quarta-feira, 30 de novembro de 2016

“Como Iludir o Povo” – V.I. Lênin

“Como Iludir o Povo” – V.I. Lênin



Resenha Livro – “Como Iludir O Povo Com Os Slogans de Liberdade e Igualdade” – V.I. Lênin – Global Editora

“Os trabalhadores organizam-se e declaram: ‘A nossa organização é a mais elevada de todas; não tem o direito de participar nesta organização nenhum explorador, nem nenhuma pessoa que não trabalhe. Esta organização tem um único objetivo – a destruição do Capitalismo. Não nos enganaram com falsos slogans como ‘fetiches’, tais como ‘liberdade’, ‘igualdade’. Nós não reconhecemos nem a liberdade nem a igualdade, ou mesmo a democracia do trabalho se se opuserem aos interesses da emancipação do Trabalho da opressão do Capital”. Introduzimos isto na Constituição Soviética e já ganhamos a simpatia dos trabalhadores de todo o mundo. Eles sabem que por mais difícil que seja implantar a nova ordem, por mais difíceis provas e mesmo derrotas que caiam sobre as várias Repúblicas Soviéticas, nenhuma força no mundo fará recuar a humanidade”. (Lênin).
                
Este manuscrito corresponde a um discurso de V. I. Lênin proferido em 19 de maio de 1919 no Congresso sobre Educação Extra Tutorial. É preciso começar situando o contexto, dramático, de quando foi feito o pronunciamento. Estamos há cerca de um ano e meio do triunfo da Revolução de Outubro de 1917 com a tomada do poder pelos bolcheviques e a derrota dos capitalistas – e como o próprio discurso enuncia, a ditadura do proletariado é uma etapa da luta política em que a burguesia e os capitalistas, muito longe de sofrer uma morte fulminante, apenas se vêm apeados do poder, conduzindo uma guerra civil dramática pela restauração da antiga ordem. Nas palavras de Lênin, a Revolução é uma luta de classes desesperada que atingiu o seu ponto fulminante: em 1919 o país vivia sob uma luta política, ideológica e militar em face da contrarrevolução.
                
França, Inglaterra e EUA intervêm abertamente para deter os bolcheviques, com importante presença militar na região de Odessa, Sebastapol e Criméia, justificando a necessidade de domínio do Mar de Azov, localizado nas proximidades da Ucrânia; estes mesmos imperialistas operavam prestando apoio ao grupo de rebeldes liderados por Denikin; . Kolchak, talvez o mais famoso elemento contra revolucionário, seria abandonado por suas tropas e derrotado em dezembro de 1919. A Rússia estava arruinada economicamente em primeiro lugar em função da catástrofe da guerra: há falta de abastecimento de carvão e combustíveis, fazendo com que a indústria fique parada:

“A matéria prima tem que ser transportada para a fábrica de algodão russo do Egito, da América, ou mais próximo, do Turguestão, e tentar transportá-la quando aí existem grupos contrarrevolucionários, quando as tropas inglesas tomaram Askhab e Krasonvodsk; transportá-la do Egito, da América, quando as estradas de ferro não transportam alimentos, quando se encontram arruinados, quando se encontram parados e não há carvão (...)”.

Lênin adverte que aquela difícil etapa de escaramuça era momento em que o mais essencial era fazer sobreviver a classe trabalhadora. Sabe-se que àquela altura a expectativa do dirigente russo era a de que a vitória da revolução na Rússia dependeria do desdobramento do movimento revolucionário operário, em especial nos países mais avançados: tratava-se naquele período portanto de uma luta de vida ou morte pela sobrevivência de uma experiência que já perdurara mais tempo que a Comuna de Paris e a própria etapa especificamente revolucionária/progressista da Revolução Francesa:

“O Trabalhador tem que ser salvo mesmo que não possa trabalhar. Se o salvarmos nestes anos próximos, salvamos o país, a sociedade e o Socialismo. Se não o Salvarmos, regressaremos à escravatura salarial”.

O tema da palestra como o nome sugere remete à polêmica junto a setores ligados aos grupos Mencheviques e Socialistas Revolucionários que utilizam palavras de ordem como “democracia”, “liberdade” e “igualdade” numa conjuntura difícil como a supracitada e de forma oportunista, para atacar a revolução e seus dirigentes bolcheviques. Como é comum, Lênin é didático, objetivo e preza pela clareza na argumentação política: passa em revista os principais slogans utilizados para “iludir o povo” e em poucos parágrafos tece a crítica que revela como os “filisteus” que reivindicam estas palavras de ordem, o fazem a serviço da contra revolução.

Uma primeira crítica que surge é a de que tanto os oportunistas mencheviques quanto os bolcheviques igualmente não deveriam ser julgados por terem feito acordos com o imperialismo. Há aqui o desvirtuamento de um problema decisivo: o colaboracionismo de setores que passaram do lado da contra-revolução para o lado da revolução e se omitem de fazer auto crítica – partidários de um acordo com os imperialistas franceses contra a revolução russa, não deveriam constranger-se de transigir contra a revolução e o imperialismo pois o mesmo foi feito pelos bolcheviques em Brest[1]

Lênin ridiculariza tal equiparação: o acordo de Brest foi antes um assalto das potências sobre a fragilizada revolução russa. Já os russos propunham a paz e dentro de uma concepção bastante avançada com a revelação dos documentos diplomáticos para o conhecimento de todos os povos. Não se pode confundir guerras de rapina imperialistas com as guerras civis revolucionárias: os oportunistas causam confusão ao quererem confundir as duas guerras e difundir a ideia de que os bolcheviques “promoveram a guerra enquanto prometeram a paz”. Sem nenhum idealismo, os bolcheviques, ainda durante a participação da Rússia na I Guerra diziam ser impossível “acabar com a Guerra Espetando a Baioneta na Terra”, por um simples ato de vontade unilateral, o que sugere mais uma vez a expectativa dos russos de que a vitória mesmo da revolução dependeria do desmembramento da luta revolucionária nos demais países.

A palavra de ordem da “liberdade” ou a ausência dela não seria uma trivial crítica em comento apenas nos países capitalistas. Kautsky, líder da segunda internacional, acusa mesmo a Revolução Russa de militarismo. Aqui Lênin dá mostras de um profundo conhecimento de Marx – quando se conhece uma teoria abstrata e com vasta abundância teórica como o marxismo, temos sinais de quem a domina quando é capaz de disseminar em poucas frases o que é mais essencial e importante sobre cada tópico. Falar de maneira simples sobre temas complexos revela o pleno domínio de Lênin sobre o marxismo. E o que o Marxismo e os bolcheviques têm a dizer sobre a liberdade?

“No momento em que se atingir a destruição do poder do Capital em topo mundo, ou mesmo num país, nesse momento histórico, quando a principal tarefa for a luta de classes trabalhadoras pelo total aniquilamento do Capital, pela completa destruição total da produção mercantil, qualquer pessoa que, em tal momento político, utilize as palavras “Liberdade em Geral” que, em nome desta liberdade atue contra a ditadura do proletariado,  está à serviço dos exploradores e nada mais, é sua aliada, porque a liberdade, quando não subordinada aos interesses da emancipação do Trabalho do jugo do Capital, é uma fraude, como declaramos nosso programa do partido”.

Em outros termos, não há liberdade onde existe opressão do capital pelo trabalho e propriedade privada: no capitalismo, a liberdade é meramente formal e tem como destinatária as classes proprietárias. Nãos se pode cogitar palavras de ordem ou slogans como “liberdade” sem situá-los no campo da luta de classes, o que é mais grave quando se parte a fraseologia de setores que se dizem socialistas[2].

O slogan da igualdade igualmente de nada serve quando associado à exploração do trabalho. Ademais, no marxismo igualdade significa abolição das classes sociais – não tem um sentido vulgar das supressões das diferenças do ser humano ou de fazer todos iguais.

Na Rússia havia uma questão de ordem específica acerca do problema camponês e da especulação do trigo. Objetivo especial na Rússia é destruir a diferença (existente àquela altura) entre trabalhador/operário e camponês.    A revolução destrói as instituições capitalistas mas não remove hábitos seculares dos camponeses como aquela especulação associada à compra e venda – e os bolcheviques travam uma luta para impor a obrigação da entrega do excedente do trigo por preço fixo.

O Camponês vacila entre trabalhador e burguês. A tendência especuladora se relaciona com o fato do camponês vender o trigo, o pão, o alimento, insumo de primeira necessidade do qual depende toda sociedade. E a luta para trazer o camponês para junto do campo do trabalhador é aqui decisiva, enquanto o campo adversário advoga palavras de ordem como “livre comércio do trigo” que eventualmente soam melhor aos ouvidos dos camponeses mais despolitizados ou influenciados pelo hábito secular.

Este camponês poderia ser com algum cuidado traduzido para os nossos pequenos burgueses dos dias modernos, como um pequeno comerciante, que igualmente tem as mesmas vacilações entre seguir as tendências do trabalho e do capital. De molde que este discurso de Lênin proferido ao calor da Guerra Civil revolucionária, com alto grau de radicalidade e intransigência, repudiando a fraseologia, tão comuns em nossa pobre esquerda pequeno burguesa, têm enorme atualidade.

As consignas da Constituição Soviética devem servir-nos ainda de mote. Ela não fala em democracia. Ela fala em ditadura e nega explicitamente o direito de voto àquele que não trabalha. Este “choque” supostamente “anti- democrático” pode ser muito produtivo. Se há um autor que falta leitura à esquerda brasileira hoje, este autor é Lênin. Era um dirigente que sabia o que era (e falava junto) à alma da classe operária. E o seu discurso radical e combativo coincide com o protagonismo revolucionário da classe trabalhadora.





[1] Tratado de Paz assinado entre o governo bolchevique e as Potências Centrais (Império Alemão, Império Austro-Hungaro, Bulgária e Império Otomano) pela qual era reconhecida a saída da Rússia da I Guerra Mundial.  3 de Março de 1908.
[2] Algo que não deixa de ser observado em certo partido brasileiro denominado Socialismo e “Liberdade”. 

terça-feira, 29 de novembro de 2016

“O Garimpeiro” – Bernardo Guimarães

“O Garimpeiro” – Bernardo Guimarães





Resenha Livro - “O Garimpeiro” – Bernardo Guimarães – Poeteiro Editor Digital – São Paulo – 2014

Bernardo Guimarães é provavelmente lembrado como autor do “Escrava Isaura”, obra que repercutiu junto ao público ao ser exibida em forma de telenovela por duas emissoras diferentes em 1976 e 2004. Tanto naquele romance (que se tratava de um curioso caso de uma escrava Branca) quanto no “Garimpeiro”(1872) observa-se um procedimento de idealização do instituto da escravidão que está relacionado com o estilo literário romântico do autor.

B. Guimarães nasceu em 1825 na cidade de Ouro Preto em Minas Gerais. Formou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco de São Paulo e foi da mesma turma do poeta byronista Álvares de Azevedo com quem criou junto a outros acadêmicos uma certa “Sociedade Epicureia” que ganhou fama na então pequena província paulistana. Após os estudos jurídicos, torna-se magistrado, exercendo atividade jornalística, pedagógica e literária.

“O Garimpeiro” foi publicado em 1872, mesmo ano do romance de “O Seminaristas”[1]: ambos trabalhos tem finas qualidades quanto ao estilo, predominando em “O Garimpeiro” já uma tendência de literatura regionalista ao descrever os costumes e o povo do triângulo mineiro (Patrocínio, Araxá, Uberaba e principalmente Bagagem, onde se passa o enredo).

Todavia, pode-se cogitar que a temática polêmica de “O Seminarista” que envolve uma tragédia amorosa decorrente da ausência de vocação religiosa de Eugenio a despeito de um cego, rigoroso, irracional e ao final inútil esforço dos padres do seminário em demover o protagonista de seu amor (que prevalece a despeito dos sentimentos de culpa infringidos pela religião), esta narrativa potencialmente controvertida junto ao público (daquela época) pode ter colocado em segundo plano “O Garimpeiro”.

O romance do garimpo situa-se no âmbito do romantismo e pode-se falar num estilo folhetinesco. Folhetim é um termo francês e remete ao periodismo, às publicações literárias – muitas das quais romances – que seriam, cada capitulo, lançado a cada dia no jornal. O mais importante romance de Machado de Assis, por exemplo, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, foi desenvolvido como folhetim de março a dezembro de 1880 na Revista Brasileira.

Mas quando propomos ao “Garimpeiro” a ideia de estilo folhetinesco queremos dizer que a obra tem um estilo literário voltado tipicamente ao público leitor de romances românticos: um pequeno público letrado, feminino de extratos da pequena burguesia nas cidades, leitores dos jornais e revistas. Trata-se de uma história de amor nos termos não de uma forma de consórcio do realismo literário que é objeto da crítica mordaz e da ironia, revelando os interesses pessoais meramente sensuais, prevalecendo o temor da opinião sobre o suposto sentimento do amor, dos quais tratam tão bem retratados um “Primo Basílio”[2] ou “Dom Casmurro”.  

O amor romântico de que se trata em “O Garimpeiro” é idealizado ao ponto de parecer pueril ao olhar do leitor de hoje. A História trata de Elias, um pobre porém inteligente rapaz que é contratado para trabalhar numa fazenda de um Major em cidade localizada no triângulo mineiro. Não bastarão muitas trocas de olhares e pouquíssimas palavras para que se concretize um amor fulminante e definitivo. (Observe-se que não há a troca de um primeiro beijo só após o desenvolvimento posterior da novela – Elias é pobre e para casar necessita enriquecer. Trabalha incessantemente no garimpo em Bagagem e não obtém sucesso. É convidado por um oportunista e é engambelado, partindo para uma cidade chamada Sincorá na Chamada das Diamantinas (BA). Ao retornar para sua cidade pensando ter os recursos para casar com seu amor, descobre que foi enganado com notas falsas e está perdidamente pobre. O Major, igualmente, abandona a atividade da agricultura e no garimpo não encontra resultados positivos e está instalado num casebre pobre. Lúcia e Elias estão pobres e neste ponto intermediário da narrativa vem o primeiro contato físico, o primeiro beijo do casal).

Se podemos pontuar algo como diretriz que permeia este romance é uma tensão geral entre o amor e o dinheiro. Na verdade a vontade de enriquecer ou os valores pecuniários (com uma exceção) possuem uma característica de desagregação. Araxá, Patrocínio e Bagagem são três cidades referidas e que fazem parte do triângulo mineiro. Bagagem é um povoado onde se concentram pessoas oriundas dos outros três distritos. Vêm em busca de diamantes e muitos abandonam a agricultura (inclusive o major) em busca do enriquecimento rápido nas minas. O resultado é a desilusão e o empobrecimento, além do abandono das terras.

São conhecidos aqui os relatos de historiadores de como a atividade da mineração implicou num empobrecimento, desde a era colonial – a busca desenfreada pelo ouro foi como uma atividade especulativa, uma expectativa de rápido enriquecimento mas que, ocasionalmente, resultava em frustração e desagregação social. Houve mesmo a chaga da fome nos distritos diamantinos na Era Colonial.

Outro aspecto em que a busca pelo dinheiro sugere a desagregação e o conflito envolve o personagem Leonel. Trata-se de um baiano que vem a Bagagem e seduz o desiludido Elias (sem perspectiva de obter dinheiro para fazer a corte de Lúcia) a segui-lo até Sincorá e desde lá ser seu preposto. Tratava-se Leonel de trapaceiro, um falsificador de moedas e pior: depois de Elias descobrir que todo seu trabalho nas minas fora inútil e que seu dinheiro como salário não tinha nenhum valor, descobrira que o mesmo larápio estivera fazendo a corte de sua amada Lúcia. A ideia de falsas moedas remete a uma noção mais geral de ilusão: o dinheiro e a riqueza criaram expectativas que foram demolidas quando o dinheiro de Elias não foi aceito em Bagagem e todos os seus sonhos caíram por terra. A todo momento Elias faz remição de sua má sorte ao destino e a Deus.

A desagregação em face dos valores pecuniários se refere igualmente a uma questão paralela: do dinheiro que perde valor, ao Major que de rico que era, pobre fica, passando a agir de forma a pressionar intensamente Lúcia a aceitar um casamento a contragosto. Trata-se aqui do problema da pobreza ou mais especificamente do empobrecimento:

“Os Homens de alma fraca e espírito acanhado, quando de ricos que eram caem em estado de pobreza, tornam-se irritáveis, intolerantes, injustos e até às vezes cruéis. O rancor de que se acham possuídos contra o destino que os maltrata e do que não se podem vingar, eles o desabafam contra as pessoas que com eles vivem e lhes são sujeitas. O Major, encolerizado com as delongas e hesitações de Lúcia, perdeu aquela prudência e bonomia que sempre o caracterizava, e, calcando aos pés o decoro e o respeito que sempre guardava para com os sentimentos de sua filha, acabrunhou-a com um montão de impertinentes repreensões e cruéis exprobrações (...) ”

Diz-se que pode-se ficar rico rapidamente através do jogo, do garimpo e do testamento. Esta última forma seria o único meio em que o enriquecimento sugeriria no enredo uma forma não ingrata de encontro pelos personagens: muito pelo contrário, o término da história é um belo ato de gratidão. 

Vamos deixar de contar o final da história e garantir ao leitor da resenha o prazer da leitura deste belo romance.

De outra forma, o “Garimpo” tem interesses especiais que vão além dos meros romances românticos de costumes. Trata-se de um romance que de forma pioneira introduz o regionalismo e aborda usos e costumes da região diamantina do Brasil Imperial. Há passagem da festa popular da Cavalhava, atividade que mistura esporte e encenação do embate entre cristãos e mouros, e que por sinal, contava com ampla participação e simpatia popular. A própria atividade do garimpo, as transformações urbanas e as descrições paisagísticas têm interesse não só literário, mas histórico. Todavia, o mesmo não deve ser dito do tipo de relação existente entre o escravo Simão, a escrava Joana e seus respectivos donos. Como já sugerido, há aqui o mesmo tipo de idealização da escravidão que há no procedimento das narrativas românticas. É necessário portanto cotejar o romance com o panorama histórico do período. Lê-lo como um romance e distinguir na medida do possível o que existe de história e o que há de ficção.
        

domingo, 27 de novembro de 2016

“Crônicas de Londres” – Eça de Queirós

“Crônicas de Londres” – Eça de Queirós



Resenha Livro - “Crônicas de Londres” – Eça de Queirós – Poeteiro Editor Digital – São Paulo – 2014

Uma primeira lembrança que nos vem à mente quando falamos de Eça de Queirós invariavelmente remete-nos às suas obras realistas. Provavelmente as mais conhecidas são o  trágico-cômico “O Crime do Padre Amaro” (1875) e o “Primo Basílio” (1878). Na verdade, Eça de Queiros foi um dos fundadores do movimento literário realista em Portugal a partir daquilo  que ficou conhecido como “Questão Coimbra” – uma geração de escritores dos anos 1870 como Oliveira Martins, Antero de Quental e Teófilo Braga entram em contenda com o tradicionalismo literário em Portugal em face de arcadismo de Castilho. Ainda que não esteve presente diretamente na contenta, ela expressa por um lado as mesmas cogitações de uma inovação literária: a objetividade em detrimento da subjetividade na forma narrativa; um tendência materialista em oposição ao sentimentalismo; uma forte reação à importante influência do Clero e das Monarquias Absolutistas (no caso do clero, considerado fator de atraso de Portugal, e intensamente ridicularizado do “Crime do Padre Amaro”) e uma preocupação real em modernizar (não revolucionar) o presente, transformar a arcaica e atrasada Portugal em face de países cosmopolitas e avançados em termos de esclarecimento e luzes, como Inglaterra e França. 

Este último ponto parece ser uma chave para compreender esta fase específica e em que se situa as “Crônicas de Londres” (Redigidas em 1877 e 1878): foi composta alguns anos depois do “Crime do Padre Amaro” e no mesmo ano do “Primo Basílio” e se situa na fase realista de Eça de Queirós, dentro do momento em que o que informa sua produção literária, mesmo quando se tratando de crônicas de jornais, é o realismo literário. Isto dá um sabor especial as crônicas. São escritas com humor, com ironia e com a crítica social impiedosa de sua fase realista de escritor.

Apenas alguns esclarecimentos rápidos quanto à trajetória de vida de Eça de Q. de molde e explicar sua chegada à Londres e sua atividade como cronista.

José Maria de Eça de Queirós nasceu em 25 de Novembro de 1845 em Portugal. Seu pai era magistrado, formado em Direito em Coimbra e juiz em diversos tribunais. O jovem Eça seguiu a mesma carreira e ingressou na mesma universidade donde conheceu Antero de Quental. Em 1866, 

Eça forma-se bacharel e exerce a advocacia e o jornalismo. O escritor ingressa na carreira diplomática e em 1873 é nomeado cônsul em Havana Portugal. Para os estudos do livro que temos em mãos importa-nos o período de 1874-1878  quando exerceu carreira diplomática em Newcastle e Bristol. Neste período manteve atividade jornalística publicando esporadicamente no “Diário de Notícias” e “A Atualidades”, periódicos portugueses, sob a rubrica “Cartas da Inglaterra”. Apenas em 1888 seria nomeado cônsul em Paris. Dois anos depois falece o grande escritor que não só esteve no realismo literário – há mais fases em sua obra e basta dizer que obras posteriores como “A Cidade e a Serra” sinalizam uma espécie de recomposição com o gênero humano, havendo de comum com os trabalhos anteriores a quase perfeição do estilo conciso e lírico. (Eça é um autor que revela emoções).

A reunião destes artigos de jornais desde a Inglaterra dar-se-iam postumamente, apenas em 1905. Entre 1877 e 1878 havia a Guerra entre Russos e Turcos, da qual logo discutiremos, mas desde já, uma série de reportagens de um contemporâneo acerca da guerra levanta um enorme curiosidade histórica: qual era a repercussão da opinião pública sobre a guerra considerando as vacilações da classe política em entrar ou não no conflito? Como se processou a guerra a partir dos olhos dos extratos mais elitistas da europa que não deixavam de olhar sem uma certa superioridades para os eslavos e turcos – não deixar de considerar que estamos em 1877-1878, era dos primórdios do Imperialismo, quando  mal se ocultavam percepções acerca da maior e menor civilidade de povos dando suporte ideológico às aventuras coloniais.

E não só a Guerra da Turquia é o ponto político abordado nas crônicas: temos notícias de pelo menos três grandes insurreições operárias, incluindo uma greve em face de companhia de ferrovia que quase se desenvolve numa guerra civil:    

“O Grande Acontecimento da Quinzena é a formidável insurreição que rebentou nos Estados Unidos. As Companhias de Caminhos de Ferro de Baltimore e Ohio reduziram os salários dos empregados de dez por cento e aumentaram duas horas de trabalho por dia. Isto originou uma greve. As companhias recrutaram novo pessoal, mas os grevistas atacaram estes intrusos, espancaram a polícia que os defendia e, finalmente, resistiram à Guarda Nacional. Movimento, então, espalhou-se como fogo em restolho: 10 estados tomaram parte na resistência, a greve estendeu-se a cinquenta mil milhas de caminho de ferro, a população baixa tomou o partido dos grevistas e esteve-se em vésperas  de uma temerosa guerra civil. Houve verdadeiras batalhas entre insurrectos e a tropa, e pode-se fazer uma ideia do desastre sendo que só em Pittsburbgh os prejuízos causados pela insurreição elevam-se a três mil e seiscentos contos.”

Fica visível que naqueles anos que marcam cerca de 30 anos do lançamento do Manifesto Comunista[1], 10 anos após o lançamento do primeiro volume do Capital e com Karl Marx e Engels ainda em atividade, e, mais importante, em face de uma etapa do capitalismo em que não há qualquer proteção social, remota era a Justiça do Trabalho, com redução salarial sem qualquer negociação coletiva e o uso da força policial em caso de qualquer resistência, Eça relata comumente eventos de greves que surpreendem o leitor de hoje pelo nível de radicalidade e até adesão espontânea do povo pobre. Não temos porque duvidar de Eça de Queirós - uma espécie de burguês liberal, frequentemente contrário aos motins. Ele não está carregando nas tintas.

Assim relata-se a greve de 15 mil carvoeiros no Norte da Inglaterra após os patrões imporem a redução de 10% dos salários.

Outra insurreição operária descrita é em Lancashire envolvendo os tecelões. Mais uma vez, importa destacar a radicalidade do movimento.

“Manufaturas incendiadas, casas destruídas, lojas de bebidas saqueadas, patrões perseguidos a tiros, reclamações forçadas de dinheiros e de provisões, não faltou para dar ao distrito Manchester o aspecto atroz de um província em poder idas hordas de Saballs ou de Dorregaray. No entanto não só não se indignam, mas nem sequer se lamentam: limitaram-se a contar secamente os ultrajes cometidos. Das associações operárias não saiu um único protesto contra estas desordens. E não se pode negar que a insurreição tenha uma vaga, uma imponderável simpatia”.

De outro lado, todas as crônicas aparentam ter como pauta principal, com raras exceções, a Guerra da Rússia com a Turquia (1877 – 1878). O sentido mais geral deste conflito diz respeito ao desejo dos russos de obter acesso ao mar mediterrâneo e a captura da península dos Balcãs controladas pelo Império Otomano (Turcos). Formalmente, a declaração russa ia no sentido de que a “Guerra Santa” significava libertar “o irmão eslavo e cristão” (Bulgária, Romênia, Sérvia, Montenegro, etc.) do jugo turco sob a égide do islã.

A Rússia declarou guerra contra o Império Otomano em 24 de Abril de 1877- as crônicas de  Eça de Queirós demonstram uma simpatia geopolítica pela Inglaterra que naquele momento se opunha à Rússia. O Objetivo do Czar é tomar Constantinopla (capital do Império Otomano, hoje Istanbul), uma localização estratégica por fazer a divisa entre a Ásia e a Europa. Os problemas de uma presença militar na Rússia em Constantinopla para a Inglaterra são: coloca em risco a supremacia britânica no mediterrâneo; abala o prestígio colonial na Índia; pode colocar em risco para a Inglaterra o domínio do Canal de Suez. Ao cabo, a Rússia não toma Constantinopla definitivamente.
Ao término da guerra, há o esfacelamento do Império Turco Otomano e a extinção de todos os seus territórios da Europa – a Turquia agora é um país exclusivamente asiático. Ao final os turcos perdem România, Sérvia, Montenegro, Bósnia, Bulgária e Roméria.

Para além do que poderíamos nos referir como história política, que salta aos olhos desde uma fonte preciosa que é a crônica de um jornal de época, temos com estes textos de periodismo referências àquilo que os historiadores chamam de história do cotidiano. A atividade jornalística é o periodismo e as crônicas referem-se não só aos grandes eventos mas ao habitual, às questões que divertem e que envolvem desde a crítica literária e artística até os comentários sardônicos e escândalos da alta sociedade europeia acerca de questões corriqueiras – a não aceitação da rainha em uma meeting em razão da convidada ser uma recém convertida ao catolicismo (num país protestante); uma trapalhada de um príncipe chamado a ser deputado e revelando num discurso que não preparou-se nem para a oratória e que não sabe sequer o que é “administração local”; ou casos extraconjugais que são causas de burburinho, remetendo ao “Primo Basílio”. São fatos que só demonstram interesse aos leitores de hoje por saírem da pena de um escritor realista do calibre de Eça de Queirós que nos seus romances dissecava com humor e ironia aquela mesma sociedade baseada em vícios, cinismo e perversão, ocultado pelas regras triviais dos bons costumes.

“Crônicas de Londres” portanto têm dois grandes valores: um grande valor histórico acerca da histórica política e social (do cotidiano, das lutas operárias, das colônias na Índia, etc.) do séc. XIX;  e um valor artístico  a partir de procedimento com o qual narra suas crônicas de forma  similar aos seus geniais romances realistas.






[1] Ainda que, como se sabe, não exista uma correlação histórica entre as edições do livro “O Manifesto Comunista” e o nível de organização. A Rússia incrivelmente esgotou as edições do livro rapidamente e teve uma organização operário-sindical débil no séc. XIX até pelas próprias condições políticas do país.   Ver “Sobre História”. HOBSBAWM. Erc. Cap. 22.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

“Sobre História” – Eric Hobsbawm

“Sobre História” – Eric Hobsbawm



Resenha Livro -  “Sobre História” – Eric Hobsbawm – Ed. Companhia de Bolso

“Nas últimas décadas, tornou-se moda, principalmente entre pessoas que se julgam de esquerda, negar que a realidade objetiva seja acessível, uma vez que o que chamamos de “fatos” apenas existem como uma função de conceitos e problemas prévios formulados em termos dos mesmos. O passado que estudamos é só um constructo de nossas mentes. Esse constructo é, em princípio, tão válido quanto outro, quer possa ser apoiado pela lógica e por evidências, quer não. Na medida em que constitui parte de um sistema de crenças emocionalmente fortes, não há, por assim dizer,  nenhum modo de decidir, em princípio, se o relato bíblico da criação da terra é inferior ao proposto pelas ciências naturais: apenas são diferentes. Qualquer tendência a duvidar disso é “positivismo”, e nenhum termo desqualifica mais que este, exceto empirismo.

Em resumo, acredito que sem a distinção entre o que é e o que não é assim, não pode haver história. Roma derrotou Cartago nas Guerras Púnicas, e não o contrário. O modo como montamos e interpretamos nossa amostra escolhida de dados verificáveis (que pode incluir não só o que aconteceu mas o que as pessoas pensaram a respeito) é outra questão.”.

Eric Hobsbawm nasceu na Alexandria (Egito) em 1917. Foi educado na Áustria, Alemanha e Inglaterra. Estudou história em Cambridge nos anos 1930 quando teve contato e efetivamente aderiu aos pressupostos teórico-metodológicos do marxismo. E. H. referia-se a  tal concepção como forma materialista da história. (E ao longo dos ensaios o longevo historiador manteria tal orientação metodológica, reivindicando, em seus termos, um marxismo “pluralista”). Hobsbawm recebeu título de doutor honoris causa de universidades em diversos países. Lecionou até se aposentar no Birkbeck College da Universidade de Londres e posteriormente na New School for Research. 

Um fato curioso sobre a biografia do historiador é que serviu sem qualquer distinção militar durante a II Guerra Mundial: tal fato é comentado em um dos capítulos do presente livro ao discutir os efeitos da memória pessoal vivenciada pelo historiador como elemento que diferencia a construção da narrativa em face de outras possibilidades de construção da história criadas pelas novas gerações. Ainda sobre Hobsbawm, importa ressaltar seu vasto trabalho que envolve desde uma pesquisa exaustiva sobre o ciclo de desenvolvimento/ascensão da burguesia e do capitalismo em nível mundial, a partir da “Era das Revoluções” – a dupla revolução industrial e política em França em 1789, passando pelo ciclo de expansão na “Era do Capital” e o salto qualitativo donde a fase do capitalismo da livre concorrência dá um salto num sentido do capitalismo dos monopólios na “Era do Imperialismo” culminando no curto século XX denominado “Era dos Extremos”. Há importantes trabalhos pelo historiador acerca de assuntos temáticos que vão da história social do jazz a questões envolvendo à gênese e desenvolvimento da classe operária, passando pela categoria dos “Bandidos Sociais”, fenômeno associado às sociedades camponesas em desagregação e verificados em todos os cantos do mundo – Hobsbawm literalmente inaugura os estudos desta categoria analítica há cerca de 40 anos. Desde já, afere-se a relevância deste grande historiador marxista, falecido em 1º de Outubro de 2012.

“Sobre História” é uma compilação de palestras e ensaios proferidos/redigidos nas últimas décadas do século XX tendo como tema reflexões acerca da própria história: para aqueles familiarizados com os cursos de graduação de história, estamos diante das cogitações que informam as disciplinas de Metodologia da História, Filosofia da História ou Teoria da História.

Ao assumir a concepção materialista da história, Hobsbawm já assume alguns bons combates, por exemplo com uma certa tendência bastante em voga no âmbito acadêmico e que se refere ao pós modernismo. Para o pós modernismo, não há por exemplo a possibilidade de se aferir um sentido para a história e não se demarcam fronteiras claras entre a história e a ficção. Hobsbawm contra argumenta estabelecendo que a história está comprometida com as evidências: a história investiga o real e por isso não é ficção.  Todavia, isto não significa que exista uma história definitiva sobre cada evento histórico. Cada nova geração suscita novas questões. Consideremos por exemplo a Revolução Russa e suas histórias. Com o fim da URRS e mesmo com a queda do Muro de Berlin novas gerações de historiadores puderam apreciar a história da Revolução Russa sob uma nova perspectiva, ou seja, escreveram uma nova história, a partir de novas questões. Quanto ao sentido da história, trata-se de um pressuposto que informa mesmo uma noção mesmo incontroversa que diz respeito ao progresso em que pese antropólogos reivindicarem uma certa equiparação a título metodológico entre a civilização e a tribo de índios mundurucus. Como se sabe, o pressuposto marxista é que a sociedade cingida em classes sociais corresponde a pré-história da humanidade: as verdadeiras possibilidades que inauguram a sociabilidade a história dar-se-ão no comunismo, sociedade sem classes sociais. A sequência de modos de produção, em que pesem algumas deficiências explicativas – por exemplo o não desenvolvimento do capitalismo em partes do mundo como na China – dão um aspecto geral teleológico à história.

Bons capítulos dos ensaios de Hobsbawm são dedicados à contribuição de Marx à historiografia, incluindo mesmo uma Introdução ao Manifesto Comunista. A Concepção Materialista da História em Marx foi formulada em meados de 1840 e já se constata aspectos de sua aplicação no “Manifesto Comunista” de 1848, antes portanto do desenvolvimento da sua “Contribuição à Crítica da Economia Política” e “O Capital V. I”, concretizados a partir das pesquisas de Karl M. na Biblioteca Britânica de Londres desde o Verão de 1850. A noção de história de Marx envolve uma ideia de que a história do homem corresponde ao controle ou domínio crescente do mesmo sobre a natureza – daí referir-se à revolução neolítica e ao progressivo desenvolvimento de forças produtivas que envolvem a agricultura, a metalurgia, com concomitante criação das cidades e desenvolvimento da escrita.

Hobsbawm reitera em diversas passagens que a grande contribuição de Marx para os historiadores foi a concepção materialista da história – fato reconhecido, de resto, por muitos não marxistas. É preciso aqui esclarecer que “materialismo” não deve ser compreendido em sua acepção vulgar e ser confundido com “coisa” ou “matéria” em oposição ao “espírito”. Materialismo conforme a acepção marxista que advém da “Ideologia Alemã” (1846) significa relações sociais historicamente determinadas. Portanto, o materialismo histórico subverte por exemplo o positivismo de Leopold Von Ranke que tem como chave explicativa da história uma narrativa meramente cronológica baseada nos “Grandes Eventos”, quais sejam, Reis, Batalhas e Tratados Diplomáticos. O Materialismo Marxismo se baseia na primazia das relações sociais ou mais especificamente nas relações sociais de produção e buscará, por exemplo, no âmbito na Idade Média, buscar respostas especialmente dentro das relações de trabalho na seara do terceiro estado e do modo de produção feudal.

Um dos capítulos que certamente mais interessam os leitores brasileiros é “O Que a História tem a Dizer-nos Sobre a Sociedade Contemporânea”?

Em geral os cursos de História ensinam três grandes pecados aos discentes que ingressam na graduação. O Pecado do Anacronismo que envolve ler os desejos pessoais do presente no passado; o Pecado da história contrafactual que envolve fazer a pergunta “e se”? (E Se Lênin não tivesse morrido em 1924 e dirigido a revolução russa por mais 20 anos? Quais seriam os Destinos da URSS?) E o Pecado dos prognósticos: historiadores se voltam ao passado e não fazem futurologia. Pois Hobsbawm de forma ousada encoraja seus alunos ouvintes tanto a refletir sobre a história contrafactual quanto a fazer prognósticos sobre o futuro: o futuro da tendência histórica e o futuro do acontecimento. (De certa maneira é possível imbricar a história contrafactual e os prognósticos).

Certamente estamos diante de enormes desafios, mas também certamente a história oferece mais possibilidades para o prognóstico do que outras disciplinas ou nenhuma disciplina como ....a de um vidente. O historiador oferece a experiência histórica e a perspectiva histórica – sempre fundamentado no real e nas evidências. E os prognósticos, se não são feitos pelos historiador, serão feitos por outros, como políticos ou economistas. Na história, ao ler os escritos de Lênin entre abril de 1917 e outubro de 1917 afere-se a capacidade de prognóstico da tendência do movimento histórico pelo dirigente político: existiam grandes vacilações mesmo dentro do Partido Bolchevique quanto à possibilidade de vitória da insurreição e da tomada do poder e foi necessária uma luta política dentro do partido baseada na clarividência histórica de Lênin para a vitória de outubro de 1917.

Um dirigente do PSTU em 2013 lançou um vídeo sobre as mobilizações em curso no Brasil dizendo com todas as letras que não havia risco de golpe de estado no país, que os EUA e a União Europeia (ou seja o Imperialismo) não desejavam o Golpe de Estado no Brasil. Em 2016 ocorreu o Golpe de Estado no Brasil e já temos elementos para supor que houve participação do imperialismo nesta seara. Se o historiador opera com os elementos da perspectiva, e, mais importante, se nos deparamos com o fato de que não há um limite definido entre presente passado e futuro, parece-nos que a atividade de prognósticos é uma atividade intelectual a ser desenvolvida de maneira privilegiada pelo historiador. E aqui saudamos o PARTIDO DA CAUSA OPERÁRIA que vinha alertando sobre os riscos do golpe de estado no Brasil há anos.

O tema da teoria da história parece-nos um dos mais fascinantes da disciplina da História. A leitura deste ensaio de Eric Hobsbawm todavia extrapola os limites do público especializado.  É necessário compreender a história e aqui temos mais ferramentas conceituais para tal tarefa. 

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

“Escritos Avulsos II” – Machado de Assis

“Escritos Avulsos II” – Machado de Assis



Resenha Livro - “Escritos Avulsos II” – Machado de Assis – Ed. Globo

É quase trivial a afirmativa segundo a qual Machado de Assis é “um dos maiores escritores das letras brasileiras”. Podemos dizer sem exagero que a obra Machadiana tem um estatuto universal e ombreia clássicos que transcendem o tempo e as fronteiras geográficas: Machado de Assis é um clássico da literatura universal tal qual Dostoiévski com suas façanhas “Crime e Castigo” e “O Idiota”, Fernando Pessoa e seus respectivos heterônimos e Shakespeare com uma produção vasta, apenas para ilustrarmos respectivamente exemplos do romance, da poesia e do teatro.

Tal estatuto universal em Machado de Assis diz respeito particularmente aos seus contos e romances (gêneros literários que mais possibilitaram exsurgir seu talento) e especificamente à segunda fase de sua produção artística. Como se sabe, o autor fluminense costuma ter sua produção literária dividida em dois grandes turnos. Num primeiro momento, romances como “Helena” (1876), “Ressureição” (1872) ou “Iaiá Garcia” (1878) se situam na terceira fase do romantismo brasileiro. São romances de estilo folhetinesco, geralmente situados em ambiente urbanos e restringindo a tendência de forte idealização/platonismo amoroso que informava a questão sentimental da segunda fase do romantismo, o período byronista. Adverte-se aqui que falamos em “estilo” folhetinesco, ou seja, uma prosa associada ao periodismo/jornalismo e mesmo dirigida a um certo público feminino leitor dos jornais, que acompanhavam as tramas a cada dia – tal qual as telenovelas mais recentes. Mesmo porque o salto qualitativo em Machado de Assis a partir do qual se funda uma nova escola literária dá-se também com um romance publicado na forma de folhetim, uma “novela” de março a dezembro de 1880, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.

Qual é o salto de qualidade de 1881, ano de publicação das Memórias de Brás Cubas?

Brás Cubas é um defunto autor ou um autor defunto. Inicia as suas “Memórias” após uma experiência traumática cheia de simbolismos em que a morte surge-lhe como a Natureza, com um gênero feminino – e em seus delírio vê passar a história de toda a humanidade. O expediente de tratar de suas memórias após a morte serve como mecanismo que dá vazão aos segredos mais íntimos da alma e do coração. A morte cria as reais possibilidades de se exprimir com uma verdadeira indiferença em face do olhar do outro – afinal trata-se sempre de um autor defunto ou de um defunto autor. Tal efeito cria a possibilidade de uma narrativa franca, excessivamente franca. Como diria em certo conto de Machado de Assis, a verdade é osso duro de roer, in verbis:

SERMÃO DO DIABO

(....)



16º Igualmente ouviste o que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao Senhor os teus Juramentos.

17º Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade, nua e crua, além de indecente, é dura de roer; mas jurai sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou, todos acenderão velas”.


O realismo literário envolverá uma arguta análise psicológica das personagens, a crítica social e dos costumes, a objetividade em detrimento da subjetividade na descrição dos ambientes e pessoas, uma certa conexão com concepções positivistas a partir das quais haveria a possibilidade de observar e reproduzir fielmente a realidade (propósito levado adiante com maior intencionalidade pelo naturalismo). E um aspecto que em Machado de Assis nos é fundamental para compreender os contos em comento: se no romantismo, o amor e o casamento são frequentemente motivos de realização pessoal, no realismo, descambam o amor e o casamento corriqueiramente no trágico-cômico e são o pretexto para atestar a personalidade mesquinha, egoísta, interesseira, de um ser humano com motivações distintas daquele herói romântico dos romances de Alencar e das primeiras obras do romantismo brasileiro, por ex.

Ainda quanto ao estilo, Machado de Assis, em sua fase derradeira, ganha um refinamento no humor e na ironia, e passam a ser frequentes certos lances imaginativos e criativos de diálogo com o próprio leitor, remissões a filósofos e tiradas retóricas – sempre num tom humorístico.

Aliás, chega a ser impressionante como alguém sem escolaridade superior e auto- data, advindo do Morro do Livramento, filho de pintor de paredes e de lavadeira, neto de escravos alforriados, mulato e gago, com todos estes predicados, enfim, ter ascendido culturalmente e ter sido reconhecido em sua época, num país ainda eivado pela chaga da escravidão. Em romances, contos e crônicas há citações em francês, latim, inglês, remete-se a filósofos, destacando-se sempre Montaigne e filósofos gregos. 

Consta que Machado de Assis era um leitor compulsivo e conhecia as obras de Gustave Flaubert, E. Zola, Balzac, Shakespeare, Pascal e Shopenhauer, entre outros. É muito comum observar citações de termos jurídicos em sua prosa, utilizados fora do contexto processual, mas dentro do escopo de uma prosa, seja de um conto, crônica ou romance: o que é interessante é que, ao contrário da grande maioria dos bacharéis de sua época que se aventuravam no mundo das letras e tinham o diploma de direito, parece que Machado de Assis foi assimilando os conceitos jurídicos como redator jornalístico do “Diário do Rio” ao cobrir as sessões do Senado. E pode-se sempre reparar como os termos jurídicos são utilizados com precisão, ao contrário de um jornalismo contemporâneo tacanho até mesmo no acerto da língua portuguesa, confundindo o “furto” com o “roubo”.   

Estes “Escritos Avulsos II” correspondem a uma compilação de autoria da Editora Globo. Boa parte destes contos foi primeiro publicada sob nome “Relíquias da Casa Velha” (1906). Alguns dos Contos foram publicados por Machado de Assis entre 1874-78 no “Jornal da Família” e outros no “Jornal Estação” em 1882. E aqui reside o interesse singular desta coletânea: se o ponto de virada da obra de Machado de Assis, do romantismo ao realismo se situa no Romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”(1881), é possível encontrar embaralhados nestes contos desde prosas com caracteres que pendem para o romantismo e para o realismo como “História Comum” (em função da sacada filosófica e do refinado humor) ou “Uma Carta” - cujo final destoa bastante dos motivos amorosos associados à realização através do amor, mas antes ao efeito trágico-cômico:

“Celestina empalideceu. Quando a preta a deixou só, Celestina deixou cair uma lágrima – e foi a última que o amor lhe arrancou”.

Celestina era uma solteirona de 39 anos e “não era bonita”. Recebeu uma carta de amor anônima pelas mãos intermediárias de uma escrava e exultou, pensando ter um admirador secreto.

“Celestina ficou realmente fora de si. A irmã não viu o que era, mas concluiu que alguém teria passado na rua, que enchera a alma de Celestina de uma vida desusada (obsoleta). Com efeito, durante a noite, esteve ela como nunca, alegre, e ao mesmo tempo pensativa, esquecendo-se de si e dos outros”.

A decepção advém da descoberta de que a carta não era destinada a Celestina: a escrava cometera um engano e a missiva tinha como destinatária a irmã Joaninha.

Outros contos parecem ter o estilo folhetinesco associado àquele público feminino leitor de jornais, citadino e eventualmente pouco afeto a uma literatura com maiores possibilidades de reflexão acerca da consciência das personagem e especialmente da crítica social daquele  tempo. É o caso do conto 

“O Caso Romualdo”. Aqui é como se houvessem todos os ingredientes para um desfecho realista, mas se observa o procedimento contrário: D. Carlota é uma jovem viúva desejada por Romualdo, amigo do de cujus (falecido). Todavia, o morto, quando convalescia, esteva fora da corte donde morava com a esposa e obteve do amigo Romualdo a promessa de que a esposa ou se conservasse viúva ou se casasse com um advogado chamado Dr. Andrade. Tal promessa cria um impasse para 

Romualdo e vejamos qual o procedimento literário a partir do qual a consciência da personagem nos é revelada:

“Romualdo podia não ir adiante, e desejou isso mesmo. Estava certo da sinceridade da viúva, e da resolução anunciada; mas o diabo do Andrade com os seus modos finos e olhos cálidos fazia-lhe travessuras no cérebro. Entretanto, a solenidade da promessa tornou a aparecer-lhe como um pacto que se havia de cumprir, custasse o que custasse. Ocorreu-lhe um meio termo: obedecer à viúva, e calar-se, e, um dia, se ela deveras se mostrasse disposta a contrair segundas núpcias, completar-lhe a declaração. Mas não tardou em ver que isto era uma infidelidade disfarçada; em primeiro lugar, ele poderia morrer antes, ou estar fora, em serviço ou doente; em segundo lugar, poderia ser que lhe falasse, quando ela estivesse apaixonada por outro. Resolveu dizer tudo.”

Em que pese as vacilações, Romualdo adimpliu com as obrigações a despeito de seus interesses individuais: esta não é a regra quando observamos o tratamento da questão sentimental e do amor no contexto do realismo literário.

O que é certo é que existem nos contos de Machado de Assis fenômeno similar aos romances. Os contos de feitio romântico não têm o humor e ironia, as possibilidades de reflexões filosóficas por meio da análise psicológica que se extraem por exemplo de “O Alienista”[1] (1882). Todavia, reiteramos que tanto as obras “juvenis” quanto de “maturidade” de Machado de Assis devem ser conhecidas, não só pelos méritos artísticos, mas como preciosas fontes acerca do passado brasileiro do Segundo Império, particularmente o ambiente urbano fluminense, as lojas da famosa Rua do Ouvidor, o amplo leque social desde uma alta, média e pequenos camada de proprietários e funcionários públicos (Ex. advogados, comendadores, parlamentares, militares, jornalistas, estudantes, médicos etc.) enfim, as relações sociais e culturais que perpassam as histórias, especialmente em face da tendência narrativa objetiva de Machado de Assis. Sua narrativa confere a possibilidade de se adentrar à intimidade doméstica dos lares burgueses do Brasil do II reinado, incluindo passagens críticas (sutis) acerca das contradições envolvendo a força de trabalho escrava.

  





[1] Alguns consideram “O Alienista” uma novela. 

terça-feira, 1 de novembro de 2016

“Dois Anos No Brasil” – Auguste Françoise Biard

“Dois Anos No Brasil” – Auguste Françoise Biard

Resenha Livro - “Dois Anos No Brasil” – Auguste Françoise Biard – Edições do Senado Federal Vol. 13




Quadro – Índios do Amazonas Adorando o Sol - Auguste Françoise Biard - 1860
           

O mais provável é que August Biard seja reconhecido por suas telas, pinturas e desenhos correspondentes ao período em que esteve no Brasil, de maio de 1858 até fins de 1859. São realmente belas fontes visuais que nos transportam a um país em que ainda há todos os matizes e aspectos da sociedade colonial, a começar pela escravidão, ainda vigente.

Este “Dois Anos No Brasil” corresponde a uma espécie de relato de viagem deste pintor, desenhista e caricaturista francês, muito bem escrito por sinal, e que dá um tom impressionista através das palavras. O autor percorreu das cidades do Rio de Janeiro diante de uma feira de compra e venda de escravos até o longínquo afluente Rio Madeira do Amazonas de onde pintou traços vivos da Tribo Munducuru. A leitura deste relato de viagem deste já abre duas grandes possibilidades àqueles que desejam aprofundar os estudos sobre o passado, particularmente o período colonial Brasileiro: (i) o próprio entendimento das fontes visuais correspondente aos diversos quadros e pinturas legados por Biard e outros; (ii) o que, parece-nos, algo ainda mais interessante, qual seja, um outro tipo de olhar sobre a realidade nacional que é informada pelo olhar estrangeiro, o olhar do “outro”. Quanto ao segundo ponto, é necessário sempre fazer mediações, a começar pelo período histórico em que a obra foi redigida e as possibilidades teórico metodológicas que de resto estavam comprometidas num momento em que sequer se cogita a ideia da História enquanto uma disciplina com metodologia, com método próprio. Nem nos parece sequer ter sido a ideia/intenção de Biard  escrever um livro de História, com cuidados e rigores metodológicos. O que queremos chamar atenção é que temos em mãos um olhar desde fora e que possibilita exsurgir interpretações ou leituras que eventualmente passassem batido por nacionais que, ao viverem e experimentarem a realidade tal qual ela se manifesta, podem naturalizar o que é fenômeno histórico, contingencial e produto de decisões políticas/jurídicas/administrativas/transitórias.

Biard manifesta grande estranheza com o fato dos dejetos humanos serem no Rio de Janeiro de meados do séc. XIX (sede da corte Imperial) displicentemente jogados ao mar à vista de todos, por exemplo. A chaga da escravidão não é só a base da força de trabalho mas manifesta-se naquilo que L. Althusser chama de sobredeterminação, qual seja, tem profundo conteúdo ideológico, o que não passa desapercebido pelo olhar do viajante francês. Ainda na Corte, Biard deseja fazer pinturas aproveitando os belos relevos da cidade do Rio de Janeiro e, em que pese poder perfeitamente carregar suas telas e pinceis, foi notificado de que no Brasil não cairia nada bem um homem branco como ele andar publicamente sem um escravo que lhe carregasse tais objetos – obrigando-o meio a contragosto a procurar um serviçal.

Como dissemos, o relato de viagem de Biard ajuda-nos a compreender outras fontes visuais que são obra de estrangeiros que em período equivalente, também passaram pelo Brasil e retrataram nossa sociedade e costumes. Citamos Johann Moritz Rugendas, pintor alemão que viajou por todo o Brasil durante o período de 1822 a 1825 – seu trabalho "Negres a fond de calle" ("Navio negreiro") representa o poema épico "Navio Negreiro" do poeta Castro Alves. Este mesmo pintor tem uma gravura muito conhecida denominada “Capitão do Mato” de 1823 que serviu de capa de uma das edições do ensaio “Retrato do Brasil” de Paulo Prado. Rugendas pintou temas referentes à capoeira (uma iniciativa dos negros que era proibida ao seu tempo) e festas populares como a “Dança do Lundu”. 

Outro importante artista, na esteira de Rugendas e Biard, foi o francês Jean B. Debret. Foi pintor, desenhista e professor. Integrou a missão Artística Francesa que esteve atrelada à inciativa da vinda da família imperial em terras brasileiras em 1808 e fundou no Rio de Janeiro a Academia de Artes e Ofícios. Debret pintou temas interessantes sobre o ambiente doméstico em que se identifica as relações mais íntimas entre brancos e os negros na esfera do lar, sendo uma de suas mais famosas peças, um jantar brasileiro de 1827 em que as interpretações podem vacilar desde um conservadorismo do tipo do de Gilberto Freyre que irá propugnar após toda uma série de reflexões sobre a mistura racial no Brasil a tese da “democracia racial”, até interpretações que observarão o problema da exploração do trabalho, da violência que informa o instituto da escravidão (mesmo no ambiente doméstico) e que verá no quadro de uma mulher alimentando uma criança negra na cozinha pelas mãos aos pés quase algo como a mesma iniciativa daquele que alimenta seu cão de estimação. (O que é indiscutível é a natureza jurídica de “res”[1] do escravo).

A Viagem de Biard

“Soberbo o nascer do sol a 1º de maio. Eu passara a noite inteira no convés vivamente impressionado por um singular efeito no céu desde que transpuséramos o equador. Frequentemente surgia no firmamento límpido extensa nuvem opaca, quase preta, e foi acima de uma dessa nuvens ameaçadoras que me apareceu pela primeira vez a constelação do Cruzeiro do Sul, somente visível no hemisfério austral. Já se sumira há dias a estrela polar e muitos dentre nós não a tornaríamos a ver. Este pensamento me entristeceu. Todavia, ao avistar esses astros novos, como que sentia mais a distância aberta entre mim e os meus, dando-me ânsias de regressar para junto deles o mais depressa possível. Em meio dessas meditações, desses projetos de volta, como interrogasse intensamente o horizonte, vai se formar outra nuvem em breves instantes substituindo a que atravessara já o espaço. Pareceu-me distinguir também algumas aves. Redobrou-se-me a atenção. Sinais de árvores no fundo do céu, semelhantes a pontos escuros flutuantes. Levanto-me, contendo-me a respiração; não, não estou enganado. Tenho a América diante de meus olhos.”.

A trajetória da Biard, desde a Europa, depois de uma pequena escala em Inglaterra e Portugal (Lisboa), segue o roteiro: Ilha da Madeira; Pernambuco; Bahia; RJ (donde passa 6 meses); Província de ES e Colônia de Santa Cruz (mais 6 meses); RJ; PA (por onde viaja pelo Rio Negro); Manaus (37 graus na sombra); Rio Amazonas e Rio Madeira. Daqui Biard retorna exausto e doente em face do calor, picadas de mosquitos que o deixam com olhos e narizes inflamados e  fraqueza em face da comida à base de banana, queijo duro e peixe seco.

Certamente, a grande contribuição deste relato de viagem são as valiosas  fontes de informação acerca da história do cotidiano, das relações sociais e da cultura num contexto em que o país, recém saído da emancipação política, em quase tudo resguardava os aspectos essenciais do regime colonial. Na Bahia, Biard observa um fato inusitado, mas que de certo modo informa como o instituto da escravidão resistia naquela sociedade. Escravos carregam seus donos sob cadeirinhas e numa rua estreita observa-se um bate boca em que duas mulatas madames sob as respectivas cadeirinhas exigem passagem criando um impasse. De outro lado, Biard observa que a suspensão efetiva do tráfico de escravos (1850) acabou favorecendo a qualidade de vida dos cativos, ao menos parcialmente. Biard considera que os escravos brasileiros tendem a ser mais bem tratados do que os seus pares norte-americanos, a depender ao menos do seu dono: chegou mesmo a presenciar cena de escravo que fugira justamente após ser alienado por um dono que até então, ao que tudo indica, era um proprietário benevolente. De todo modo, com o fim do tráfico de escravos, houve aumento no preço dos escravos e menor prática de punição corporal. Aliás, Biard verifica que colonos que vêm à terra com promessas de aqui angariar meios de vida através do desforço na agricultura têm vida mais difícil que os próprios escravos:

“Em regra, a vida do escravo no Brasil é bem mais suportável do que a dos infelizes colonos, como os quais nem sempre se cumpre o que se prometeu ao tentá-lo no seu próprio país. Vêem-se pelas ruas desditosos filhos de todas as terras: pálidos, magros, pedindo pão. Vi dois chineses, um deles cego, receber uma esmola de um negro.”

Há uma interface curiosa entre um diagnóstico presente em “Dois Anos no Brasil” e “Macunaína” de Mário de Andrade. Observa-se apenas uma passagem do relato de viagem de bordo do viajante francês em que ele se aventura a cogitações políticas. Vejamos:

“Presenciara inúmeras vezes discussões políticas, nem sempre compreendidas direito. Diziam uns que o Brasil seria um dia presa de aventureiros americanos; afirmavam outros que em breve o Norte se separaria do Sul, tornando-se república, forma de governo aliás que o resto acabaria também adotando. Sobretudo achavam que tais acontecimentos seriam consequências da dificuldade de se substituir a raça negra, máxime não houvesse auxílio dos colonos. Faltavam braços e que futuro poderia ter uma terra que não produzisse? Ouvira muitas outras coisas e talvez todos, ao mesmo tempo, tivessem razões. Por minha parte, depois que passara a viver nas florestas, arriscava também minha opinião política, a meu jeito, e minhas reflexões, desta vez, encontravam berço na história das invasões.

O Brasil fora conquistado pelos portugueses; por algum tempo os holandeses dominaram aqui, mas depois os portugueses conseguiram desalojá-los; da fusão destes últimos com os indígenas se originou a raça brasileira. As tribos selvagens foram pouco a pouco se refugiando no interior do País e, dizem, virá uma época em que outros povos substituirão os brasileiros. De mim julgava que, se tal acontecer, inevitáveis inimigos, a seu tempo, porão em fuga vencedores e vencidos e ficarão unicamente os senhores desta bela e magnífica terra. Incontáveis legiões cavam há cem anos minas subterrâneas; exércitos mais numerosos que as areais da praia se espalham sem que possam ser contidos; tangidos de um lado, eles voltam mais encarniçados de outra parte. Eis os verdadeiros inimigos do Brasil: os que têm compelido tribos inteiras a se mudar de uma zona para outra, abandonando suas casas e o solo em que nasceram – são as formigas. Falo seriamente: vi móveis maciços e enormes portas de madeiras resistente como ferro se desmancharem como pó”.

O que parece ser diagnóstico discutível quanto às raízes das grandes questões nacionais, ao menos coincide com uma máxima de um dos maiores romances modernistas brasileiros: “pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são”. E de resto, Biard enfrentou no Rio de Janeiro de 1858 na única hospedaria disponível do RJ um quarto sem janela todo ele infestado de baratas pelo chão. Ao longo da viagem seria acometido de picadas de mosquitos, formigas, além de lidar com bicho do pé, carrapato, bichos de galinha, mariposas e ratos. A Febre Amarela assustava toda a população do Rio de Janeiro e fazia com que as classes ricas deixassem a cidade a cada ciclo da doença – os rumores dos perigos da doença já chegavam até a Europa.

Cuidados Finais

Biard é além de pintor um típico naturalista do século XIX: é colecionador de orquídeas, entomologista (especialista em insetos) e na viagem dedica bons momentos em caçar animais, como jaguares, sapos e cobras para sua coleção pessoal. É um homem de seu tempo e certamente o que poderíamos ponderar como ponto baixo de seu relato são algumas passagens de cunho racista, em face dos negros e especialmente em face dos índios. Biard cria desconfiança com os Índios que o acompanham e tira conclusões de que os mesmo têm tendências indolentes e traiçoeiras ("o índio não demonstra seus sentimentos por expressão facial"), além de demonstrar pensar que os nativos são movidos pelo interesse da cachaça. Desde o séc. XIX e particularmente em fins deste século, ganha relevo o determinismo, segundo o qual as heranças do meio geográfico ou da raça são fatores essenciais e inescusáveis na conformação da personalidade; o darwinismo social que seria uma solução de continuidade entre o propósito do imperialismo e o neocolonialismo e uma ideia de missão civilizatória relacionada ao “fardo do homem branco” são justificativas ideológicas para expedições de europeus em Ásia, África e mesmo América Latina num claro sentido de dominação sócio econômica; as teses de Lombroso e o direito penal associado à conformação do fenótipo também dão sustentação às teses racistas. Com tais considerações, queremos sempre encorajar o leitor a conhecer “Dois Anos no Brasil” a despeito de alguns lapsos racistas que estão intimamente ligados ao contexto da obra e do autor.

É uma obra escrita que remonta bastante aos quadros e desenhos do autor. Temos acesso particularmente a detalhes da história do Brasil que passam batido à história oficial mas que vão ser observados aos olhos de alguém que vê detalhes – um pintor de talento. O observador que descobre a ave Arara e aprende que o bicho tem este nome/fonema justamente por casa do som/canto que produz; descobre um monarca do tipo distinto dos seus pares europeus, uma vez que D. Pedro II não só despachava pessoalmente, como recebia pessoas humildes, ao contrário do que ocorria na Europa donde as solicitações eram feitas indiretamente por bilhetes e só junto à nobreza; aprende-se até uma prática curiosa dos populares negros-escravos jogarem petecas nos transeuntes e soltarem grandes gargalhadas - Biard releva a brincadeira diante da triste sorte dos negros escravos. Estamos diante da plenitude da história do cotidiano do Brasil que mal saiu do seu estatuto de colônia mas que ainda mantêm sua herança de séculos daquele estatuto: escravidão, latifúndio, a mais profunda desigualdade econômica associada à certa centralização política que criaria um impasse solucionado com o advento da República.    
    




Biard, François-Auguste (1862)
Os Mundurucu às margens de um afluente do rio Madeira





[1] Coisa.