domingo, 31 de janeiro de 2016

“Presença de Althusser” – Márcio Bilharino Naves (Org.)

“Presença de Althusser” – Márcio Bilharino Naves (Org.)






Resenha Livro – 209 - “Presença de Althusser” – Márcio Bilharino Naves (Org.) – Coleção Ideias 9 – Instituto de Filosofia de Ciências Humanas – Unicamp 

“O grande interesse político e teórico da Revolução Cultural é o de constituir uma solene evocação da concepção marxista da luta de classes e da revolução. A questão da revolução socialista não é resolvida com a tomada do poder e a socialização dos meios de produção. A luta de classes continua sob o socialismo, em um mundo submetido às ameaças do imperialismo. É então, antes de mais nada, na ideologia que a luta de classes decide a sorte do socialismo: progresso ou regressão, via revolucionária ou via capitalista”. “Sobre a Revolução Cultural”. Louis Althusser. Cahiers Marxistes-leninistes nº14 1966 Trad. Márcio Bilharino Naves. 

Resenha dedicada ao camarada Vinícius Gonzaga que gentilmente me presenteou com um exemplar deste livro. 

Quem tem medo de Louis Althusser? Esta cogitação certamente tem uma aplicação direta dentre a maior parte dos intelectuais que se reivindicam marxistas aqui no Brasil. Como se sabe, dentro desta tradição, são muitas as distintas leituras da obra de Marx que irão resultar em respectivas vertentes com suas particularidades. Pois Louis Althusser, filósofo marxista francês, abre toda uma nova e original interpretação do pensamento de Marx que se choca com a hermenêutica dominante dentre os marxistas brasileiros. Grosso modo, o ponto central da polêmica está  na interpretação dada às obras do jovem Marx. 

Desde pensadores influenciados pelo pensamento de G. Lukács, particularmente o chamado grupo dos  intelectuais do Rio de Janeiro como Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, e em oposição à Althusser, esta linha interpretativa buscará sempre encontrar uma solução de continuidade entre as obras de juventude e de maturidade de Marx. Lembramos que em sua juventude, como jovem hegeliano, as principais cogitações de Marx perpassam problemas da filosofia, sendo caro a este grupo de filósofos temas como a Alienação, por exemplo. Ao encontrar esta solução de continuidade, esta proposta de interpretação acaba de certa maneira coadunando com um Marx humanista, o que irá ter implicações políticas importantes, que não desenvolveremos mas apenas apontaremos, que é a da defesa da tese da democracia como valor universal em “Coutinho” e uma epistemologia refratária a uma orientação científica. Em sentido oposto, Althusser entende haver um corte epistemológico dentre as obras de juventude e de maturidade – poderíamos situar “ A Ideologia Alemã”  (1846) com seus conceitos originais de materialismo histórico, ainda que num momento ainda embrionário, como fase de transição decisiva, de salto para a obra de maturidade, a que possui os elementos constitutivos de Marx em sua plenitude que é o “Capital”.

“Presença de Althusser” é a reunião dos seguintes artigos referentes ao pensamento do teórico marxista francês. “O itinerário de Althusser” de Nicole Thévenin que faz um rápido inventário das mudanças ao longo do tempo do próprio pensamento do Althusseriano dentre os anos 1960-70; “A teoria da ideologia de Althusser” de Francisco Sampedro, lembrando como Althusser avança e aprofunda o conceito de ideologia, dentre outros, se utilizando mesmo das contribuições de Freud e Lacan; “Ideologia jurídica e ideologia burguesa – ideologia e práticas artísticas” de Nicole Thevenin, que remete à importância da ideia de Sujeito de Direito para conformação da sociedade capitalista; “O que significa “ciência da história” de Maria Turchetto; “Althusser, Spinoza e a temporalidade plural” de Vitorino Morfino em que se discorre sobre algumas ideias de filosofia da história e suas interfaces frente ao pensamento de Spinoza; “Sobre Gramsci e Althusser como críticos de Maquiavel” – Danilo Enrico – e aqui o autor busca identificar pontos em comum e as diferenças nas análises dos dois autores; “Althusser e a revolução cultural chinesa” de Márcio Bilharino Naves, uma breve introdução ao texto de Althusser sobre a RC e  “Sobre a Revolução Cultural” – Louis Althusser – texto escrito em 1966 francamente apoiando a RC como uma necessidade interna da revolução chinesa no sentido de não fazê-la regredir ao capitalismo. 

É compreensível que intelectuais não concordem com a interpretação original das obras de Marx feita por Althusser. Mas como explicar o verdadeiro silenciamento a que tem sido exposta a obra de Althusser, ao menos aqui no Brasil? Não temos notícias de publicação de algumas das obras fundamentais deste pensador em língua portuguesa e a exposição de suas ideias apenas dá-se através do árduo trabalho militante e desinteressado de alguns intelectuais. E as críticas que se faz a Althusser quando não são sobre suas teses, costumam ser no mínimo superficiais. Fala-se por exemplo que suas obras são herméticas, seu texto é inacessível e é portanto meramente academicista. Ora por estes critérios, poderíamos selecionar passagens do Capital ou Grundrisse e fazer o mesmo tipo de ponderação e ninguém deixará de lembrar que Marx fundou a 1ª internacional e jamais foi um academicista. Outros falam da tragédia pessoal envolvendo Althusser e sua companheira. Trata-se aqui de um critério moral que escapa à análise da obra. Mais uma vez sabemos por meio de correspondências que Marx teve lapsos de racismo diante do seu genro Paul L., cubano e mulato, e nem por isso cogitamos desconsiderar as suas teses. 

Althusser tem certamente muito a colaborar e a acrescentar ao marxismo. Podemos partir com o conceito de ideologia. Até então ideologia significava algo bastante simples, além de um signo negativo. A ideologia é o conjunto das ideias e interesses da classe dominante que surgem junto às demais classes como se fossem de seu interesse, ou como se fosse de interesse universal. Assim, na sociedade capitalista, quando se fala em “Liberdade” comumente está se falando em um conceito ideológico, ou seja, na liberdade da burguesia contratar força de trabalho e extrair mais valia e na liberdade do trabalhador ora morrer de fome ora vender sua força de trabalho.

Ora para Althusser a ideologia passa a assumir um sentido muito mais complexo. Em primeiro lugar o filósofo se ocupar das fontes da ideologia, ele se pergunta de onde elas vêm, qual a sua origem e daí cria um conceito fundamental, os Aparelhos Ideológicos do Estado. 

Ademais, Althusser observa mesmo efeitos mais sutis da ideologia.

“Se toda função social da ideologia se resumisse no cinismo de um mito (como as “belas mentiras” de Platão ou dos técnicos da publicidade moderna) que a classe dominante fabricaria e manipularia de fora para enganar aqueles que ela explora, a ideologia desapareceria com as classes. Mas como vimos que, mesmo no caso de uma sociedade de classes a ideologia é ativa sobre a própria classe dominante e contribui para modelá-la, para modificar as suas atitudes para adaptá-las às suas condições de existência”. Louis Althusser, A favor de Marx, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 208.

Como colocamos no início desta resenha, o medo de Althusser certamente envolve mais do que discordâncias pontuais dentro da análise do pensamento de Marx. São motivos que envolvem questões de fundo, o próprio método marxista, aqui devendo ser encarado como uma ciência. Extrair esta verdade com todas as implicações é algo que a maior parte das organizações de esquerda que se colocam como marxistas provavelmente não poderão ou não terão interesse em fazê-lo. Mas sempre é preciso dizê-lo, e com ênfase nestes tempos de total confusão teórico-metodológica: marxismo-leninismo é uma ciência, dentre outros, uma ciência da história.              

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

“O Duelo” – A. P. Tchekhov

“O Duelo” – A. P. Tchekhov




Resenha Livro – 208- “O Duelo” – A. P. Tchekhov – Ed. 34 – Trad. Marina Tenório
O escritor russo A. Tchekhov desenvolveu e mesmo especializou-se no gênero dos contos, fato que diria respeito a questões específicas de sua trajetória de vida. Nascido na cidade portuária de Taganrog no sul da Rússia em 1860, o escritor é filho de um humilde comerciante local e de avós servos. Diferentemente, portanto, de escritores advindos da aristocracia russa do XIX, Tchekhov tem esta característica de origem social baixa: em 1879 ingressa na Faculdade de Medicina de Moscou e para sobreviver, sustentar a família e cobrir as despesas estudantis, passa a publicar seus primeiros contos em periódicos de jornais moscovitas. Aqui seria o seu ponto de partida como contista. 

Mesmo após a formatura de Tchekhov como médico, sua fama como escritor já estava se consolidando e em 1886 passa a escrever para a revista Nóvoie Vrênia. Se por uma questão contingencial os contos seriam o gênero literário decididamente mais desenvolvidos na obra do escritor, e aqui destacamos os contos mais famosos, “A dama do cachorrinho” (1899) e “O assassinato” (1895), Tchekhov também desenvolveria trabalhos no gênero do teatro “Tio Vânia” (1897);  “Três irmãs” (1901); e “O Jardim das cerejeiras” (1904), além das novelas.

A título de esclarecimento, podemos situar a novela como um meio termo entre o conto e o romance. Não só obviamente no que se refere ao número de páginas, mas à extensão e profundidade das histórias, aos desmembramentos da narrativa, eventualmente mesmo até ao número das personagens. “O Duelo” é uma novela publicada por Tchekhov no ano de 1891. 

Na sociologia, um recurso interpretativo comumente utilizado é o do “tipo ideal”. Sua origem remete ao sociólogo alemão Max Webber e, na persecução de modelos comuns para finalidades interpretativas, realça-se os aspectos do fenômeno analisado quase como uma caricatura que evidencia por ex. um grande nariz ou qualquer outro traço em evidência. O “tipo ideal” e a caricatura possuem este caráter de esclarecimento ao atender aos aspectos mais evidentes e que saltam aos olhos do fenômeno – e, por suposto, a finalidade do tipo ideal é a de servir como chave explicativa do exame sociológico. Algo parecido pode ser dito no âmbito literatura.  É frequente na cultura de cada povo alguns personagens bastante populares que são reiterados nos distintos gêneros, da literatura à música, etc. No Brasil, para citarmos apenas um e o mais famoso, temos o malandro, que desponta das músicas de Chico Buarque de Holanda até Macunaíma de Mário de Andrade. 

Na Cultura Russa desenvolveu-se no século XIX o equivalente a também um personagem popular, a figura do homem supérfluo, personagem retratado por Turguêniev em Rúdin (ver resenha aqui: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2015/01/rudin-ivan-turgueniev.html) e outros. 
A origem do homem supérfluo é a modernização da Rússia desde meados do séc. XIX tendo como marco essencial o fim da servidão. A influência de ideias liberais, de filósofos que se contrapõem ao peso da tradição secular da religião ortodoxa, as mudanças mesmas no estilo de vida nas capitais engendram uma intelligentsia que teria feito como que a tradição, segundo alguns críticos, teria sido mutilada pela civilização. 

Segundo o posfácio de Marina Tenório:

“Voltemos, porém, ao séc. XIX. Nesse período, começa a ganhar força um novo grupo social, os raznotchíntsi. Saídos de vários estamentos (clero, camponeses, mercadores, soldados, funcionários públicos) e agora com formação superior, não voltavam à própria classe, mas passavam a exercer sobretudo profissões liberais. Essa camada foi o grande celeiro daquilo que depois veio a ser conhecido como intelligentsia russa. Nos meados do século, é ela que começa a ganhar posições de destaque e a ditar tendências no pensamento social, filosófico, artístico, fazendo a aristocracia perder sua posição exclusiva de elite cultural”  

Laiévski representa o homem supérfluo e é o protagonista da história “O Duelo”. Foge com Nadiéjda  Fiódorovna de São Petersburgo: a mulher era casada, mas ambos se amam e decidem se refugiar numa pequena província no Cáucaso, banhada pelo Mar Negro. Antes desta aventura, planejada de modo que aos dois parecia os banhos de mar, o sol, a vida em harmonia com a natureza e longe da cidade, a  Laiéviski não parecia que haveria os percalços. Não ponderou os pequenos e graves inconvenientes. Quando chegaram ao Cáucaso tiveram que enfrentar o sol escaldante, mosquitos, a mesma refeição que enjoara o protagonista, o tédio mortal e o mal olhar e julgamento de todos os moradores que em pouco tempo sabiam que aquele casal vivia numa situação inadmissível aos olhos de deus, tendo ora a mulher seduzido um homem que poderia perfeitamente ter constituído uma família e tendo o homem seduzido uma mulher casada e destruído uma família. 

Laiévski vai se desesperando com sua situação e deseja romper, mas não tem como deixar Nadiéjda para trás, diante de inúmeros credores, falta de dinheiro e principalmente pena da mulher. Sua conduta é vacilante, na verdade. Von Koren, um zoólogo que odeia o protagonista, reforça sua falta de indulgência consigo próprio. Diz Laiéviski:

“Sou um homem fútil, medíocre, degradado! O ar que respiro, esse vinho, o amor, em uma palavra, a vida, eu a comprei até agora com mentiras, ócio e covardia. Até agora fiquei enganando os outros e a mim mesmo, sofria com isso e os meus sofrimentos eram baratos e vulgares. Eu me curvo timidamente diante do ódio de Von Koren porque de tempos em tempos eu mesmo me odeio e me desprezo”.

Do outro lado, Nadiéjda deixa-se seduzir por dois outros homens distintos, em momentos diferentes, completando a total desmoralização do casal, particularmente diante círculo social do pequeno distrito local.  Seu desespero também a leva a pensar em fugir de modo que cada um do par pensa em fugir do outro, sem revelar seus segredos: o fim do amor que se revelara desde o equívoco da empreitada. Toda esta situação parece sem saída quando, numa discussão com Von Koren, Laiévski é desafiado a um Duelo. 

O Duelo é uma prática que remete aos tempos medievais, não só na Rússia. Está relacionado ao princípio da honra, que foi ferida: o propósito do duelo é restaurá-la. Não avançaremos aqui, desde que não é a intenção desde resenhador revelar os últimos detalhes do livro e incentivar a leitura da novela. 

De outra forma, A. Tchekhov é um escritor muito longe de ser despolitizado, mas que nem por isso se situa, num plano de interpretação de suas intencionalidades políticas, dentro de um campo facilmente identificável. Parece estar mais identificado com questões existenciais e profundas, o que faz com que sua obra, escrita em fins do séc. XIX, ainda nos seja muito comoventes.  

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

“Fuga da História?” – Domenico Losurdo

“Fuga da História?” – Domenico Losurdo



Resenha Livro – 207 “Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas hoje” – Domenico Losurdo – Editora Revan
Domenico Losurdo é historiador marxista italiano com uma vasta produção teórica. É um autor particularmente importante para a esquerda em função de sua capacidade de fazer uma crítica radical, que muitas vezes envolve também posicionamentos bastante recorrentes dentro da esquerda. É professor de filosofia da história da Universidade de Urbino e tem uma pesquisa específica sobre a questão do totalitarismo, sobre as ideias de Gramsci e uma contribuição bastante original sobre a história da URSS, principalmente a partir de sua biografia de Stálin, um título que coloca a discussão sobre o stalinismo em termos realistas e objetivos. 

Lênin morre em 1924 quando os camponeses russos ainda cultivam a terra com instrumentos feitos de madeira, da mesma forma como o faziam durante o feudalismo – o país ainda está impactado pelos efeitos da guerra civil, sob a mira de diversas nações imperialistas. Stálin assume a direção do partidona década de 1920, organiza e prepara o povo russo para a vitoriosa guerra patriótica e deixa o poder na década de 1950 sendo URSS a segunda potência mundial. Um revolução em níveis jamais vistos de desenvolvimento de forças produtivas foram feitas ao ponto de assombrarem os mais céticos críticos do ocidente. O mesmo pode-se falar sobre aumento do nível de escolaridade de uma gama gigantesca da população. São fatos históricos comumente ocultados por discursos ideológicos que tem vasta influência também na esquerda. 

“Fuga da História” retoma este ofício do historiador que acima de tudo é um crítico radical – e que, no caso de Losurdo, se soma a uma saborosa narrativa cheia de ironias, o que torna a leitura ainda mais interessante. Outrossim, “Fuga da História” tem um outro significado, a “praga da autofobia”. Comumente, grupos étnicos, religiosos ou mesmo políticos quando sofrem uma perseguição diuturna podem capitular ao ponto de adotar como seu o ponto de vista de seus opressores. Fazem-no até o ponto de desprezar e odiar a si próprios. Este é o sentido geral deste apanhado de textos sobre o significado da Revolução Russa e da Revolução Chinesa: observa-se como a praga da autofobia acaba sendo assimilada por aqueles que se proclamam marxistas, mas renegam a experiência de outubro e falam de uma “Volta a Marx”.  Diz Losurdo:

“Eis que emerge a palavra de ordem “volta a Marx”. Seria fácil demonstrar que Marx é o filósofo mais decisivamente crítico da filosofia dos retornos. Em sua época, desprezou aqueles que, em polêmica com Hegel, queriam voltar a Kant ou, definitivamente, a Aristóteles! Volta a entrar, no abc do materialismo histórico, a tese segundo a qual a teoria se desenvolve a partir da história, da materialidade dos processos históricos. O grande pensador revolucionário não hesitou em reconhecer o débito teórico contraído por ele em relação à breve experiência da Comuna de Paris: atualmente, ao contrário, décadas e décadas de um período histórico particularmente intenso, da Revolução de Outubro à chinesa, cubana, etc., devem ser declaradas destituídas de significado e de relevância no que diz respeito à “autêntica” mensagem de salvação já consignada, de uma vez por todas, em textos sagrados, que teriam apenas de ser redescobertos e reanalisados religiosamente”. 

Bom ressaltar que os ensaios foram redigidos em meados dos anos 1990, momento de ofensiva do neoliberalismo e seu discurso de “fim do socialismo real” ou mesmo “fim da história” – nesta situação de bastante confusão que a “autofobia” tem o condão de atingir as fileiras comunistas. Para Losurdo a autocrítica é o contraponto necessário e urgente da autofobia. A autocrítica é o acerto de contas com o passado, enquanto justamente a autofobia é a “Fuga da História”. 

E nesse trabalho necessário de esclarecimento e autocrítica, que talvez somos levados a observar que onde há mais confusão nas fileiras da esquerda é nas análises da China. Podemos sondar as organizações e forças políticas de esquerda aqui no Brasil, dentre marxista-leninistas, trotskystas ou anarquistas, e haverão muitos que dirão que na República Popular Chinesa está em curso ou se concretizou restauração capitalista. Sobre este tema se posiciona Losurdo:

“Sob essa luz, precipitados e superficiais tornam-se os discursos que falam, com um juízo de valor positivo ou negativo, de “restauração do capitalismo”. Convém, em vez disso, considerar uma preciosa indicação metodológica de Gramsci. Ele formulou a tese que a revolução burguesa na França abrange um período que vai de 1789 a 1871, isto é, do colapso do antigo regime até a III República. Para que uma revolução possa considerar-se concluída, não é suficiente uma nova classe conquistar ou consolidar o poder; é necessário também que ela encontre uma forma política relativamente estável de gestão do poder. Entre 1789 e 1871 sucedem-se de modo tumultuado as mais variadas formas políticas (a monarquia constitucional, experiências republicanas de breve duração, a ditadura militar, o Império, o regime bonapartista etc.) até a burguesia francesa encontrar na república parlamentar a forma política normal e estável de exercício de seu poder e de sua hegemonia. No que diz respeito à China, a novidade surgida da revolução está ainda à procura não só da forma política, mas também de conteúdos econômico-sociais em que deveria encontrar expressão estável. Estamos em presença de um processo de longa duração e em pleno desenvolvimento, o qual já conseguiu resultados extraordinários, mas seus ulteriores desenvolvimentos e seu êxito são totalmente imprevisíveis”. 

Talvez mais grave e simbólico seja o caso do Tibet. Losurdo lembra que Mao Tse Tung já bem considerava o Tibet como “parte integrante do território nacional chinês”. E mais. Se no passado colonial a memória chinesa remete a espoliação, ao racismo e à guerra, sob o regime comunista desde 1949, uma série de reformas fizeram com que o povo do Tibet tivesse acesso a direitos humanos nunca antes conhecidos e um sensível aumento da expectativa de vida. O mais provável é que um referendum no Tibet teria como maioria pela continuidade da província à República Popular Chinesa, em que pese toda a propaganda imperialista e o papel desempenhado por Dalai Lama, que, sob um pretenso e falso discurso de defesa dos direitos humanos, aparenta convencer uma certa “esquerda democrática”. E aqui os riscos são imensos porque o imperialismo verdadeiramente opera sob este falso e hipócrita discurso dos “direitos humanos” e de uma “universalidade democrática”: e aqui o caso da Nicarágua e sua revolução sandinista é exemplar.

“(...) deveria ainda ser fresca a recordação da tragédia que se abateu sobre a Nicarágua sandinista. A seu tempo, os EUA submeteram-na ao bloqueio econômico e militar, minaram seus portos, puseram-na sob uma guerra não declarada, mas sanguinária, suja e contrária ao direito internacional. Diante de tudo isso, o governo sandinista viu-se constrangido a tomar medidas tímidas de defesa contra agressão externa e a reação interna. E Washington exibia-se como defensor dos direitos democráticos ultrajados pelo “totalitarismo” sandinista. É como imaginar um carrasco que, depois de haver procedido à execução, põe-se a gritar escandalizado pela cor pálida e cadavérica da sua vítima. Uma atitude grotesca: todavia não faltaram almas generosas para se associarem aos brados de escândalo do carrasco e à condenação das medidas “liberticidas” de Ortega, cujo espaço de manobra diante da agressão foi progressivamente reduzido e anulado”.

A conclusão do processo histórico foi a derrota eleitoral dos sandinistas e a vitória do imperialismo. Conclui Losurdo:

“Só os lacaios e os imbecis podem celebrar essa infâmia e essa tragédia como triunfo da democracia. Exigir a introdução em Cuba do pluripartidarismo ocidental significa, nas atuais condições, trabalhar para uma réplica do triunfo do carrasco imperialista”. 

E aqui no Brasil bem sabemos que o discurso imperialista da “democracia” em contraponto ao “totalitarismo comunista” tem grande inserção, especialmente dentre trotskystas que abertamente defendem a restauração capitalista de Cuba. 

A editora Revan tem feito uma ótima contribuição para esquerda ao traduzir e introduzir ao público brasileiro este original historiador marxista. A lição principal deste livro de ensaios é esta: esclarecer o processo da fuga da história decorrente da”praga da autofobia” e fazer o contraponto por meio dos pressupostos teórico-metodológicos do marxismo e do materialismo histórico em particular para realizar a autocrítica.         

domingo, 17 de janeiro de 2016

“A Contestação Necessária” – Florestan Fernandes

“A Contestação Necessária” – Florestan Fernandes 



Resenha Livro – 206 “A Contestação Necessária: Retratos intelectuais de incorformados e revolucionários” – Florestan Fernandes – Ed. Expressão Popular

Esta compilação de artigos e retratos de intelectuais e lutadores sociais foi inicialmente reunida pelo professor Florestan Fernandes no ano de 1995 sob a denominação de “Em Busca do Socialismo”. O trabalho seria recusado pela Editora Cortez e publicado postumamente sob a denominação “A Contestação Necessária” pelas editoras Ática e Xamã. Não se trata aqui se uma seleção de pesquisadores que influenciariam a produção teórica de Florestan Fernandes: desde suas pesquisas sobre os Tubinambás, à inserção dos negros na sociedade de classes, bem como aos limites históricos da revolução burguesa no Brasil, todo este arcabouço teórico estão bem delimitados em suas pesquisas, conferências e aulas. Também não se trata de um trabalho de história das ideias: os retratos de intelectuais inconformados e revolucionários envolve um recorte diferenciado, tendo como critério personagens que desde uma atuação no Brasil ou na América Latina, intervieram no sentido da revolução ou da reforma radical no sentido do socialismo. 

Aliás, aqui é importante destacar um critério político importante para Florestan Fernandes e que, de resto, envolve toda sua estratégia política. Em diversas passagens de seus artigos o professor reivindica a passagem revolucionária, mas observa a importância de uma unidade junto aos reformistas ou mesmo aos “burgueses radicais”, dedicando aqui todo um capítulo a Fernando de Azevedo, um defensor de Educação Pública, professor e fundador da USP, sem qualquer perspectiva de ruptura institucional. Esta aliança entre reforma e revolução fica evidente em diversas passagens, mas particularmente neste capítulo: 

“Façamos a revolução na escola antes que o povo a faça nas ruas’ . Está num livro dele (de Fernando de Azevedo). “Feita a revolução nas escolas, o povo a fará nas ruas, embora essa vinculação não seja necessária. Na China, em Cuba, na Rússia, sem passar pela escola, o povo fez a revolução nas ruas. Mas em um país como o Brasil, é necessário criar um mínimo de espírito crítico generalizado, cidadania universal e desejo coletivo de mudança radical para se ter a utopia de construir uma sociedade nova que poderá terminar no socialismo reformista ou no socialismo revolucionário. Eu prefiro a última alternativa. Fernando de Azevedo optaria pela primeira. Ambas são alternativas que nos põe no fluxo da história (...)”. 

Esta mesma combinação entre reformas radicais diante de uma sociedade em que a burguesia débil e atrasada não concretizou qualquer revolução e em seu atraso histórico se aliou ao capitalismo financeiro e ao imperialismo irá explicar a opção, até os anos de 1994-5, de Florestan Fernandes, tanto pelo PT quando por Lula. Aliás, Luís Inácio abre a coletânea de artigos, menos pelos seus méritos individuais  e mais como organizador coletivo e figura simbólica que representa. E, reforçamos, a opção estratégica de Florestan, dentro da qual reformistas e revolucionários caminham juntos em um mesmo partido envolve uma interpretação histórica que envolve particularmente a debilidade da burguesia brasileira e um programa que resolva os impasses de reformas inconclusas. 

No prefácio da edição da Expressão Popular, Roberto Leher esclarece:

“Na perspectiva florestaniana é preciso buscar a chave interpretativa da fragilidade do projeto burguês (fragilidade em termos de um projeto autopelido de nação) patenteado pela cessão de funções cruciais para os militares, na correlação de forças das lutas de classes. Em sua interpretação, os subalternos não lograram força para interpelar de modo imperativo os dominantes que, por isso, puderam seguir com sua “revolução sem revolução” sem maiores sobre saltos. “Os de baixo não davam um basta, porque temiam agravar seus males. Os de cima comandavam sem receber dos de baixo uma cobrança definitiva”. (pg. 58). 

E 20 anos após a morte de Florestan, observamos o encerramento catastrófico e desmoralizante do PT que envolve não só seus dirigentes reformistas, mas toda a esquerda. É toda a esquerda, incluindo seu setor revolucionário, que se encontra fragilizada e desmoralizada frente aos trabalhadores que, diante da lama da corrupção e da consecução de políticas de ajustes neoliberais, desconfiam (e diríamos com razão) dos socialistas. 

Certamente Florestan Fernandes preparou esta coletânea de textos num contexto difícil da luta de classes em nível mundial: com o fim da URSS e a ofensiva neoliberal, diversos aparatos ideológicos estavam inteiramente mobilizados para decretar o fim do socialismo, o fim do marxismo, o fim da constituição da classe trabalhadora em si e para si – e poderíamos especular a razão pela qual toda uma mobilização ideológica para convencer a população mundial sobre algo que está morto e, portanto, inofensivo. Agora, em 2016, no Brasil, pobre de Florestan Fernandes se vivo fosse vendo sua estratégia democrático popular como justificativa para os dirigentes do PT levar a esquerda como um todo para a completa desmoralização: e aqui basta como exemplo sintomático, o ataque de hienas e coxinhas num aeroporto de fortaleza ao companheiro do MST João Pedro Stédile. 

Voltando ao livro, alguns apontamentos finais. Em comemoração aos 20 anos da morte de Florestan Fernandes, a Editora Expressão Popular publica este livro até então pouco comentado. Dentre as figuras resenhadas citamos especialmente José Martí, cubano e herói da independência colonial. Uma justificava importante aqui é que a esquerda brasileira surge um pouco deslocada da tradição latino-americana de luta por emancipação – a mesma que envolve a revolução cubana, nicaraguense ou as jornadas bolivarianas na Venezuela. Martí não era propriamente um socialista, mas um nacionalista revolucionário do séc. XIX. Mariátegui por outro lado foi um expoente do marxismo latino americano e que, de maneira original, soube traduzir as premissas teorias à realidade peruana. 

Enquanto as particularidades do sudeste asiático e china recomendavam uma aliança entre pequeno-burguesia e camponeses (kuomitang e PC chinês), por razões que remontam ao velho domínio senhorial e patriarcal, tal aliança seria inviável no Peru, que conta ainda com forte presença do componente indígena. De certa maneira pode-se traçar um paralelo entre Mariátegui e Caio Prado Júnior (outro rebelde resenhado por Florestan). Ambos trazem uma contribuição teórica original ao buscar interpretar a fundo a realidade nacional e suas especificidades por meio do marxismo e não servir-se de um “modelo” pré-estabelecido de interpretação eurocêntrico para suas realidades respectivas. 

Dentre os diversos rebeldes, inconformados e revolucionários que constam no livro, certamente Florestan Fernandes poderia ser um deles. Para além de sua vasta produção como sociólogo, foi um intelectual orgânico até o fim da vida. Defensor militante da educação pública, foi deputado constituinte pelo PT e sempre teve uma vida plenamente engajada, colocando-se como socialista. Veio de origem muito humilde e na velhice, quando doente, foi oferecido a ele hospitais de qualidade fora do país para se tratar. Coerente com suas ideias socialistas – como a de defensor da saúde pública – negou todos estes convites e continuou sendo tratado em hospitais públicos no Brasil. De acordo com Florestan Fernandes Júnior, em documentário exibido pela TV Câmara, caso tivesse optado pelos convites de tratamento, certamente teria maior sobrevida. Podemos especular qual político, mesmo dentro da  esquerda, teria o tamanho desta coerência.  

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

“Caetés” – Graciliano Ramos

“Caetés” – Graciliano Ramos 


Resenha Livro 205 – “Caetés” – Graciliano Ramos- Ed. Record

Já é bastante conhecida a produção literária de Graciliano Ramos. Trata-se de uma vasta criação de contos, crônicas jornalísticas e romances: dentre estes últimos, é possível selecionar 4 grande obras que formam as bases fundamentais que mais marcam o seu legado. Como um paralelograma, são quatro grande romances que em cada vértice representa-se um grande ponto nodal. E é possível dizer com segurança que, em que pese os contos e outros romances e memórias como “Viagem” e “Infância”, será com a leitura destas 4 grande obras fundamentais que um leitor poderá com segurança conhecer a obra de Graciliano Ramos.

“Caetés” é o primeiro deste conjunto, concluído no ano de 1929. “São Bernardo”, publicado em 1934, representaria outra segunda obra fundamental, dois anos antes do escritor ser preso pela ditadura do Estado Novo varguista, sob suspeita de aliança junto aos comunistas – fato que seria igualmente objeto de dois volume de memórias, “Memórias do Cárcere”. A terceira obra fundamental do universo criado pelo escritor é “Angústia” de 1937. E, finalmente, sua obra de maior repercussão junto ao público e que certamente teria maior conteúdo político (sem cair numa arte superficialmente panfletária),  “Vidas Secas”, livro lançado em 1939.

Caetés, São Bernardo (ver resenha aqui:http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2016/01/caetes-graciliano-ramos.html) , Angústia (ver resenha http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2015/11/angustia-graciliano-ramos.html)   e Vidas Secas são 4 romances que possuem algo que poucas manifestações artísticas são capazes de remeter: as expressões psicológicas de personagens observadas desde pontos de observação privilegiados de forma a fazer com que seus problemas, uma vez localizados em situações geográficas muito bem determinadas (o sertão nordestino em “Vidas Secas”,  o engenho  do coronel  Paulo com as pequenas propriedades  dos roceiros em “São Bernardo”, e por aí vai) mas com dramas universais. Qual é a implicação mais importante entre a vida dentro de todas as particularidades da geografia do nordeste, de suas capitais aos seus engenhos, passando pela situação do retirante? O desenvolvimento de uma arte superior em que os conflitos, as relações de amor e principalmente a partir dos 3 últimos romances, as grandes frustrações da existências dialogam com a experiência de vida que perpassa o regional – talvez num sentido muito mais excepcional do que o regionalismo de José Lins do Rego que teria, dentro da proposta modernista, uma vocação muito mais sociológica, de demonstrar o mundo e a experiência regional e nordestina e não tanto partir deste mundo particular e específico para experiências universalizantes, como em Graciliano Ramos.

Entretanto, há de se constatar talvez algo que é intuitivo: Caetés é o primeiro romance do escritor e aquilo que poderíamos resumir como “análise psicológica” que é amplamente esmiuçada a partir de São Bernardo em seguinte, ainda é aqui algo um pouco experimental. A sensação que o leitor tem ao conhecer os “4 pontos cardeais” de Graciliano Ramos é que certamente “Caetés” é um romance um pouco fora da curva. A história se passa numa cidade do interior do nordeste chamada “Palmeira dos Índios” e a tendência pessimista que relaciona Graciliano Ramos a escritores como Franz Kafka, Camus ou a alguns livros de F. Dostoiévski, em “Caetés”, está mitigada. Aqui a linha da narrativa assemelha-se muito mais aos romances realistas ou naturalistas de Eça de Queirós a Aluízio de Azevedo respectivamente. São diversos personagens que compõem uma verdadeira constelação de pequeno burgueses e populares e são representados frequentemente conforme seu ofício: João Valério é o narrador e um guarda livros de uma Casa Comercial e mora numa Casa de Pensão, conforme uma cultura comum e igualmente descrita por Aluízio de Azevedo em seu “Casa de Pensão”: trata-se de um local não só onde muitos “tipos” de diversos recantos do interior vêm e dormem, mas um local de encontro,  lócus privilegiado para encontros e descobertas, casas geralmente dirigidas por viúvas ou mulheres que cuidam desde as refeições até o pagamento da estadia.

“Caetés” significa mais do que o tema do livro histórico que cuida da atenção de João Valério: entre o tempo que passa só  ou em busca de um amor cheio de culpas junto a Luíza, o tempo junto aos parceiros da Pensão, da redação do semanário da “Semana”, na Casa Comercial, nas festas da igreja e outros eventos populares miúdos ou junto aos inúmeros personagens que o rodeiam todos os dias quase como numa roda circulante, tem-se a percepção que a vida  nos termos de um jovem solitário pequeno burguês que “tem passado a criar deuses, que morrem logo, ídolos que depois (derruba)” (Pg. 219) – remete aos mesmos termos dos índios caetés – remetemos o leitor aqui a imagem de índios que dançam sob a forma de um círculo.

Esta é a percepção de João Valério, diante de um fim que envolve tragédia, monotonia e...humor:

“Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um Caeté. Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É isso, um caeté. Estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente...Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar...O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por acolá, da pensão para Bacurau, da Semana para casa de Vitorino, aos domingos pelos arrebaldes; e depois dias extensos de preguiça e tédio passados no quarto, aborrecimento sem motivo que me atiram para cama, embrutecido e pesado...”

De acordo com o crítico literário Wilson Martins, o escritor Graciliano Ramos já em plena maturidade literária, passou a ter uma opinião excessivamente negativa acerca de seu romance de estreia. Todavia, essa excessiva falta de indulgência com sua obra de estreia não se justifica. “Caetés” é um romance que se sobressai diante da produção literária nacional, senão pelos aspectos que centralmente marcam a obra de Graciliano Ramos posteriormente  como questões existenciais que perpassam as análises das personagens, mas como um romance sobre costumes e com descrições de personagens dentro de um estilo mais próximo do realismo/naturalismo. Há o interesse pela descrição dos tipos sociais, dos costumes e dos eventos que demarcam tanto as cogitações das literaturas de cunho objetivo.

Para os marxistas, a questão se coloca em questões adicionais: Graciliano Ramos aderiu ao PCB em 1945 (logo após o término da II Guerra) e a convite da embaixada soviética, fez uma viagem àquele país que resultou num livro amplamente favorável ao país dos soviets, denominado “Viagem”. Mesmo antes de 1945, ainda que nunca tenha adotado uma literatura francamente político-partidária, é possível identificar elementos relacionados às contradições da concentração fundiária (Vidas Secas), o predomínio/centralização  da força política e do domínio sob todos os aspectos  do Coronelismo (Paulo Honório) em São Bernardo, e assim em diante. Em “Caetés” o interesse projeta-se na ideia da literatura enquanto espelho da sociedade: saímos da leitura com boas noções da realidade social de uma cidade provinciana do Brasil de início dos anos XX, da forma como se dava os eventos culturais, religiosos (quando a Igreja ainda tinha uma maior relevância e influência social). O patriarcalismo e a diferenciação social dos bacharéis quando da briga de Valério com o promotor durante um jogo de sinuca revela uma crítica que teria sido engendrada aos extremos e com brilhantismo por Lima Barreto: a cultura do bacharelismo, do Diploma, do discurso rebarbativo que prevalece a forma sobre o conteúdo. Trata-se de uma história social que também é descrita com objetividade e realismo por aquela geração de escritores modernistas. Este interesse pelo passado e a descrição viva da historia cultural é dentre os 4 romances cardeis de Graciliano Ramos mais observado especificamente em Caetés.    

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

“A Revolução Russa de 1917” – Marc Ferro

“A Revolução Russa de 1917” – Marc Ferro 

Assalto ao Palácio de Inverno - Petrogrado

Resenha Livro 204 – “A Revolução Russa de 1917” – Marc Ferro – Editora Perspectiva 

A história não corresponde a uma mera sequência de fatos que seguem uns aos outros de forma linear, cabendo ao historiador a tarefa de fazer uma espécie de inventário das principais passagens e momentos do passado. O passado relatado como uma sequência de grandes eventos com igual valor, cabendo ao "historiador" simplesmente situá-los junto às datas, sem qualquer interpretação  quanto ao sentido dos fatos, sem especular as razões pelas quais a sociedade ou a economia passa por ciclos de desenvolvimento ou retrocesso,  sem identificar os conflitos das classes sociais e a forma como em cada etapa histórica foi-se organizada a produção e distribuição das riquezas não tem o condão de ser denominado "história". 

O estudo da teoria da história ou da filosofia da história ou mesmo da metodologia da história oferecem os primeiros sinais de que a história se desenvolve como um processo em que as relações econômicas irão ao longo do tempo transformar a si mesmas  e, concomitantemente, transformar as demais instâncias da vida social. Como bem coloca K. Marx, não é a “consciência que determina o ser social, mas antes o ser social que determina a consciência”, o que, no âmbito da história traduz-se tanto pelos vínculos entre política, sociedade e cultura associados que estão ao modo de produção historicamente determinado, à etapa histórica em que dada sociedade produz os meios necessários para sua sobrevivência; quanto pela centralidade específica das formas como as sociedades organizam sua produção, desde os modos de produção escravistas, feudal (super estrutura desde o Antigo Regime) até o modo de produção Capitalista (que cria as relações de trabalho baseadas no antagonismo capital x trabalho). 

Talvez seja nos momentos revolucionários em que fique claro tanto a dinâmica processual (não linear) da história quanto sua relação íntima com as mudanças de base da sociedade, o que, por decorrência das transformações dentre as formas de organização na forma de produção e distribuição da riqueza social, inevitavelmente terão implicações decisivas na conformação da luta de classes (conforma Marx e Engels desde o Manifesto, o motor da história). 

Marc Ferro é um historiador de ofício, ligado à escola de Annales (França) e aqui oferece um guia sintético, porém seguro sobre a primeira e mais importante revolução do séc. XX. 

Dizíamos que o momento revolucionário possui um conteúdo quase didático ao demonstrar o caráter processual, a dinâmica de classes e a base social voltada a diferentes modos de produção na sociedade. O que observamos lendo atentamente o livro de Ferro é que o ano de 1917 na Rússia surge como se o tempo histórico daquele país houvesse uma aceleração em que um dia daquele ano equivale-se provavelmente a uma década da Rússia estagnada da idade média. O próprio Lênin captou algo semelhante, no que tange a consciência revolucionária: “Nos períodos revolucionários, a consciência da classe trabalhadora avança 20 anos em 20 dias”.  O que ocorre? A Revolução Russa em 1917 tem duas etapas concentradas num mesmo movimento: Fevereiro, com a derrubado do Czar, correspondendo à fase democrático burguesa da Revolução e Outubro, com a etapa propriamente socialista, com a tomada do poder pelos bolcheviques. Em todo este período, a revolução depara-se com o problema da Guerra, com o perigo da contra-revolução (Kornilov, forças estrangeiras operando militarmente conforme a continuidade da Guerra, outras forças contra-revolucionárias),  com o levante espontâneo camponês este num sentido revolucionário: todas estas questões exigem respostas que envolvem combates dentre os partidos e um maior envolvimento de soldados, operários e camponeses na política, resultando em transformações institucionais em série na Rússia que levariam aquele país a mudanças importantes num curto espaço de tempo. 

Observa-se como a Revolução Russa abriu uma série de possibilidades aos distintos partidos, desde os cadetes (monarquistas constitucionalistas), passando aos socialistas (SR’s) até os Bolcheviques (Lênin). 

Tratou-se de saber aproveitar as melhores oportunidades no momento certo, o que Lênin soube fazer, tendo inclusive que avançar sobre posições vacilantes dentro do seu próprio partido, no que se refere, entre outros, à data da insurreição bolchevique. Quando Lênin observa que seu partido possui a maioria dos Soviets nas duas capitais (Petrogrado e Moscou), tem notícia de que seus adversários encontram-se dispersos (mencheviques e SR’s) e olha para o campo diante do levante camponês, entende que é chegada a hora de agir, enquanto posições vacilantes como a de Kamenev entendem que se deve aguardar o Congresso dos Soviets de Toda a Rússia para dar legitimidade ao movimento – uma alternativa vacilante e uma traição, rebate Lênin, já que colocaria todo o movimento insurrecional presa fácil da repressão. 

Como se sabe, por 10 a 2 venceu a posição de Lênin no Comitê Central 

A pesquisa de Ferro é minuciosa ao ponto de separar os efeitos da revolução sobre diferentes camadas sociais da população russa. Além da questão camponesa, do problema dos soldados no front e da penúria dos operários nas cidades, havia a questão dos alógenos, com destaque para os ucranianos e finlandeses, que tiveram, pelos bolcheviques, direito de se auto-governar. A Revolução teria ainda como desafio a celebração da Paz, que foi concluída em Brest Litovisk.

“Quando Lenine desencadeou a insurreição de outubro, não lhe vinha à mente que a revolução se limitaria a um só país, sem que poderia ser socialista, se reduzida à Rússia. Não que ele pretendesse estendê-la à Europa inteira, pelo menos nessa ocaisão: apenas pensava que uma revolução assim circunscrita não seria viável . A tomada do poder na Rússia, o fim da guerra por uma via democrática, a revolução proletária na Europa, tais eram a seu ver os elementos de um processo inelutável,  inseparável".

Assim, a 8 de novembro de 1917 (27 de Outubro) não foi a preocupação de salvaguardar os vínculos com os aliados que levou Lênin e Trotski a propor a paz a todos os beligerantes. 

O oferecimento devia levar inevitavelmente  a um levante do proletariado contra todos os governos que se lhe opusessem. 

“Se acontecesse o menos provável", declarava Lênin "se nenhum beligerante aceitasse nem mesmo um armistício, então de nossa parte a guerra se tornaria defensiva: os russos se fariam os aliados do proletariado de todos os países dos povos oprimidos do mundo inteiro”. De qualquer modo, o governo soviético seria o inspirador e a Rússia o foco da revolução mundial.

Conhecer a fundo a primeira experiência prática de uma revolução socialista na história é fundamental  para situar os limites e possibilidades do que já foi construído pela tradição marxista-leninista dentro de sua experiência histórica. Outra questão a se destacar aqui é o universo, certamente conflitante, de versões daquela experiência histórica, o que deve certamente dar motivo de confiança política àqueles que reivindicam um pouco daquela tradição já que muitos foram aqueles que detrataram e caluniaram a revolução russa bolchevique, sob os mais diferentes pretextos. Livros de historiadores de “ofício” como Marc Ferro, amplamente documentados e voltados ao debate historiográficos não são exatamente neutros (expediente impossível e mesmo indesejável), mas bem vindos para dar esclarecimentos e aprofundar as análises.