas as cousas construídas em desafio dos tempos. Onde as bodas cantarem a eternidade, ela fará descer um dos seus raios, lágrima de Xerxes, para escrever a palavra extinção, breve, total, irremissível. Não quero melancolias, que são rosas pálidas da lua e suas congêneres; - ironia, sim, uma dura boca, gelada e sardônica”.

Certamente, esta compilação deverá atrair a atenção do historiador. Além de contos, há o “A Estátua de Alencar”, discurso proferido por ocasião do lançamento da primeira pedra da estátua de Alencar – desde lá, Machado de Assis revela sua admiração pelo autor de “Iracema” para quem olhava quando jovem como quem via Napoleão Bonaparte. Posteriormente, os escritores tornaram-se íntimos com encontros na histórica livraria Garnier; há relatos da experiência de Machado de Assis como redator do “Diário do Rio” informando notícias do Senado, descrevendo grandes e diminutos personagens; e há mesmo uma poética crônica acerca dos acontecimentos da Guerra de Canudos, que Machado de Assis equipara a uma espécie de guerra de corsários, in verbis:

“Crede-me, esse Conselheiro que está em Canudos com seus dous mil homens, não é o que dizem telegramas e papeis públicos. Imaginai uma legião de aventureiros galantes, audazes, sem ofício nem benefício, que detestam o calendário, os relógios, os impostos, as reverências, tudo o que obriga, alinha e apruma. São homens fartos desta vida pacata, os mesmos dias, as mesmas caras, os mesmos acontecimentos, os mesmos delitos, as mesmas virtudes. Não podem que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro do ponto, hora de entrada e saída, e desconto por faltas. O próprio amor é regulado por lei; os consórcios celebram-se por um regulamento em casa de pretor, e por um ritual na casa de Deus, tudo com etiqueta dos carros e casacas, palavras simbólicas, gestos de convenção. Nem a morte escapa à regulamentação universal; o finado há de ter velas e responsos, um caixão fechado, um carro que o leve, uma sepultura numerada, como a casa em que viveu...

Não, por Satanás! Os partidários do Conselheiros lembram-se dos piratas românticos, sacudiram as sandálias à porta da civilização e saíram à vida livre.” (Canção de Piratas – 1894 – Julho).

Já foi dito que a literatura é o retrato da sociedade. Tal tese tem especial validade para Machado de Assis. O escritor fluminense foi um arguto observador da sociedade de seu tempo. Soube observar contradições e por isso é relevante lê-lo com atenção. Esta última observação é válida particularmente para os marxistas brasileiros.  






[1] O folhetim tem origem no jornalismo francês e remete a uma forma de fazer romances cadenciado pela ritmo das publicações jornalísticas. Lembramos que Machado de Assis veio de origem modesta, começou como aprendiz de tipógrafo da Imprensa Nacional. Protegido por Manuel Antônio de Almeida, foi incentivado a prosseguir uma carreira literária que teve início no jornalismo.
[3] Ver Resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2015/06/a-mao-e-luva-machado-de-assis.html

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

"Advertência aos Leitores do Livro I do Capital" - L. Althusser

Resenha – “Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital” – Louis Althusser – O Capital – Karl Marx - Livro I – Ed. Boitempo



“Daí um primeiro conselho de leitura: ter sempre em mente que “O capital” é uma obra de teoria cujo objeto  são os mecanismos do modo de produção capitalista e apenas dele.

Daí um segundo conselho de leitura: não buscar no “Capital” um livro de história “concreta” ou um livro de economia política “empírica”, no sentido em que os historiadores e os economistas entendem esses termos, mas um livro de teoria  que analisa o modo de produção capitalista. A história (concreta) e a economia (empírica) têm outros objetos.

Daí este terceiro conselho de leitura: ao encontrar uma dificuldade de leitura de ordem teórica, levar isso em consideração e tomar as medidas necessárias. Não se apressar, mas sim, voltar para trás, cuidadosa e lentamente, e não avançar até que as coisas estejam claras. Ter em conta que a aprendizagem da teoria é indispensável para ler uma obra teórica. Entender que é andando que se aprende a andar, desde que as condições citadas sejam escrupulosamente respeitadas. Entender que não se aprende a andar na teoria logo na primeira tentativa, súbita e definitivamente, mas pouco a pouco, com paciência e humildade. Esse é o preço do sucesso” ALTHUSSER, Louis.
               
               
A publicação do Volume I do Capital pela editora Boitempo significa uma revolução não só especificamente dentro do mercado editorial mas em face da história das ideias políticas do Brasil. Até então, o público brasileiro contava com edições do “Capital V.I ” da Civilização Brasileira, da Abril Cultural e outras versões fragmentadas associadas a iniciativas do Partido Comunista Brasileiro (Editora Vitória).

A nova edição da Boitempo envolveu um vasto trabalho de tradução (direto do alemão) de autoria de Rubens Enderle e uma revisão com uma equipe de intelectuais de peso: Marcio Bilharino Naves, Lincoln Secco, Emir Sader, dentre outros. A edição da Boitempo conta com três artigos introdutórios: um de autoria do historiador Jacob Gorender, uma reflexão de viés econômico de autoria de José Arthur Giannotti e um pequeno e interessante artigo do pensador marxista francês L. Althusser.

Estão também disponíveis ao leitor diferentes prefácios e posfácios de edições alemãs, inglesas e francesas redigidos por Marx e Engels.

Como se sabe, o “Capital” demarca a obra de maturidade de Marx, o último e derradeiro livro de sua vida. O autor iniciou a redação do primeiro volume em 1850 e publicou em vida apenas o primeiro volume em Setembro de 1867. Marx tinha a expectativa de publicar outros três volumes da obra, mas falece em 1883. Engels toma iniciativa de organizar os manuscritos da forma mais fidedigna possível aos originais – considerando problemas que vão desde lacunas até as dificuldades de caligrafia – Engels publica os volumes II e III do Capital. Em 1905, Kautsky publica o volume IV do Capital que originariamente foi pensado por Marx como tendo por escopo uma discussão sobre as diferentes escolas de economia política.

Althusser aponta duas grandes dificuldades para a compreensão do “Capital”. Há a dificuldade política que deverá atingir especialmente os intelectuais. Ainda que o livro tenha um caráter teórico, o “Capital” aborda questões concretas, que se expressam de forma real e cotidiana na vida do trabalhador, que sente a exploração do trabalho em seu cotidiano. Nestes termos, a dificuldade política é a do intelectual – via de regra mais ou menos influenciado pela ideologia da classe dominante  - e menos do trabalhador que, por sua posição social, deverá se identificar pela prática com os enunciados teóricos. Todavia, Althusser chama atenção também para a dificuldade teórica. 

Por se tratar de uma obra de teoria “pura”, com a existência de abstrações, haverá dificuldades de entendimento, aqui indistintamente para trabalhadores e intelectuais. Todavia, diz Althusser:

“Faço isso para evidenciar um fato ainda mais paradoxal do que o precedente: mesmo indivíduos sem prática com textos teóricos (como operários) experimentaram menos dificuldades diante d’O Capital do que indivíduos habituados à prática da teoria pura (como eruditos ou psudoeruditos muito “cultos”).”

Ainda dentre as recomendações para a leitura do “Capital”, Althusser sugere que o leitor pule a “Seção I (Mercadoria e Dinheiro)” e inicie a leitura a partir da “Seção II (A Transformação do Dinheiro em Capital)”, para apenas ao final da leitura da obra, voltar-se aos capítulos iniciais.

Tal recomendação tem caráter didático: Marx inicia o “Capital” abordando o conceito da mercadoria em passagens mais abstratas e complexas, o que, segundo Althusser, via de regra, implica ora no não entendimento ou pior, no não entendimento que se arroga haver compreendido alguma coisa. Sabe-se que Marx ao iniciar a redação do Capital, começou e recomeçou a reescrever o livro diversas vezes. E o fato do livro logo no início tratar da mercadoria, ou ter como ponto de partida o tema da mais alta abstração não é gratuito.

Pode-se observar aqui um procedimento do tipo hegeliano que parte do abstrato (a mercadoria – capítulo I) ao concreto (“a assim chamada acumulação primitiva” - capítulo 24).

Assim, nas passagens iniciais, são discutidos conceitos como o Valor de Uso (a utilidade das coisas); a ideia de que um bem só possui valor porque nele se objetiva trabalho humano; o Valor da Mercadoria que é proporcional ao tempo socialmente necessário requerido para produzir (trabalho) em condições normais; a Mercadoria que está sempre relacionada à troca, sendo um produto cujo destinatário utilizará a mesma como valor de uso; o fetiche da mercadoria, um encantamento ou feitiço promovido pelo produto cuja validade incrivelmente pode ser constatada nos dias de hoje, quando observamos o poder do celular ou a manipulação das propagandas voltadas ao consumo. 

Desde este ponto de partida “abstrato” (no sentido de teórico), Marx chegará no “assim chamada acumulação primitiva”, donde se volta para a história da conformação do capitalismo, descrevendo a formação de um exército de reserva de mão de obras na Inglaterra a partir da expulsão de camponeses por meio de iniciativas oficiais e extralegais marcadas pela violência brutal.

De maneira geral, o Capital volta-se para o estudo do modo de produção capitalista – Marx está em busca de leis tendenciais (não ocasionais) do capitalismo. A diretriz geral que marca a descoberta do Capital remonta ao processo de acumulação. Poderíamos vulgarmente falar que a lei que impera na sociedade capitalista é a busca incessante pelo lucro (e reiteramos que utilizamos aqui uma linguagem vulgar, apenas a título de ilustração).

O Capital e Marx têm o mesmo peso científico nas ciências humanas segundo Althusser que Galileu na Física e os Gregos na Matemática. Trata-se portanto de uma leitura obrigatória, mesmo para adversários dos posicionamentos políticos de Marx.  


quarta-feira, 21 de setembro de 2016

“Utopia e Direito” – Alysson Leandro Mascaro

“Utopia e Direito” – Alysson Leandro Mascaro



Resenha Livro – 238- “Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia” – Ed. Quartier Latin

“Na utopia concreta marxista, a energia utópica exerce uma função crítica. A determinação de objetivos ideias (e necessariamente abstratos) para impulsos se conjuga para o conhecimento das tendências objetivas; sem utopia, o marxismo perderia ele mesmo sua atenção às tendências. A função da utopia vai mesmo mais longe: a conjunção do que há de “futuro no passado” com o conhecimento do presente transfigura e ultrapassa dialeticamente as próprias tendências. A utopia concreta, o marxismo, se define por três momentos: análise, crítica, projeto”. RAULET, Gerard. Utopie – Marxisme selon Ernst Bloch. Payot. Paris, 1976. P. 302.


Alysson Leandro Mascaro é Doutor e Livre Docente em Filosofia e Teoria Geral em Direito pela Faculdade de Direito da USP, onde também leciona disciplinas de filosofia da graduação. É um dos principais expoentes do pensamento crítico do Direito do país. Dentro das divisas propostas pelo próprio autor no que se refere às grandes linhas mestras do pensamento jusfilosófico contemporâneo, podemos destacar:

(i) As correntes juspositivistas, que detém maior peso no âmbito acadêmico e prático e que dizem respeito a certa noção do direito que equipara o justo com o direito posto, com a norma estatal. O juspositivismo propugna em última instância uma perspectiva formalista do direito, axiologicamente neutro e que tem como denominador comum o pensamento de Hans Kelsen e sua simbólica obra intitulada “Teoria Pura do Direito”.

(ii) As correntes não juspositivistas, que estão fora da orientação formalista e admitem portanto interfaces entre o fenômeno jurídico e a economia, a política e a sociedade, mas são genéricas e difusas em suas abordagens, ao ponto de agregar desde a concepção da microfísica do poder de Foucault ao decisionismo de Carl Smitt, este último reconhecido por sua inclinação junto ao nazismo.

(iii) As correntes críticas do direito que tem como origem ou denominador comum a crítica da economia política de Marx e que seria, do ponto de vista jurídico, melhor equacionado em termos de equiparação entre a forma mercantil e a forma jurídica a partir da obra do pensador soviética Pashukanis, aquela talvez mais fiel às categorias teórico-metodológicas do “Capital”. 

Segundo Mascaro, são as correntes críticas aquelas que dão o melhor alcance para um mais profundo esclarecimento do fenômeno jurídico.

“Utopia e Direito” é a tese com a qual Alysson Mascaro obteve a Livre-Docência em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. O estudo está voltado à reflexão sobre o problema da Utopia, fazendo um inventário sobre a evolução histórica da apropriação do conceito, a recepção da noção de Utopia e sua recepção no seio do Marxismo.

A partir daqui exsurge o desenvolvimento original das reflexões de um marxista talvez não muito conhecido pelo público brasileiro, Ernst Bloch. Este alemão que viveu ao longo do século XX faz uma original apropriação do conceito da Utopia e desde aqui traz inovações interessantes para reflexões acerca da teoria da transição socialista, do problema do sentidos da história, da subjetividade e dos limites e deficiências do marxismo em dialogar com trabalhadores e povo ao negligenciar temas como o da esperança, a questão da “não contemporaneidade” e o não entendimento do embaralhamento da história.

Incialmente, a Utopia foi concebida por autores como Thomas More  (“Utopia”) ou Tomasso Campanella (“A Cidade do Sol”) no âmbito da Idade Moderna como projetos societários ideais.  A utopia é o não lugar e está fora da história: a Utopia de More é uma ilha onde não existe propriedade privada nem dinheiro, um paraíso onde não existem desigualdades. A própria palavra Utopia remete a sua intangibilidade: “ou” (não) e “topos” (lugar).

Posteriormente, dentro do marxismo, o conceito de Utopia receberia uma conotação negativa. É bastante conhecida a distinção feita por Marx e Engels entre o “Socialismo Utópico” e o “Socialismo Científico”. O que falta aos primeiros é a crítica da economia política marxista: a ausência de percepção acerca da determinação do modo de produção em cada período histórico sobre as demais esferas da vida social (estado, cultura, direito, religião, etc.); a propriedade dos meios de produção pela burguesia, a extração de mais valor e a centralidade da classe trabalhadora como sujeito de projeto de ruptura anticapitalista; o entrechoque entre as forças produtivas e o modo de produção como condição objetiva para os momentos de ruptura revolucionária; a cada vez mais nítida polarização da sociedade em classes distintas, trabalhadores e detentores do capital.

A ausência deste arcabouço teórico e de uma crítica materialista histórica e dialética da economia política tem como resultado dentre os socialistas utópicos (Owen, Proudhon, Fourier, etc.) projetos políticos com intenções igualitaristas mas que conciliam junto a propriedade privada, a sociedade cindida em classes e a situação de dominação de classes da burguesia imbricando via de regra em suas propostas com suposta repartição igualitária de riquezas em fracassos. Seja na fundações de colônias de trabalhos como em Owen (que culminou em fracasso) seja numa perspectiva de vanguardismo desprovido de base social e de classe em Blanqui (que esteve bastante presente no pensamento por de trás da Comuna de Paris), o sentido da Utopia aqui foi de ilusão, fuga da realidade e derrotas.

Ernst Bloch, judeu, alemão emigrado em face do nazismo, e marxista, irá retomar o problema da Utopia sob uma nova perspectiva, desta vez positiva. De início o autor faz uma diferenciação entre a Utopia Idealista (o “não lugar” que remete à “Utopia” de Thomas Morus) e a Utopia Concreta.

A Utopia Concreta estaria vinculada ao projeto do socialismo. O Socialismo é uma “utopia” pois tal sociedade ainda não existe. Mas também é “concreta” pois tal sociedade já é uma possibilidade real. De maneira ousada, Ernst Bloch envolve o Marxismo junto ao problema do presente e do futuro, algo que o próprio Marx fez de maneira muito parcimoniosa, por exemplo em sua “Crítica do Programa de Gotha” – De cada qual segundo suas capacidades, a cada qual segundo suas necessidades, seriam as divisas da futura sociedade comunista.

Importante destacar que a Utopia Concreta em Bloch, ao confrontar as delimitações entre presente e futuro, envolve aquilo que historiadores discutem como filosofia ou metodologia da História. Bloch utilizará o conceito de “Não-Contemporaneidade”. Ao contrário de toda uma tradição que remete desde o iluminismo, Bloch argumenta que a história não é linear. A história é aberta e sobreposta. E mais: a história é um somatório contraditório de demandas e necessidades não resolvidas o que justamente dá margem para a ideia da Utopia que nada mais é do que uma dialética antecipadora. Tais cogitações teriam o condão de explicar não só as razões da ascensão do nazismo na Alemanha, mas do porquê da derrota dos comunistas naquele país:

“Bloch aponta a falência da política marxista justamente na falta de compreensão desta não contemporaneidade dos explorados alemães. Eles eram explorados pelos argumentos do dinheiro, e o marxismo lhes apresentava, nos comícios, explicações econômicas a respeito do capital! O nazismo, sem seus comícios, falava dos sonhos de uma vida comunitária – nacional – liberta dos judeus mercenários, dos marxistas contabilistas, dos avarentos burgueses. O nazismo falsificava, mas ganhava corações. O marxismo apostava na ciência e no esclarecimento, mas não falava às almas dos proletários”.

Boas páginas da dissertação do professor Mascaro serão dedicados à Utopia Jurídica de Bloch. Trata-se aqui fundamentalmente da busca da dignidade humana, que se fundamenta num estudo específico sobre o Direito desde a obra “Direito Natural e Dignidade Humana” (1961). Há interfaces importantes entre o pensamento de Bloch e Pashukanis, mas o que se destaca dentro do autor alemão é justamente a ideia de herança: desde o acontecimento da Revolução Francesa, a burguesia não foi capaz de concretizar efetivamente suas palavras de ordem, igualdade, liberdade e fraternidade. Ao invés de abandonar os princípios jurídicos e rotulá-los como meras formas ideológicas de legitimação da dominação burguesa, Bloch segue um caminho oposto. Abandonar sim a lei, mas não o princípio da justiça e da dignidade humana que se concretiza no socialismo.


O que importa destacar é que o autor Ernst Bloch não parece ter a mesma reputação que outros grandes expoentes do marxismo, ao menos no Brasil, em que pese o mesmo ter escrito sobre temas tão diversos como a arte, a religião e o direito. Alguns de seus pontos merecem ser colocados em dúvida como o excessivo papel colocado na conta da religião e da moral como elementos associados à luta pela transformação anticapitalista. Outros pontos merecem uma leitura bastante atenta: o conceito da “não contemporaneidade” e sua geometria da história remetem à interpretação que Lênin deu ao desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo da Rússia a seu tempo e serviu como uma contribuição bastante original para o entendimento da derrocada da República de Weimar na Alemanha. Chegou o momento de editoras do Brasil como a Expressão Popular e a Boitempo publicarem as obras de Ernst Bloch.       

terça-feira, 13 de setembro de 2016

“Padre Sérgio” – Liev Tolstoi

“Padre Sérgio” – Liev Tolstoi



Resenha Livro - 237 - “Padre Sérgio” – Liev Tolstói – Ed. Cosac Naify

“Acredito no seguinte: acredito no Deus que entendo como espírito, como amor, como começo de tudo. Acredito que ele esteja em mim e eu, nele. Acredito que a vontade de Deus está expressa da forma mais clara e mais compreensível no ensinamento de Cristo homem, mas considero o maior sacrilégio tomá-lo por Deus e dirigir-lhe orações. Acredito que o verdadeiro bem do homem é o cumprimento da vontade de Deus, a vontade de que as pessoas se amem umas às outras e em consequência ajam umas com as outras como gostariam que agissem consigo próprias, como foi dito no Evangelho, que é a única lei, ao lado dos profetas. Acredito que a vida de cada homem só tem sentido, portanto, na ampliação do amor; que essa ampliação do amor conduz cada homem a um bem cada vez maior nesta vida, concede após a morte um bem tanto maior quanto maior for o seu amor, e ao mesmo tempo contribui para o estabelecimento do reino de Deus neste mundo, isto é, daquele sistema de vida no qual as discórdias, embustes e violências agora reinantes serão substituídas pela livre concórdia, pelo amor verdadeiro e fraternal entre as pessoas”. Liev Tolstói. “Resposta à Resolução do Sínodo de 20-22 de Fevereiro de 1901 e às Cartas Recebidas Nessa Ocasião”.

“Padre Sérgio” é uma pequena narrativa escrita pelo romancista russo Liev Tolstói em 1890 e publicada em 1898. Estamos diante de um contexto em que Tolstói já gozava de plena reputação como escritor após a publicação dos seus mais famosos romances, Ana Karenina (1875-1877) e Guerra e Paz (1865-1869).

Podemos falar aqui de uma fase tardia da produção artística deste grande escritor russo. Sabe-se que por volta de 1870, Tolstói teve uma espécie de crise religiosa, uma experiência íntima a partir da qual o escritor refugiou-se numa espécie de casa de campo – a Yasnaya Polyana – onde se dedicaria a uma vida ascética. Após uma espécie de conversão, Tolstói parou de beber, fumar e passou a viver a vida conforme preceitos cristãos. Abriu escola para camponeses, estudou com afinco o cristianismo e a história de Santos.

“Padre Sérgio” refere-se portanto a este último período de vida de Tolstoi. Alguns críticos veriam nesta obra algo como uma iniciativa panfletária, consoante as ideias originais do escritor sobre o cristianismo – que logo estariam em contradição em face da Igreja Ortodoxa Russa ao ponto de Tolstói ser excomungado. Mas tal interpretação deste denso e belo texto ficcional não parece ser uma boa interpretação de “Padre Sérgio”. Se esta novela[1] fosse uma mera obra panfletária reduzida a um alcance religioso, seria uma obra datada e que, de resto, serviria apenas como fonte para a curiosidade histórica de leitores dedicados especificamente à obra de Tolstói. Certamente, não é o caso.

Em incríveis 60 e poucas páginas, um leitor do século XXI, mesmo não envolvido em questões religiosas, deve ser tocado pela história de um brilhante comandante do esquadrão de honra, com um futuro brilhante como ajudante de campo do czar, às vésperas de um casamento com uma bela dama de honra protegida pelo imperador, que rompe com o noivado, entrega seus rendimentos à irmã e parte de forma definitiva ao monastério.

Trata-se de uma obra densa, concentrada, em que a objetividade e um certo realismo formal se condensam em passagens que abrem enormes possibilidades de reflexão sobre a condição humana, e, em particular, sobre o fato de o ser humano estar sempre eivado de contradições – as hesitações, a culpa ou o remorso do protagonista tocam o leitor atual do começo ao fim do livro, podendo-se extrair daqui a conclusão de que estamos diante de uma preciosa obra de arte, de uma literatura com vocação universal.

Mas, ponderamos, certamente em Padre Sérgio (Kassátski), há sim críticas que Tolstói desenvolve em face da Igreja. O protagonista, o Padre Sérgio, sufoca sentimentos perniciosos como a ausência de humildade, a vaidade e um irremediável temperamento competitivo por uma espécie de cega obediência a seu Stárietz, um monge e guia espiritual superior. O interessante é que aqueles defeitos de personalidades são levados à vida do monastério como se o próprio Padre Sérgio não os tivesse em conta:

“Em sua aparência externa, Kassátski dava a impressão de ser um jovem normal, brilhante oficial da guarda fazendo carreira por mérito próprio. Porém, uma contenda complexa e intensa travava-se em seu interior. Desde a infância, essa contenda assumira  várias formas, mas na essência tudo se resumia a um único objetivo: todos os seus passos não tinham outro fim senão o de alcançar a perfeição e o sucesso que suscitariam o elogio e a admiração das pessoas. Apegava-se quer aos estudos, quer às ciência, e trabalhava até que o elogiassem e o apontassem como exemplo aos demais. Alcançando um objetivo, partia para outro. Assim conseguiu o primeiro lugar em ciências; assim, quando ainda cursava a Academia, percebendo que estava fraco em conversação francesa, esforçou-se até conseguir em francês a mesma fluência que tinha em russo; assim, mais tarde, ainda na Academia, ao se dedicar ao xadrez, esforçou-se até conseguir jogar à perfeição”.

Da Capacidade de Rir de Si: amadurecimento pessoal do Padre Sérgio

O itinerário do protagonista vai de sua promissora carreira militar e da vida conjugal rompida, à vida no Monastério. Vive em dois monastérios distintos e depois passa a viver como um eremita dentro de uma gruta por mais de 6 anos. Daqui alguns desenvolvimentos incríveis colocariam em marcha a vida de Padre Sérgio: mas vamos poupar o leitor de informações acerca do paradeiro de Kassátski. Não esperamos retirar a expectativa final de uma leitura prazerosa.

Importa-nos aqui sinalizar como o protagonista, neste seu itinerário, parece evoluir, amadurecer e empoderar- se. Todo tempo de alto-reclusão e retiro espiritual pode ter implicado numa experiência de auto-conhecimento que irá envolver....a capacidade pelo Padre Sérgio de rir de si próprio:

“Meu Deus! Meu Deus!” – pensava – “Por que não me alimentas de fé? Há concupiscência em mim, é verdade, mas também Santo Antônio e outros santos lutaram contra ela, com fé. Eles tinham fé; eu, no entanto, passo minutos, horas, dias, sem que a fé me socorra. Por que todo esse mundo repleto de encantos, se o pecado existe e devemos renunciar a ele? Para que criaste a tentação? Tentação? Mas não será tentação o fato de eu querer me afastar dos prazeres terrenos e me preparar para algo que talvez não exista?” – dizia a si mesmo horrorizado, com nojo de si mesmo. “Canalha! Canalha! E ainda tem a pretensão de se tornar santo” – repreendeu-se. E pôs-se a orar. Porém, mal havia iniciado suas orações e a imagem nítida de como vivera no monastério já lhe surgiu à mente: uma figura majestosa de manto de klobut. E sacudiu a cabeça: “Não, isso não está certo. É ilusão. Posso iludir aos outros, mas não a mim mesmo nem a Deus. Não sou essa figura majestosa e sim um homem lastimável, ridículo”. Levantou a batina e ficou olhando as pernas magras saindo pelas ceroulas. E sorriu”.    






[1] Estamos em desacordo com a classificação desta narrativa como Conto. Para uma breve justificativa, os contos, além da brevidade, parecem ter como pressuposto uma forma narrativa linear de começo, meio e fim, o que não se verifica em “Padre Sérgio”. 

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

“Gramsci – Um Estudo Sobre Seu Pensamento Político” – Carlos Nelson Coutinho

“Gramsci – Um Estudo Sobre Seu Pensamento Político” – Carlos Nelson Coutinho



Resenha Livro - 236 - “Gramsci – Um Estudo Sobre Seu Pensamento Político” – Carlos Nelson Coutinho – Ed. Civilização Brasileira

PARTE I

Tivemos oportunidade de publicar resenha acerca de interessante estudo do pensamento de Gramsci elaborado pelo historiador marxista italiano Domenico Losurdo[1]. Neste ensaio não encontramos uma pesquisa exaustiva sobre a vida e obra de A. Gramsci mas antes uma reflexão situada no âmbito da “História das Ideias”. Busca-se desenvolver reflexões sobre o pensamento político de Gramsci, seu desenvolvimento desde a juventude com sua inusitada influência junto ao pensamento liberal de pensadores como Croce e Gentile – que tem sua chave explicativa no relativo atraso cultural da Itália onde predominam ideias do Positivismo ou mesmo da Igreja Católica – e seu desenvolvimento ulterior, que Losurdo chama de “comunismo crítico” (reflexões originais dentro do seio do marxismo que fazem de Gramsci um autor que funda bases teóricas, em especial no campo da reflexão política).

Certamente todo este desenvolvimento de suas ideias é cotejado com o ambiente político da Itália e do mundo em que esteve inserido – desde o contexto da I Guerra Mundial e das aventuras coloniais italianas na Líbia, da ascensão do fascismo, da Revolução Russa e dos impasses da esquerda italiana.

O livro de Carlos Nelson Coutinho já tem uma natureza diversa. Estamos diante de um estudo mais exaustivo de Gramsci que irá não só contemplar o seu pensamento político, mas sua trajetória política e, o que parece-nos mais importante, tratar especificamente de alguns de seus conceito-chaves, as suas principais contribuições teórico-metodológicas para o marxismo, tanto no que se refere à análise do passado quanto no que se refere à teoria da transição socialista. E Mais. Nesta “Nova Edição Revista e Ampliada” há apêndices com comunicados e artigos com interessantes reflexões sobre as interfaces entre Gramsci, Hegel e Rousseau e a recepção das ideias de Gramsci no Brasil. Mas antes de passar em revista esta profícua obra de Carlos Nelson Coutinho, parece-nos importante fazer uma consideração preliminar.

Como veremos a seguir, parece ser bastante óbvia que a grande novidade conceitual de Gramsci situa-se no terreno da teoria política. E como também veremos, seus instrumental teórico está focado sobre os problemas da revolução no “Ocidente” que em Gramsci não assume um sentido geográfico, mas histórico político. Sabe-se que a distinção entre “Ocidente” e “Oriente” em Gramsci teve como origem um esforço explicativo para esclarecer porque a estratégia bolchevique fracassou nos países mais desenvolvidos da Europa no pós I Guerra. O modelo oriental clássico é a Rússia czarista onde há o predomínio da “sociedade política” (estado num sentido restrito, a sociedade dos funcionários, a burocracia e a polícia, a ausência, portando de um equilíbrio entre o que Gramsci chama de “sociedade política” e “sociedade civil”). Já o modelo “ocidental” é mais complexo – há um equilíbrio maior entre sociedade política e sociedade civil (aparelhos privados de hegemonia como as escolas, os jornais, as igrejas, os sindicatos, etc).

E para cada tipo de sociedade Gramsci propõe um tipo de tática política se servindo de uma terminologia militar. No caso das sociedades orientais, como o demonstrou de resto a própria Revolução Russa de 1917, tratar-se-ia de uma tática de “guerra de movimento” que envolve um ataque frontal, um assalto ao poder num breve lapso de tempo. No “ocidente” diante do complexo feixe de relações entre governantes e governados, o tipo de tática política seria outra. Tratar-se-ia de utilizar a “guerra de posição”, fazer política, ocupar espaços e buscar a hegemonia que envolve a busca de consensos (e não coerção), enfim a conquista progressiva de espaços.

Estamos aqui nos adiantando na discussão conceitual pela seguinte razão. É muito fácil extrair da ideia de “guerra de posição”, da noção de “fazer política” ou mesmo de uma concepção processual da revolução, uma interpretação reformista das ideias da Gramsci. E nada mais falso, não mais contrário às finalidades de seus conceitos teóricos mas principalmente à própria trajetória política do marxista sardo.

Antônio Gramsci sempre foi um socialista revolucionário, um comunista. Certamente sua trajetória política teve algumas nuanças: no período pré carcerário, ainda Jovem, junto aos grupo do “L’Ordinare Novo” chegou a defender uma estratégia centrada nos Conselhos de Fábrica, negligenciando o problema do estado e do poder e estreitando a estratégia revolucionária na socialização dos meios de produção e disseminação de “soviets”, o que certamente retificaria na maturidade. Mas Gramsci, nunca, jamais, em hipótese nenhuma foi um reformista. Sempre foi um incondicional defensor da Revolução Soviética e da URSS. Apoiou a política da NEP a favor da maioria de Stálin contra a minoria Trótsky e Zinoviev. Aliás, polemizou bastante com Trótsky conforme a supracitada tática da “guerra de posição” e “guerra de movimento.” A chamada “Teoria da Revolução Permanente” (cuja origem conceitual é de Marx) tem um sentido em Trótsky de disseminar pela via da tática da “guerra de movimento” a experiência bolchevique para todo o mundo, indistintamente. Por isso podemos constatar como Gramsci é um autor invulgar e original. Trótsky é um autor vulgar e não original.

Mas retomando ao problema do reformismo, trata-se certamente de uma questão objetiva. Quando Carlos Nelson Coutinho irá fazer referências seja a recepção das ideias gramscianas no Brasil ou mesmo no mundo, o problema aparece. Gramsci é um autor diferente de Lênin. É impossível extrair ipsis litteris ideias reformistas em Lênin e quase impossível interpretações neste sentido. Como o tema mais profícuo de Gramsci é a política e como ele se arrisca a desenvolver uma nova e original teoria da revolução, seu caso é diferente. Nesse sentido, parece-nos que a melhor “vacina” contra interpretações reformistas de Gramsci é combinar as suas reflexões teóricas sem jamais perder de mente sua trajetória de vida.

Trajetória de Vida

Antônio Gramsci nasceu em 1891 na ilha de Sardenha na região meridional na Itália, local onde então grassavam o analfabetismo, a pobreza e a malária. Também de origem humilde, Gramsci teve ainda no Ginásio que largar os estudos para trabalhar e ajudar a família. Consta que ao trabalhar numa repartição pública em Ghilarza passava 10 horas por dias carregando processos mais pesados do que ele. Fato prejudicado por uma deficiência física manifestada quando tinha 18 meses e que o deixaria corcunda. Felizmente, Gramsci consegue terminar os estudos secundários e em 1914 ingressa na Universidade de Turim.

É nesse primeiro momento universitário que ingressa no Partido Socialista Italiano (PSI) o então partido da esquerda daquele país. O partido subdividia-se em duas grandes alas: um setor reformista e um setor maximalista, do qual Gramsci aderiu apenas formalmente. O que as duas correntes tinham em comum era uma certa orientação teórica do tipo fatalista: propugnava-se que o desenvolvimento econômico capitalista pelas suas próprias contradições estava fadado a levar ao seu próprio colapso. Os reformistas então, ao invés de tomar uma iniciativa anticapitalista, contentavam-se com migalhas. Já os maximalistas, também ao invés de tomar a iniciativa histórica, contentavam-se com uma ação meramente propagandista. Nenhuma das orientações partidárias parecia convincente a Antônio Gramsci. Fato que se agrava com a vitória da Revolução Russa:

“Na ação dos Bolcheviques, com os quais simpatizava imediatamente, Gramsci enxerga a plena realização de sua visão do marxismo, uma visão radicalmente antipositivista e antievolucionista mas não isenta de fortes traços de idealismo subjetivo e do voluntarismo: ‘Lenin e seus companheiros bolcheviques estão convencidos de que é possível realizar o socialismo a qualquer momento. São alimentados pelo pensamento marxista. São revolucionários , não evolucionistas . E o pensamento revolucionário nega o tempo como fator de progresso. Nega que todas as experiências intermediárias entre a concepção de socialismo e sua realização devam ter no tempo e no espaço sua comprovação integral.”.

Como dissemos, ainda no PSI, Gramsci desenvolve a ideia da centralidade dos Conselhos de Fábrica, influenciado pelos soviets russos. Atua na ocupação de Fábricas e na greve geral derrotada em Turim que tem como principal fator de derrota o imobilismo da direção do PSI o que dá início ao processo de cisão do partido. O que se tem em frente a partir daqui é a criação de uma fração comunista que culminará no PCI ligado a nova Internacional Comunista, à III Internacional de Lênin. A cisão dá-se exatamente em 21.01.1921. Em maio do ano subsequente Gramsci é enviado a Moscou como representante italiano da Internacional Comunista.

O pano de fundo histórico na Itália é a ascensão do fascismo em Itália nos anos 1920 – fenômeno político qualificado por Gramsci pelo sugestivo nome de “subversivismo reacionário”. Ainda nos escritos pré-carcerários Gramsci desenvolve uma interpretação original e profícua do novo regime em ascensão:

“Assim, já em 2 de janeiro de 1921, no segundo número de “L’Ordine Nuevo” cotidiano, Gramsci publica seu famoso artigo sobre “o povo dos macacos”, onde insiste na novidade essencial da reação fascista: no fato de se estar diante de um movimento reacionário com base de massa, ou seja, apoiado na luta da pequeno burguesia para reconquistar o lugar político e econômico que vinha perdendo em função das transformações monopolistas que o capitalismo italiano experimentara sobretudo durante os anos da guerra. Num artigo posterior, intitulado “Subversivismo revolucionário”, de junho do mesmo ano, ele se empenha em captar outros aspectos específicos da nova reação, como, por exemplo, o fato de ela assumir táticas de acesso ao poder que se diferenciam nitidamente da velha reação conservadora; embora tolerados e mesmo apoiados pelos aparelhos legais do Estado, os fascistas atuam a partir de baixo, de movimentos situados à margem das instituições estatais, abandonando frequentemente o terreno da legalidade e promovendo o que Gramsci chama de “subversivismo reacionário”.

Em 08.11.1926, A. Gramsci é preso e condenado há mais de 20 anos – anos antes havia sido eleito deputado pelo PCI e pressupunha-se imunidade parlamentar. Interessante constatar que os próprios fascistas tiveram clareza de quem era seu adversário político: seu promotor disse que deveriam impedir aquele cérebro de funcionar durante 20 anos. Mas os algozes de Gramsci não tiveram sucesso. Com muitas dificuldades, Gramsci conseguiu através de Cadernos Escolares redigir o que depois ficaria consignado como suas “Cartas” e “Cadernos do Cárcere”. São incríveis 2000 folhas versando sobre teoria política, teoria literária, comunicados políticos e exercícios de traduções. Em 1948 há a primeira publicação dos “Cadernos do Cárcere” sob a supervisão do dirigente do PCI, Palmiro Togliati.

À Guisa de Conclusão

Nesta primeira parte da Resenha de “Gramsci – Um Estudo Sobre Seu Pensamento Político” de Carlos Nelson Coutinho procuramos fazer uma introdução acerca da obra e um breve inventário sobre a vida de Gramsci.

Na II Parte desta Resenha deveremos deter-nos nos conceito-chave desenvolvidos por Gramsci, em especial na teoria política elaborada no seu período carcerário e estabelecer algumas críticas em face da interpretação peculiar do pensamento de A. Gramsci por Carlos Nelson Coutinho.