quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

“As Vítimas Algozes” – Joaquim Manuel de Macedo

“As Vítimas Algozes” – Joaquim Manuel de Macedo



Resenha Livro - “As Vítimas Algozes” – Joaquim Manuel de Macedo  - Poeteiro Editor Digital – São Paulo – 2014

“Se estas observações desanimassem a caridade dos senhores para com os crioulos que em casa lhes nascem e se criam, fariam morrer uma virtude agravada ainda mais o perigo que correm os senhores, e os sofrimentos que experimentam os escravos.

Os crioulos são muito mais inteligentes e maliciosos que os negros da África; e, desprezados e flagelados pelo trato áspero da escravidão, que faz do homem instrumento material do trabalho, e irmão da besta de carga, tornam-se inimigos ferozes; e se chega a oportunidade da vingança, ostentam na ferocidade verdadeiro e delirante luxo de malvadeza.

O escravo africano mata o senhor, e se afasta do cadáver: o escravo crioulo antes de matar, atormenta e ri das agonias do senhor, e depois de matar insulta e esquarteja o cadáver”

O escritor romântico Joaquim Manuel de Macedo é provavelmente lembrado pelo público por seu livro de estreia, “A Moreninha”: romance bastante popular já em seu tempo e que retrata a juventude citadina do Rio de Janeiro de meados do Séc. XIX, inaugurando um estilo de romance folhetinesco que aborda desde a paisagem até os usos e costumes nacionais. O estilo literário é o romantismo, dentro do qual, neste mesma seara, observar-se-ão posteriormente outros romances que retratam aspectos da vida burguesa do Brasil Imperial: de Bernardo Guimarães, de José de Alencar e dos romances da primeira fase da produção (não realista) de Machado de Assis.

"Vítimas Algozes” (1869) pode ser uma leitura chocante para o leitor de 2016, sendo essencial cotejar a leitura do romance com a evolução histórica do processo abolicionista no Brasil (desde uma interpretação crítica) e cuidando sempre em não realizar uma leitura associada ao anacronismo, que não diz respeito apenas à escrita da história, mas à sua leitura – e este romance, como veremos, é um romance que tem algo de “manifesto” (apologia) e se insere num embate político a favor da abolição da escravatura.

Cuidemos destas duas advertências.

Anacronismo.  O Pecado do Anacronismo do qual costumam se referir os historiadores envolve a leitura dos desejos pessoais do presente para o passado. Anacronismo é uma palavra que advém do grego e significa em termos literais “contra o tempo”, ou seja, erro de cronologia, consistindo em atribuir a uma época ideias ou conceitos que não lhe são afeitos – em geral o anacronismo costuma surgir quando atribuímos ao passado cogitações associadas ao presente. Este livro de 1869 é um livro todo ele dedicado à defesa da abolição: todavia (e curiosamente) sua leitura choca e é mesmo ofensiva por haver claros indicativos racistas.

“Vítimas algozes” são os próprios africanos escravos: Vítima pela prepotência que a escravidão impõe ao africano. Algoz pelo dano praticado, pela vingança ou mesmo pela imoralidade que se impõe do escravo ao seu dono. No que concerne a uma primeira advertência, deve-se ter em mente que o livro foi escrito quando sob o país ainda vigia o modo de produção escravista, ainda que de forma tardia em face do mundo. Em 1869, apenas no Brasil, Cuba e Porto Rico vigia a escravidão. O Brasil foi resistente também a extinguir o tráfico de escravos, extinto em 1850 sob a pressão das bombas navais inglesas. Apenas estes elementos já sugerem que estamos diante de uma sociedade sob outro modo de produção – escravagista, baseado ainda no sistema plantation, eminentemente agrário, onde grassa o analfabetismo e a total ausência de direitos democráticos a uma residual população de homens livres e pobres – o que diz respeito à outra visão social de mundo dominante, distinta da visão social de mundo decorrente da erigida sob o modo de produção capitalista, baseada na relação do trabalho assalariado, com vasto desenvolvimento de forças produtivas (2016), em que pese a permanência histórica da discriminação racial.

A outra advertência específica ao leitor de “As Vítimas Algozes” diz respeito especificamente ao pacto gradual e controlado pelas elites políticas brasileiras sobre o qual deu-se a abolição da escravatura brasileira. O livro de Macedo é uma defesa da abolição, mas é preciso ponderar: qual ou que tipo de abolição? Trata-se aqui por suposto de uma abolição por “via prussiana”, controlada desde as elites, e o livro é parte de um setor já esclarecido da classe dominante que via os inconvenientes ao modo de produção escravista. Macedo defende que os proprietário sejam devidamente indenizados com a abolição, além de propugnar um processo de mudanças “gradual”. E assim o foi: em 1871 foi aprovada a lei do Ventre Livre que tornava emancipado os escravos nascidos a partir da vigência da norma jurídica. Em 1885 foi aprovada a lei dos Sexagenários que concede liberdade aos escravos com mais de 65 anos. Somente em 13 de maio de 1888 através da Lei Áurea (29 anos após o nosso romance) foi concedida a liberdade a todos os escravos.

Finalidades e Métodos da Obra

Joaquim Manuel de Macedo assim sintetiza a finalidade de sua obra:

“Trabalhar no sentido de tornar bem manifesta e clara a torpeza da escravidão, sua influência malvada, suas deformidades morais e cogênitas, seus instintos ruins, seu horror, seus perigos, sua ação infernal é também contribuir para condená-la e para fazer mais suave e simpática a ideia da emancipação”.

Todavia, uma interpretação crítica da obra deve antes de tudo buscar observar o que há de oculto por detrás do instituto da escravidão – e que é revelado apenas como alguns “lapsos” ao longo das três tragédias narradas em “Vítimas Algozes”. O escravo em primeiro lugar serve a seu dono como força de trabalho e é do trabalho que se extrai o valor, que se extrai a riqueza, a opulência desde o Senhor de Engenho do Açúcar, até o os garimpeiros e mineradores, passando pelos produtores do Algodão e do Café. São muitos os argumentos levantados contra a escravidão: “o escravo é natural e logicamente o maior inimigo do senhor” é a toada das histórias. Mas a seguinte passagem parece ser o núcleo que incide sobre a conveniência da abolição desde o ponto de vista das classes dominantes (da qual o médico e professor Joaquim Manuel de Macedo era parte, tendo sido mesmo professor dos filhos da Princesa Isabel):

“(O Escravo) Trabalhando maquinalmente, sem ideia de melhoramentos, de progresso e de aperfeiçoamento do sistema de trabalho, sem os incentivos de interesse próprio e com desgosto e má vontade;

Furtando nas roças, nas fábricas e nos armazéns produtos que vão vender para embebedar-se, o que ainda diminui as forças, quando não compromete a saúde e rouba ao trabalho dias passados na enfermaria;

Suicidando-se subitamente, ou aos poucos, quando por nostalgia, enfezação ou desespero morno e profundo contraem e alimentam enfermidades que acabam por matá-los;
Fugindo à escravidão por dias, semanas, meses ou para sempre, e nos quilombos, seduzindo outros escravos para fugir como eles;

Não poupando gado e os animais, não zelando os instrumentos rurais, não compreendendo a necessidade de cuidados, não tendo nem podendo ter amor à propriedade do senhor, não se ocupando das perdas ou os lucros do senhor;

Fazendo perdurar a rotina e o trabalho materializado, e por sua indiferença, estupidez e desmazelo, contrariando, anulando e desacreditando processos, invenções, máquinas que economizam  tempo e braços, e que explorados pela inteligente execução do homem livre e interessado, oferecem resultados que aumentam a riqueza”.

Aqui devemos não ser anacrônicos. Havia possibilidade de em 1869 (dois anos após o lançamento do 1º Volume do Capital de Marx) este nosso escritor romântico pudesse aferir uma crítica da economia política do instituto da escravidão no Brasil? Em termos históricos, tal análise surgiria apenas muitos anos depois, com “Evolução Política do Brasil” e “Formação do Brasil Contemporâneo” de Caio Prado Jr. Mas o que observamos é que em “Vítimas Algozes” não se cogita jamais a seguinte questão: quem lucra com o trabalho escravo? Quem se beneficia em termos pecuniários da escravidão do negro que é “vítima e algoz” ? A crítica que Macedo faz ao final de sua história em face da escravidão é do tipo idealista, sempre contemporiza com o elemento branco, apenas colocando em questão um suposto direito de um homem ser senhor do outro homem.

Há sim outras críticas reiteradas e específicas em cada história em face do elemento Branco, mas, em consonância com o estilo literário romântico, são críticas que não raro envolvem um tom moralista. Assim a primeira história conta o caso da condição específica de um Criolo (Simeão) espécie de escravo que recebe os cuidados especiais da casa grande mas ressente-se da sua condição de escravo pelos benefícios especiais. Há a crítica da “Venda”, local da venda de bebida, donde à noite se negocia mercadoria com quilombos. Fonte de vícios e ponto de encontro para o planejamento de crimes. As críticas envolvem nesta história desde uma negligente confiança ao escravo-criolo até uma promessa não concedida de liberdade ao criolo: A liberdade não se promete, se dá ao escravo. Este foi o elemento detonador da vingança de Simeão que além do ódio viu sua esperança de alforria frustrada.  O Criolo odeia por instinto e com reflexão. O Escravo odeia apenas por instinto.

De maneira geral as histórias seguem o esquema em que o escravo, por que é escravo, odeia o senhor, e torna-se traiçoeiro, perverso, e “ingrato” – e esta reiteração acerca da suposta ingratidão de um escravo em face do senhor revela como fica silente na história a posição social do negro na sociedade escravagista da qual o africano é a base sobre a qual se afere a opulência e a riqueza dos brancos, das senhoras- moças  e moços.

Tece-se crítica ao fazendeiro que se rende ao sensualismo de uma negra e com a devassidão sexual causa a desagregação familiar, envolvendo fatalidade de sua “nobre” senhora: o fato do fazendeiro ser visto de dia procurando pela senzala a negra sensual é ato de escândalo e desmoralização. Joaquim Manuel de Macedo, que também é médico, relata que escravos associados a atividades como “cadombe” têm amplo domínio de plantas, raízes e frutas, fazendo ora o dono da fazenda dormir, ora causando a morte dos animais, ora, dentro de um cálculo maligno, providenciando a morte paulatina de cada membro de família, com a fácil participação de uma mucama que servia o café, chás ou frutas misturadas ao veneno.

São três histórias que têm portanto a finalidade do convencimento acerca dos inconvenientes da escravidão, denunciando práticas não apropriadas, como a criação das senhoras-moças (sinhás) junto de mucamas negras (responsáveis estas por depravação sexual, por enviar cartas de amor e por desvirtuar a nobreza pueril de “Cândida”, cujo nome remetia à pureza e o triste fim segue a linha geral da obra, de proselitismo contra a escravidão advertindo sobre seus riscos).

Uma questão que poderia ser suscitada aqui é: os fins e os meios. São muitos os lapsos de racismo que advêm do autor. Em que pese colocar na conta da escravidão as maldades dos escravos, o leitor, mesmo precavido de uma leitura anacrônica, não deve sair convencido de que estamos diante de uma obra eivada de racismo – há a impressão de que o negro ou mesmo o pobre[1] têm menores qualidades. Vejamos a descrição do vilão Pai-Raiol:

“Pai Raiol passara nesse dia ao seu quinto senhor.

Era um negro africano de trinta a trinta e seis anos de idade, um dos últimos importados da África pelo tráfico nefando: homem de baixa estatura, tinha o corpo exageradamente maior que as pernas; a cabeça grande, os olhos vesgos, mas brilhantes e impossíveis de resistir à fixidade do seu olhar pela impressão incômoda do estrabismo duplo, e por não sabermos que fluição de magnetismo infernal; quanto ao mais, mostrava os caracteres físicos da sua raça; trazia porém nas faces cicatrizes vultuosas de sajaduras recebidas na infância: um golpe de azorrague lhe partira pelo meio o lábio superior, e a fenda resultante deixara a descoberto dois dentes brancos, alvejantes, pontudos, dentes caninos que pareciam ostentar-se ameaçadores; sua boca era pois como mal fechada por três lábios; dois superiores e completamente separados, e um inferior e perfeito: o rir aliás muito raro desse negro era hediondo por semelhante deformidade; a barba retorcida e pobre que ele tinha mal crescida no queixo, como erva mesquinha em solo árido, em vez de ornar afeiava-lhe o semblante; uma de suas orelhas perdera o terço da concha na parte superior cortada irregularmente em violência de castigo ou em furor de desordem; e finalmente braços longos prendendo-se a mãos descomunais que desciam à altura dos joelhos completavam-lhe o aspecto repugnante da figura mais antipático”.

Nenhum personagem branco mereceu tão lamentável retrato. E o aspecto deste e de outros personagens escravos em muito remetem a animais e não a seres humanos, em que pese o propósito abolicionista do autor. Então estamos diante de uma obra que adotava um discurso que rebaixa o negro a coisa (ou pior) mas com a finalidade de extinguir a escravidão. É possível discutir àquela época e nos dias de hoje o problema sob o ângulo de meios e fins? Os fins nobres da obra justificam o fato do autor ao pintar o negro como algozes, transformar ora o Pai Raiol ora a Negra Lucinda em odiáveis e execráveis seres humanos? Esta problemática enfrentada pelo marxismo re-coloca a questão em outros termos. O marxismo opera com a dialética, não uma dialética idealista, mas o materialismo dialético: devendo-se prevenir que o materialismo em Marx não se expressa numa noção vulgar de coisa ou objeto mas diz respeito à relações sociais historicamente determinadas. Nestes termos, não se trata de pensar em fins e meios de forma dissociada: existe uma relação de múltipla determinação em que os fins operam e determinam os meios e os meios operam e determinam os fins de molde que a questão deve ser encarada em sua totalidade. Mas desde já se pode falar que a solução de compromisso adotada pela classe proprietária brasileira, a via de concessão da liberdade dos escravos sob os auspícios e direção da classe dominante, de forma paulatina – como ocorreu no Brasil – só poderia ter como resultado uma brutal exclusão social do negro a posterior e um racismo estrutural ainda vigente. O que dizemos aqui é que os meios adotados definem os fins atingidos e que uma via de luta independente dos escravos tal qual a que ocorreu no Haiti – ainda considerando a dimensão territorial Brasileira – teria colocado a situação do povo negro trabalhador em outros termos, certamente deslocando o racismo sistêmico que permanece no país – e provavelmente tornaria a obra numa peça ainda mais racista aos nossos olhos. A solução que “As Vítimas Algozes” apresenta tem como pior defeito não apontar para o elemento Branco como beneficiário da extração do valor do trabalho escravo sobre o qual construiu-se séculos de história. E este aspecto nos orienta no seguinte sentido: problemas de fundo exigem saídas revolucionárias. A solução de compromisso compromete a finalidade almejada.           





[1] Trata-se das referências de quando a personagem Cândida se vê perdida num Cortiço, descrito de forma pejorativa. 

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

“Como Iludir o Povo” – V.I. Lênin

“Como Iludir o Povo” – V.I. Lênin



Resenha Livro – “Como Iludir O Povo Com Os Slogans de Liberdade e Igualdade” – V.I. Lênin – Global Editora

“Os trabalhadores organizam-se e declaram: ‘A nossa organização é a mais elevada de todas; não tem o direito de participar nesta organização nenhum explorador, nem nenhuma pessoa que não trabalhe. Esta organização tem um único objetivo – a destruição do Capitalismo. Não nos enganaram com falsos slogans como ‘fetiches’, tais como ‘liberdade’, ‘igualdade’. Nós não reconhecemos nem a liberdade nem a igualdade, ou mesmo a democracia do trabalho se se opuserem aos interesses da emancipação do Trabalho da opressão do Capital”. Introduzimos isto na Constituição Soviética e já ganhamos a simpatia dos trabalhadores de todo o mundo. Eles sabem que por mais difícil que seja implantar a nova ordem, por mais difíceis provas e mesmo derrotas que caiam sobre as várias Repúblicas Soviéticas, nenhuma força no mundo fará recuar a humanidade”. (Lênin).
                
Este manuscrito corresponde a um discurso de V. I. Lênin proferido em 19 de maio de 1919 no Congresso sobre Educação Extra Tutorial. É preciso começar situando o contexto, dramático, de quando foi feito o pronunciamento. Estamos há cerca de um ano e meio do triunfo da Revolução de Outubro de 1917 com a tomada do poder pelos bolcheviques e a derrota dos capitalistas – e como o próprio discurso enuncia, a ditadura do proletariado é uma etapa da luta política em que a burguesia e os capitalistas, muito longe de sofrer uma morte fulminante, apenas se vêm apeados do poder, conduzindo uma guerra civil dramática pela restauração da antiga ordem. Nas palavras de Lênin, a Revolução é uma luta de classes desesperada que atingiu o seu ponto fulminante: em 1919 o país vivia sob uma luta política, ideológica e militar em face da contrarrevolução.
                
França, Inglaterra e EUA intervêm abertamente para deter os bolcheviques, com importante presença militar na região de Odessa, Sebastapol e Criméia, justificando a necessidade de domínio do Mar de Azov, localizado nas proximidades da Ucrânia; estes mesmos imperialistas operavam prestando apoio ao grupo de rebeldes liderados por Denikin; . Kolchak, talvez o mais famoso elemento contra revolucionário, seria abandonado por suas tropas e derrotado em dezembro de 1919. A Rússia estava arruinada economicamente em primeiro lugar em função da catástrofe da guerra: há falta de abastecimento de carvão e combustíveis, fazendo com que a indústria fique parada:

“A matéria prima tem que ser transportada para a fábrica de algodão russo do Egito, da América, ou mais próximo, do Turguestão, e tentar transportá-la quando aí existem grupos contrarrevolucionários, quando as tropas inglesas tomaram Askhab e Krasonvodsk; transportá-la do Egito, da América, quando as estradas de ferro não transportam alimentos, quando se encontram arruinados, quando se encontram parados e não há carvão (...)”.

Lênin adverte que aquela difícil etapa de escaramuça era momento em que o mais essencial era fazer sobreviver a classe trabalhadora. Sabe-se que àquela altura a expectativa do dirigente russo era a de que a vitória da revolução na Rússia dependeria do desdobramento do movimento revolucionário operário, em especial nos países mais avançados: tratava-se naquele período portanto de uma luta de vida ou morte pela sobrevivência de uma experiência que já perdurara mais tempo que a Comuna de Paris e a própria etapa especificamente revolucionária/progressista da Revolução Francesa:

“O Trabalhador tem que ser salvo mesmo que não possa trabalhar. Se o salvarmos nestes anos próximos, salvamos o país, a sociedade e o Socialismo. Se não o Salvarmos, regressaremos à escravatura salarial”.

O tema da palestra como o nome sugere remete à polêmica junto a setores ligados aos grupos Mencheviques e Socialistas Revolucionários que utilizam palavras de ordem como “democracia”, “liberdade” e “igualdade” numa conjuntura difícil como a supracitada e de forma oportunista, para atacar a revolução e seus dirigentes bolcheviques. Como é comum, Lênin é didático, objetivo e preza pela clareza na argumentação política: passa em revista os principais slogans utilizados para “iludir o povo” e em poucos parágrafos tece a crítica que revela como os “filisteus” que reivindicam estas palavras de ordem, o fazem a serviço da contra revolução.

Uma primeira crítica que surge é a de que tanto os oportunistas mencheviques quanto os bolcheviques igualmente não deveriam ser julgados por terem feito acordos com o imperialismo. Há aqui o desvirtuamento de um problema decisivo: o colaboracionismo de setores que passaram do lado da contra-revolução para o lado da revolução e se omitem de fazer auto crítica – partidários de um acordo com os imperialistas franceses contra a revolução russa, não deveriam constranger-se de transigir contra a revolução e o imperialismo pois o mesmo foi feito pelos bolcheviques em Brest[1]

Lênin ridiculariza tal equiparação: o acordo de Brest foi antes um assalto das potências sobre a fragilizada revolução russa. Já os russos propunham a paz e dentro de uma concepção bastante avançada com a revelação dos documentos diplomáticos para o conhecimento de todos os povos. Não se pode confundir guerras de rapina imperialistas com as guerras civis revolucionárias: os oportunistas causam confusão ao quererem confundir as duas guerras e difundir a ideia de que os bolcheviques “promoveram a guerra enquanto prometeram a paz”. Sem nenhum idealismo, os bolcheviques, ainda durante a participação da Rússia na I Guerra diziam ser impossível “acabar com a Guerra Espetando a Baioneta na Terra”, por um simples ato de vontade unilateral, o que sugere mais uma vez a expectativa dos russos de que a vitória mesmo da revolução dependeria do desmembramento da luta revolucionária nos demais países.

A palavra de ordem da “liberdade” ou a ausência dela não seria uma trivial crítica em comento apenas nos países capitalistas. Kautsky, líder da segunda internacional, acusa mesmo a Revolução Russa de militarismo. Aqui Lênin dá mostras de um profundo conhecimento de Marx – quando se conhece uma teoria abstrata e com vasta abundância teórica como o marxismo, temos sinais de quem a domina quando é capaz de disseminar em poucas frases o que é mais essencial e importante sobre cada tópico. Falar de maneira simples sobre temas complexos revela o pleno domínio de Lênin sobre o marxismo. E o que o Marxismo e os bolcheviques têm a dizer sobre a liberdade?

“No momento em que se atingir a destruição do poder do Capital em topo mundo, ou mesmo num país, nesse momento histórico, quando a principal tarefa for a luta de classes trabalhadoras pelo total aniquilamento do Capital, pela completa destruição total da produção mercantil, qualquer pessoa que, em tal momento político, utilize as palavras “Liberdade em Geral” que, em nome desta liberdade atue contra a ditadura do proletariado,  está à serviço dos exploradores e nada mais, é sua aliada, porque a liberdade, quando não subordinada aos interesses da emancipação do Trabalho do jugo do Capital, é uma fraude, como declaramos nosso programa do partido”.

Em outros termos, não há liberdade onde existe opressão do capital pelo trabalho e propriedade privada: no capitalismo, a liberdade é meramente formal e tem como destinatária as classes proprietárias. Nãos se pode cogitar palavras de ordem ou slogans como “liberdade” sem situá-los no campo da luta de classes, o que é mais grave quando se parte a fraseologia de setores que se dizem socialistas[2].

O slogan da igualdade igualmente de nada serve quando associado à exploração do trabalho. Ademais, no marxismo igualdade significa abolição das classes sociais – não tem um sentido vulgar das supressões das diferenças do ser humano ou de fazer todos iguais.

Na Rússia havia uma questão de ordem específica acerca do problema camponês e da especulação do trigo. Objetivo especial na Rússia é destruir a diferença (existente àquela altura) entre trabalhador/operário e camponês.    A revolução destrói as instituições capitalistas mas não remove hábitos seculares dos camponeses como aquela especulação associada à compra e venda – e os bolcheviques travam uma luta para impor a obrigação da entrega do excedente do trigo por preço fixo.

O Camponês vacila entre trabalhador e burguês. A tendência especuladora se relaciona com o fato do camponês vender o trigo, o pão, o alimento, insumo de primeira necessidade do qual depende toda sociedade. E a luta para trazer o camponês para junto do campo do trabalhador é aqui decisiva, enquanto o campo adversário advoga palavras de ordem como “livre comércio do trigo” que eventualmente soam melhor aos ouvidos dos camponeses mais despolitizados ou influenciados pelo hábito secular.

Este camponês poderia ser com algum cuidado traduzido para os nossos pequenos burgueses dos dias modernos, como um pequeno comerciante, que igualmente tem as mesmas vacilações entre seguir as tendências do trabalho e do capital. De molde que este discurso de Lênin proferido ao calor da Guerra Civil revolucionária, com alto grau de radicalidade e intransigência, repudiando a fraseologia, tão comuns em nossa pobre esquerda pequeno burguesa, têm enorme atualidade.

As consignas da Constituição Soviética devem servir-nos ainda de mote. Ela não fala em democracia. Ela fala em ditadura e nega explicitamente o direito de voto àquele que não trabalha. Este “choque” supostamente “anti- democrático” pode ser muito produtivo. Se há um autor que falta leitura à esquerda brasileira hoje, este autor é Lênin. Era um dirigente que sabia o que era (e falava junto) à alma da classe operária. E o seu discurso radical e combativo coincide com o protagonismo revolucionário da classe trabalhadora.





[1] Tratado de Paz assinado entre o governo bolchevique e as Potências Centrais (Império Alemão, Império Austro-Hungaro, Bulgária e Império Otomano) pela qual era reconhecida a saída da Rússia da I Guerra Mundial.  3 de Março de 1908.
[2] Algo que não deixa de ser observado em certo partido brasileiro denominado Socialismo e “Liberdade”. 

terça-feira, 29 de novembro de 2016

“O Garimpeiro” – Bernardo Guimarães

“O Garimpeiro” – Bernardo Guimarães





Resenha Livro - “O Garimpeiro” – Bernardo Guimarães – Poeteiro Editor Digital – São Paulo – 2014

Bernardo Guimarães é provavelmente lembrado como autor do “Escrava Isaura”, obra que repercutiu junto ao público ao ser exibida em forma de telenovela por duas emissoras diferentes em 1976 e 2004. Tanto naquele romance (que se tratava de um curioso caso de uma escrava Branca) quanto no “Garimpeiro”(1872) observa-se um procedimento de idealização do instituto da escravidão que está relacionado com o estilo literário romântico do autor.

B. Guimarães nasceu em 1825 na cidade de Ouro Preto em Minas Gerais. Formou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco de São Paulo e foi da mesma turma do poeta byronista Álvares de Azevedo com quem criou junto a outros acadêmicos uma certa “Sociedade Epicureia” que ganhou fama na então pequena província paulistana. Após os estudos jurídicos, torna-se magistrado, exercendo atividade jornalística, pedagógica e literária.

“O Garimpeiro” foi publicado em 1872, mesmo ano do romance de “O Seminaristas”[1]: ambos trabalhos tem finas qualidades quanto ao estilo, predominando em “O Garimpeiro” já uma tendência de literatura regionalista ao descrever os costumes e o povo do triângulo mineiro (Patrocínio, Araxá, Uberaba e principalmente Bagagem, onde se passa o enredo).

Todavia, pode-se cogitar que a temática polêmica de “O Seminarista” que envolve uma tragédia amorosa decorrente da ausência de vocação religiosa de Eugenio a despeito de um cego, rigoroso, irracional e ao final inútil esforço dos padres do seminário em demover o protagonista de seu amor (que prevalece a despeito dos sentimentos de culpa infringidos pela religião), esta narrativa potencialmente controvertida junto ao público (daquela época) pode ter colocado em segundo plano “O Garimpeiro”.

O romance do garimpo situa-se no âmbito do romantismo e pode-se falar num estilo folhetinesco. Folhetim é um termo francês e remete ao periodismo, às publicações literárias – muitas das quais romances – que seriam, cada capitulo, lançado a cada dia no jornal. O mais importante romance de Machado de Assis, por exemplo, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, foi desenvolvido como folhetim de março a dezembro de 1880 na Revista Brasileira.

Mas quando propomos ao “Garimpeiro” a ideia de estilo folhetinesco queremos dizer que a obra tem um estilo literário voltado tipicamente ao público leitor de romances românticos: um pequeno público letrado, feminino de extratos da pequena burguesia nas cidades, leitores dos jornais e revistas. Trata-se de uma história de amor nos termos não de uma forma de consórcio do realismo literário que é objeto da crítica mordaz e da ironia, revelando os interesses pessoais meramente sensuais, prevalecendo o temor da opinião sobre o suposto sentimento do amor, dos quais tratam tão bem retratados um “Primo Basílio”[2] ou “Dom Casmurro”.  

O amor romântico de que se trata em “O Garimpeiro” é idealizado ao ponto de parecer pueril ao olhar do leitor de hoje. A História trata de Elias, um pobre porém inteligente rapaz que é contratado para trabalhar numa fazenda de um Major em cidade localizada no triângulo mineiro. Não bastarão muitas trocas de olhares e pouquíssimas palavras para que se concretize um amor fulminante e definitivo. (Observe-se que não há a troca de um primeiro beijo só após o desenvolvimento posterior da novela – Elias é pobre e para casar necessita enriquecer. Trabalha incessantemente no garimpo em Bagagem e não obtém sucesso. É convidado por um oportunista e é engambelado, partindo para uma cidade chamada Sincorá na Chamada das Diamantinas (BA). Ao retornar para sua cidade pensando ter os recursos para casar com seu amor, descobre que foi enganado com notas falsas e está perdidamente pobre. O Major, igualmente, abandona a atividade da agricultura e no garimpo não encontra resultados positivos e está instalado num casebre pobre. Lúcia e Elias estão pobres e neste ponto intermediário da narrativa vem o primeiro contato físico, o primeiro beijo do casal).

Se podemos pontuar algo como diretriz que permeia este romance é uma tensão geral entre o amor e o dinheiro. Na verdade a vontade de enriquecer ou os valores pecuniários (com uma exceção) possuem uma característica de desagregação. Araxá, Patrocínio e Bagagem são três cidades referidas e que fazem parte do triângulo mineiro. Bagagem é um povoado onde se concentram pessoas oriundas dos outros três distritos. Vêm em busca de diamantes e muitos abandonam a agricultura (inclusive o major) em busca do enriquecimento rápido nas minas. O resultado é a desilusão e o empobrecimento, além do abandono das terras.

São conhecidos aqui os relatos de historiadores de como a atividade da mineração implicou num empobrecimento, desde a era colonial – a busca desenfreada pelo ouro foi como uma atividade especulativa, uma expectativa de rápido enriquecimento mas que, ocasionalmente, resultava em frustração e desagregação social. Houve mesmo a chaga da fome nos distritos diamantinos na Era Colonial.

Outro aspecto em que a busca pelo dinheiro sugere a desagregação e o conflito envolve o personagem Leonel. Trata-se de um baiano que vem a Bagagem e seduz o desiludido Elias (sem perspectiva de obter dinheiro para fazer a corte de Lúcia) a segui-lo até Sincorá e desde lá ser seu preposto. Tratava-se Leonel de trapaceiro, um falsificador de moedas e pior: depois de Elias descobrir que todo seu trabalho nas minas fora inútil e que seu dinheiro como salário não tinha nenhum valor, descobrira que o mesmo larápio estivera fazendo a corte de sua amada Lúcia. A ideia de falsas moedas remete a uma noção mais geral de ilusão: o dinheiro e a riqueza criaram expectativas que foram demolidas quando o dinheiro de Elias não foi aceito em Bagagem e todos os seus sonhos caíram por terra. A todo momento Elias faz remição de sua má sorte ao destino e a Deus.

A desagregação em face dos valores pecuniários se refere igualmente a uma questão paralela: do dinheiro que perde valor, ao Major que de rico que era, pobre fica, passando a agir de forma a pressionar intensamente Lúcia a aceitar um casamento a contragosto. Trata-se aqui do problema da pobreza ou mais especificamente do empobrecimento:

“Os Homens de alma fraca e espírito acanhado, quando de ricos que eram caem em estado de pobreza, tornam-se irritáveis, intolerantes, injustos e até às vezes cruéis. O rancor de que se acham possuídos contra o destino que os maltrata e do que não se podem vingar, eles o desabafam contra as pessoas que com eles vivem e lhes são sujeitas. O Major, encolerizado com as delongas e hesitações de Lúcia, perdeu aquela prudência e bonomia que sempre o caracterizava, e, calcando aos pés o decoro e o respeito que sempre guardava para com os sentimentos de sua filha, acabrunhou-a com um montão de impertinentes repreensões e cruéis exprobrações (...) ”

Diz-se que pode-se ficar rico rapidamente através do jogo, do garimpo e do testamento. Esta última forma seria o único meio em que o enriquecimento sugeriria no enredo uma forma não ingrata de encontro pelos personagens: muito pelo contrário, o término da história é um belo ato de gratidão. 

Vamos deixar de contar o final da história e garantir ao leitor da resenha o prazer da leitura deste belo romance.

De outra forma, o “Garimpo” tem interesses especiais que vão além dos meros romances românticos de costumes. Trata-se de um romance que de forma pioneira introduz o regionalismo e aborda usos e costumes da região diamantina do Brasil Imperial. Há passagem da festa popular da Cavalhava, atividade que mistura esporte e encenação do embate entre cristãos e mouros, e que por sinal, contava com ampla participação e simpatia popular. A própria atividade do garimpo, as transformações urbanas e as descrições paisagísticas têm interesse não só literário, mas histórico. Todavia, o mesmo não deve ser dito do tipo de relação existente entre o escravo Simão, a escrava Joana e seus respectivos donos. Como já sugerido, há aqui o mesmo tipo de idealização da escravidão que há no procedimento das narrativas românticas. É necessário portanto cotejar o romance com o panorama histórico do período. Lê-lo como um romance e distinguir na medida do possível o que existe de história e o que há de ficção.
        

domingo, 27 de novembro de 2016

“Crônicas de Londres” – Eça de Queirós

“Crônicas de Londres” – Eça de Queirós



Resenha Livro - “Crônicas de Londres” – Eça de Queirós – Poeteiro Editor Digital – São Paulo – 2014

Uma primeira lembrança que nos vem à mente quando falamos de Eça de Queirós invariavelmente remete-nos às suas obras realistas. Provavelmente as mais conhecidas são o  trágico-cômico “O Crime do Padre Amaro” (1875) e o “Primo Basílio” (1878). Na verdade, Eça de Queiros foi um dos fundadores do movimento literário realista em Portugal a partir daquilo  que ficou conhecido como “Questão Coimbra” – uma geração de escritores dos anos 1870 como Oliveira Martins, Antero de Quental e Teófilo Braga entram em contenda com o tradicionalismo literário em Portugal em face de arcadismo de Castilho. Ainda que não esteve presente diretamente na contenta, ela expressa por um lado as mesmas cogitações de uma inovação literária: a objetividade em detrimento da subjetividade na forma narrativa; um tendência materialista em oposição ao sentimentalismo; uma forte reação à importante influência do Clero e das Monarquias Absolutistas (no caso do clero, considerado fator de atraso de Portugal, e intensamente ridicularizado do “Crime do Padre Amaro”) e uma preocupação real em modernizar (não revolucionar) o presente, transformar a arcaica e atrasada Portugal em face de países cosmopolitas e avançados em termos de esclarecimento e luzes, como Inglaterra e França. 

Este último ponto parece ser uma chave para compreender esta fase específica e em que se situa as “Crônicas de Londres” (Redigidas em 1877 e 1878): foi composta alguns anos depois do “Crime do Padre Amaro” e no mesmo ano do “Primo Basílio” e se situa na fase realista de Eça de Queirós, dentro do momento em que o que informa sua produção literária, mesmo quando se tratando de crônicas de jornais, é o realismo literário. Isto dá um sabor especial as crônicas. São escritas com humor, com ironia e com a crítica social impiedosa de sua fase realista de escritor.

Apenas alguns esclarecimentos rápidos quanto à trajetória de vida de Eça de Q. de molde e explicar sua chegada à Londres e sua atividade como cronista.

José Maria de Eça de Queirós nasceu em 25 de Novembro de 1845 em Portugal. Seu pai era magistrado, formado em Direito em Coimbra e juiz em diversos tribunais. O jovem Eça seguiu a mesma carreira e ingressou na mesma universidade donde conheceu Antero de Quental. Em 1866, 

Eça forma-se bacharel e exerce a advocacia e o jornalismo. O escritor ingressa na carreira diplomática e em 1873 é nomeado cônsul em Havana Portugal. Para os estudos do livro que temos em mãos importa-nos o período de 1874-1878  quando exerceu carreira diplomática em Newcastle e Bristol. Neste período manteve atividade jornalística publicando esporadicamente no “Diário de Notícias” e “A Atualidades”, periódicos portugueses, sob a rubrica “Cartas da Inglaterra”. Apenas em 1888 seria nomeado cônsul em Paris. Dois anos depois falece o grande escritor que não só esteve no realismo literário – há mais fases em sua obra e basta dizer que obras posteriores como “A Cidade e a Serra” sinalizam uma espécie de recomposição com o gênero humano, havendo de comum com os trabalhos anteriores a quase perfeição do estilo conciso e lírico. (Eça é um autor que revela emoções).

A reunião destes artigos de jornais desde a Inglaterra dar-se-iam postumamente, apenas em 1905. Entre 1877 e 1878 havia a Guerra entre Russos e Turcos, da qual logo discutiremos, mas desde já, uma série de reportagens de um contemporâneo acerca da guerra levanta um enorme curiosidade histórica: qual era a repercussão da opinião pública sobre a guerra considerando as vacilações da classe política em entrar ou não no conflito? Como se processou a guerra a partir dos olhos dos extratos mais elitistas da europa que não deixavam de olhar sem uma certa superioridades para os eslavos e turcos – não deixar de considerar que estamos em 1877-1878, era dos primórdios do Imperialismo, quando  mal se ocultavam percepções acerca da maior e menor civilidade de povos dando suporte ideológico às aventuras coloniais.

E não só a Guerra da Turquia é o ponto político abordado nas crônicas: temos notícias de pelo menos três grandes insurreições operárias, incluindo uma greve em face de companhia de ferrovia que quase se desenvolve numa guerra civil:    

“O Grande Acontecimento da Quinzena é a formidável insurreição que rebentou nos Estados Unidos. As Companhias de Caminhos de Ferro de Baltimore e Ohio reduziram os salários dos empregados de dez por cento e aumentaram duas horas de trabalho por dia. Isto originou uma greve. As companhias recrutaram novo pessoal, mas os grevistas atacaram estes intrusos, espancaram a polícia que os defendia e, finalmente, resistiram à Guarda Nacional. Movimento, então, espalhou-se como fogo em restolho: 10 estados tomaram parte na resistência, a greve estendeu-se a cinquenta mil milhas de caminho de ferro, a população baixa tomou o partido dos grevistas e esteve-se em vésperas  de uma temerosa guerra civil. Houve verdadeiras batalhas entre insurrectos e a tropa, e pode-se fazer uma ideia do desastre sendo que só em Pittsburbgh os prejuízos causados pela insurreição elevam-se a três mil e seiscentos contos.”

Fica visível que naqueles anos que marcam cerca de 30 anos do lançamento do Manifesto Comunista[1], 10 anos após o lançamento do primeiro volume do Capital e com Karl Marx e Engels ainda em atividade, e, mais importante, em face de uma etapa do capitalismo em que não há qualquer proteção social, remota era a Justiça do Trabalho, com redução salarial sem qualquer negociação coletiva e o uso da força policial em caso de qualquer resistência, Eça relata comumente eventos de greves que surpreendem o leitor de hoje pelo nível de radicalidade e até adesão espontânea do povo pobre. Não temos porque duvidar de Eça de Queirós - uma espécie de burguês liberal, frequentemente contrário aos motins. Ele não está carregando nas tintas.

Assim relata-se a greve de 15 mil carvoeiros no Norte da Inglaterra após os patrões imporem a redução de 10% dos salários.

Outra insurreição operária descrita é em Lancashire envolvendo os tecelões. Mais uma vez, importa destacar a radicalidade do movimento.

“Manufaturas incendiadas, casas destruídas, lojas de bebidas saqueadas, patrões perseguidos a tiros, reclamações forçadas de dinheiros e de provisões, não faltou para dar ao distrito Manchester o aspecto atroz de um província em poder idas hordas de Saballs ou de Dorregaray. No entanto não só não se indignam, mas nem sequer se lamentam: limitaram-se a contar secamente os ultrajes cometidos. Das associações operárias não saiu um único protesto contra estas desordens. E não se pode negar que a insurreição tenha uma vaga, uma imponderável simpatia”.

De outro lado, todas as crônicas aparentam ter como pauta principal, com raras exceções, a Guerra da Rússia com a Turquia (1877 – 1878). O sentido mais geral deste conflito diz respeito ao desejo dos russos de obter acesso ao mar mediterrâneo e a captura da península dos Balcãs controladas pelo Império Otomano (Turcos). Formalmente, a declaração russa ia no sentido de que a “Guerra Santa” significava libertar “o irmão eslavo e cristão” (Bulgária, Romênia, Sérvia, Montenegro, etc.) do jugo turco sob a égide do islã.

A Rússia declarou guerra contra o Império Otomano em 24 de Abril de 1877- as crônicas de  Eça de Queirós demonstram uma simpatia geopolítica pela Inglaterra que naquele momento se opunha à Rússia. O Objetivo do Czar é tomar Constantinopla (capital do Império Otomano, hoje Istanbul), uma localização estratégica por fazer a divisa entre a Ásia e a Europa. Os problemas de uma presença militar na Rússia em Constantinopla para a Inglaterra são: coloca em risco a supremacia britânica no mediterrâneo; abala o prestígio colonial na Índia; pode colocar em risco para a Inglaterra o domínio do Canal de Suez. Ao cabo, a Rússia não toma Constantinopla definitivamente.
Ao término da guerra, há o esfacelamento do Império Turco Otomano e a extinção de todos os seus territórios da Europa – a Turquia agora é um país exclusivamente asiático. Ao final os turcos perdem România, Sérvia, Montenegro, Bósnia, Bulgária e Roméria.

Para além do que poderíamos nos referir como história política, que salta aos olhos desde uma fonte preciosa que é a crônica de um jornal de época, temos com estes textos de periodismo referências àquilo que os historiadores chamam de história do cotidiano. A atividade jornalística é o periodismo e as crônicas referem-se não só aos grandes eventos mas ao habitual, às questões que divertem e que envolvem desde a crítica literária e artística até os comentários sardônicos e escândalos da alta sociedade europeia acerca de questões corriqueiras – a não aceitação da rainha em uma meeting em razão da convidada ser uma recém convertida ao catolicismo (num país protestante); uma trapalhada de um príncipe chamado a ser deputado e revelando num discurso que não preparou-se nem para a oratória e que não sabe sequer o que é “administração local”; ou casos extraconjugais que são causas de burburinho, remetendo ao “Primo Basílio”. São fatos que só demonstram interesse aos leitores de hoje por saírem da pena de um escritor realista do calibre de Eça de Queirós que nos seus romances dissecava com humor e ironia aquela mesma sociedade baseada em vícios, cinismo e perversão, ocultado pelas regras triviais dos bons costumes.

“Crônicas de Londres” portanto têm dois grandes valores: um grande valor histórico acerca da histórica política e social (do cotidiano, das lutas operárias, das colônias na Índia, etc.) do séc. XIX;  e um valor artístico  a partir de procedimento com o qual narra suas crônicas de forma  similar aos seus geniais romances realistas.






[1] Ainda que, como se sabe, não exista uma correlação histórica entre as edições do livro “O Manifesto Comunista” e o nível de organização. A Rússia incrivelmente esgotou as edições do livro rapidamente e teve uma organização operário-sindical débil no séc. XIX até pelas próprias condições políticas do país.   Ver “Sobre História”. HOBSBAWM. Erc. Cap. 22.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

“Sobre História” – Eric Hobsbawm

“Sobre História” – Eric Hobsbawm



Resenha Livro -  “Sobre História” – Eric Hobsbawm – Ed. Companhia de Bolso

“Nas últimas décadas, tornou-se moda, principalmente entre pessoas que se julgam de esquerda, negar que a realidade objetiva seja acessível, uma vez que o que chamamos de “fatos” apenas existem como uma função de conceitos e problemas prévios formulados em termos dos mesmos. O passado que estudamos é só um constructo de nossas mentes. Esse constructo é, em princípio, tão válido quanto outro, quer possa ser apoiado pela lógica e por evidências, quer não. Na medida em que constitui parte de um sistema de crenças emocionalmente fortes, não há, por assim dizer,  nenhum modo de decidir, em princípio, se o relato bíblico da criação da terra é inferior ao proposto pelas ciências naturais: apenas são diferentes. Qualquer tendência a duvidar disso é “positivismo”, e nenhum termo desqualifica mais que este, exceto empirismo.

Em resumo, acredito que sem a distinção entre o que é e o que não é assim, não pode haver história. Roma derrotou Cartago nas Guerras Púnicas, e não o contrário. O modo como montamos e interpretamos nossa amostra escolhida de dados verificáveis (que pode incluir não só o que aconteceu mas o que as pessoas pensaram a respeito) é outra questão.”.

Eric Hobsbawm nasceu na Alexandria (Egito) em 1917. Foi educado na Áustria, Alemanha e Inglaterra. Estudou história em Cambridge nos anos 1930 quando teve contato e efetivamente aderiu aos pressupostos teórico-metodológicos do marxismo. E. H. referia-se a  tal concepção como forma materialista da história. (E ao longo dos ensaios o longevo historiador manteria tal orientação metodológica, reivindicando, em seus termos, um marxismo “pluralista”). Hobsbawm recebeu título de doutor honoris causa de universidades em diversos países. Lecionou até se aposentar no Birkbeck College da Universidade de Londres e posteriormente na New School for Research. 

Um fato curioso sobre a biografia do historiador é que serviu sem qualquer distinção militar durante a II Guerra Mundial: tal fato é comentado em um dos capítulos do presente livro ao discutir os efeitos da memória pessoal vivenciada pelo historiador como elemento que diferencia a construção da narrativa em face de outras possibilidades de construção da história criadas pelas novas gerações. Ainda sobre Hobsbawm, importa ressaltar seu vasto trabalho que envolve desde uma pesquisa exaustiva sobre o ciclo de desenvolvimento/ascensão da burguesia e do capitalismo em nível mundial, a partir da “Era das Revoluções” – a dupla revolução industrial e política em França em 1789, passando pelo ciclo de expansão na “Era do Capital” e o salto qualitativo donde a fase do capitalismo da livre concorrência dá um salto num sentido do capitalismo dos monopólios na “Era do Imperialismo” culminando no curto século XX denominado “Era dos Extremos”. Há importantes trabalhos pelo historiador acerca de assuntos temáticos que vão da história social do jazz a questões envolvendo à gênese e desenvolvimento da classe operária, passando pela categoria dos “Bandidos Sociais”, fenômeno associado às sociedades camponesas em desagregação e verificados em todos os cantos do mundo – Hobsbawm literalmente inaugura os estudos desta categoria analítica há cerca de 40 anos. Desde já, afere-se a relevância deste grande historiador marxista, falecido em 1º de Outubro de 2012.

“Sobre História” é uma compilação de palestras e ensaios proferidos/redigidos nas últimas décadas do século XX tendo como tema reflexões acerca da própria história: para aqueles familiarizados com os cursos de graduação de história, estamos diante das cogitações que informam as disciplinas de Metodologia da História, Filosofia da História ou Teoria da História.

Ao assumir a concepção materialista da história, Hobsbawm já assume alguns bons combates, por exemplo com uma certa tendência bastante em voga no âmbito acadêmico e que se refere ao pós modernismo. Para o pós modernismo, não há por exemplo a possibilidade de se aferir um sentido para a história e não se demarcam fronteiras claras entre a história e a ficção. Hobsbawm contra argumenta estabelecendo que a história está comprometida com as evidências: a história investiga o real e por isso não é ficção.  Todavia, isto não significa que exista uma história definitiva sobre cada evento histórico. Cada nova geração suscita novas questões. Consideremos por exemplo a Revolução Russa e suas histórias. Com o fim da URRS e mesmo com a queda do Muro de Berlin novas gerações de historiadores puderam apreciar a história da Revolução Russa sob uma nova perspectiva, ou seja, escreveram uma nova história, a partir de novas questões. Quanto ao sentido da história, trata-se de um pressuposto que informa mesmo uma noção mesmo incontroversa que diz respeito ao progresso em que pese antropólogos reivindicarem uma certa equiparação a título metodológico entre a civilização e a tribo de índios mundurucus. Como se sabe, o pressuposto marxista é que a sociedade cingida em classes sociais corresponde a pré-história da humanidade: as verdadeiras possibilidades que inauguram a sociabilidade a história dar-se-ão no comunismo, sociedade sem classes sociais. A sequência de modos de produção, em que pesem algumas deficiências explicativas – por exemplo o não desenvolvimento do capitalismo em partes do mundo como na China – dão um aspecto geral teleológico à história.

Bons capítulos dos ensaios de Hobsbawm são dedicados à contribuição de Marx à historiografia, incluindo mesmo uma Introdução ao Manifesto Comunista. A Concepção Materialista da História em Marx foi formulada em meados de 1840 e já se constata aspectos de sua aplicação no “Manifesto Comunista” de 1848, antes portanto do desenvolvimento da sua “Contribuição à Crítica da Economia Política” e “O Capital V. I”, concretizados a partir das pesquisas de Karl M. na Biblioteca Britânica de Londres desde o Verão de 1850. A noção de história de Marx envolve uma ideia de que a história do homem corresponde ao controle ou domínio crescente do mesmo sobre a natureza – daí referir-se à revolução neolítica e ao progressivo desenvolvimento de forças produtivas que envolvem a agricultura, a metalurgia, com concomitante criação das cidades e desenvolvimento da escrita.

Hobsbawm reitera em diversas passagens que a grande contribuição de Marx para os historiadores foi a concepção materialista da história – fato reconhecido, de resto, por muitos não marxistas. É preciso aqui esclarecer que “materialismo” não deve ser compreendido em sua acepção vulgar e ser confundido com “coisa” ou “matéria” em oposição ao “espírito”. Materialismo conforme a acepção marxista que advém da “Ideologia Alemã” (1846) significa relações sociais historicamente determinadas. Portanto, o materialismo histórico subverte por exemplo o positivismo de Leopold Von Ranke que tem como chave explicativa da história uma narrativa meramente cronológica baseada nos “Grandes Eventos”, quais sejam, Reis, Batalhas e Tratados Diplomáticos. O Materialismo Marxismo se baseia na primazia das relações sociais ou mais especificamente nas relações sociais de produção e buscará, por exemplo, no âmbito na Idade Média, buscar respostas especialmente dentro das relações de trabalho na seara do terceiro estado e do modo de produção feudal.

Um dos capítulos que certamente mais interessam os leitores brasileiros é “O Que a História tem a Dizer-nos Sobre a Sociedade Contemporânea”?

Em geral os cursos de História ensinam três grandes pecados aos discentes que ingressam na graduação. O Pecado do Anacronismo que envolve ler os desejos pessoais do presente no passado; o Pecado da história contrafactual que envolve fazer a pergunta “e se”? (E Se Lênin não tivesse morrido em 1924 e dirigido a revolução russa por mais 20 anos? Quais seriam os Destinos da URSS?) E o Pecado dos prognósticos: historiadores se voltam ao passado e não fazem futurologia. Pois Hobsbawm de forma ousada encoraja seus alunos ouvintes tanto a refletir sobre a história contrafactual quanto a fazer prognósticos sobre o futuro: o futuro da tendência histórica e o futuro do acontecimento. (De certa maneira é possível imbricar a história contrafactual e os prognósticos).

Certamente estamos diante de enormes desafios, mas também certamente a história oferece mais possibilidades para o prognóstico do que outras disciplinas ou nenhuma disciplina como ....a de um vidente. O historiador oferece a experiência histórica e a perspectiva histórica – sempre fundamentado no real e nas evidências. E os prognósticos, se não são feitos pelos historiador, serão feitos por outros, como políticos ou economistas. Na história, ao ler os escritos de Lênin entre abril de 1917 e outubro de 1917 afere-se a capacidade de prognóstico da tendência do movimento histórico pelo dirigente político: existiam grandes vacilações mesmo dentro do Partido Bolchevique quanto à possibilidade de vitória da insurreição e da tomada do poder e foi necessária uma luta política dentro do partido baseada na clarividência histórica de Lênin para a vitória de outubro de 1917.

Um dirigente do PSTU em 2013 lançou um vídeo sobre as mobilizações em curso no Brasil dizendo com todas as letras que não havia risco de golpe de estado no país, que os EUA e a União Europeia (ou seja o Imperialismo) não desejavam o Golpe de Estado no Brasil. Em 2016 ocorreu o Golpe de Estado no Brasil e já temos elementos para supor que houve participação do imperialismo nesta seara. Se o historiador opera com os elementos da perspectiva, e, mais importante, se nos deparamos com o fato de que não há um limite definido entre presente passado e futuro, parece-nos que a atividade de prognósticos é uma atividade intelectual a ser desenvolvida de maneira privilegiada pelo historiador. E aqui saudamos o PARTIDO DA CAUSA OPERÁRIA que vinha alertando sobre os riscos do golpe de estado no Brasil há anos.

O tema da teoria da história parece-nos um dos mais fascinantes da disciplina da História. A leitura deste ensaio de Eric Hobsbawm todavia extrapola os limites do público especializado.  É necessário compreender a história e aqui temos mais ferramentas conceituais para tal tarefa. 

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

“Escritos Avulsos II” – Machado de Assis

“Escritos Avulsos II” – Machado de Assis



Resenha Livro - “Escritos Avulsos II” – Machado de Assis – Ed. Globo

É quase trivial a afirmativa segundo a qual Machado de Assis é “um dos maiores escritores das letras brasileiras”. Podemos dizer sem exagero que a obra Machadiana tem um estatuto universal e ombreia clássicos que transcendem o tempo e as fronteiras geográficas: Machado de Assis é um clássico da literatura universal tal qual Dostoiévski com suas façanhas “Crime e Castigo” e “O Idiota”, Fernando Pessoa e seus respectivos heterônimos e Shakespeare com uma produção vasta, apenas para ilustrarmos respectivamente exemplos do romance, da poesia e do teatro.

Tal estatuto universal em Machado de Assis diz respeito particularmente aos seus contos e romances (gêneros literários que mais possibilitaram exsurgir seu talento) e especificamente à segunda fase de sua produção artística. Como se sabe, o autor fluminense costuma ter sua produção literária dividida em dois grandes turnos. Num primeiro momento, romances como “Helena” (1876), “Ressureição” (1872) ou “Iaiá Garcia” (1878) se situam na terceira fase do romantismo brasileiro. São romances de estilo folhetinesco, geralmente situados em ambiente urbanos e restringindo a tendência de forte idealização/platonismo amoroso que informava a questão sentimental da segunda fase do romantismo, o período byronista. Adverte-se aqui que falamos em “estilo” folhetinesco, ou seja, uma prosa associada ao periodismo/jornalismo e mesmo dirigida a um certo público feminino leitor dos jornais, que acompanhavam as tramas a cada dia – tal qual as telenovelas mais recentes. Mesmo porque o salto qualitativo em Machado de Assis a partir do qual se funda uma nova escola literária dá-se também com um romance publicado na forma de folhetim, uma “novela” de março a dezembro de 1880, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.

Qual é o salto de qualidade de 1881, ano de publicação das Memórias de Brás Cubas?

Brás Cubas é um defunto autor ou um autor defunto. Inicia as suas “Memórias” após uma experiência traumática cheia de simbolismos em que a morte surge-lhe como a Natureza, com um gênero feminino – e em seus delírio vê passar a história de toda a humanidade. O expediente de tratar de suas memórias após a morte serve como mecanismo que dá vazão aos segredos mais íntimos da alma e do coração. A morte cria as reais possibilidades de se exprimir com uma verdadeira indiferença em face do olhar do outro – afinal trata-se sempre de um autor defunto ou de um defunto autor. Tal efeito cria a possibilidade de uma narrativa franca, excessivamente franca. Como diria em certo conto de Machado de Assis, a verdade é osso duro de roer, in verbis:

SERMÃO DO DIABO

(....)



16º Igualmente ouviste o que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao Senhor os teus Juramentos.

17º Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade, nua e crua, além de indecente, é dura de roer; mas jurai sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou, todos acenderão velas”.


O realismo literário envolverá uma arguta análise psicológica das personagens, a crítica social e dos costumes, a objetividade em detrimento da subjetividade na descrição dos ambientes e pessoas, uma certa conexão com concepções positivistas a partir das quais haveria a possibilidade de observar e reproduzir fielmente a realidade (propósito levado adiante com maior intencionalidade pelo naturalismo). E um aspecto que em Machado de Assis nos é fundamental para compreender os contos em comento: se no romantismo, o amor e o casamento são frequentemente motivos de realização pessoal, no realismo, descambam o amor e o casamento corriqueiramente no trágico-cômico e são o pretexto para atestar a personalidade mesquinha, egoísta, interesseira, de um ser humano com motivações distintas daquele herói romântico dos romances de Alencar e das primeiras obras do romantismo brasileiro, por ex.

Ainda quanto ao estilo, Machado de Assis, em sua fase derradeira, ganha um refinamento no humor e na ironia, e passam a ser frequentes certos lances imaginativos e criativos de diálogo com o próprio leitor, remissões a filósofos e tiradas retóricas – sempre num tom humorístico.

Aliás, chega a ser impressionante como alguém sem escolaridade superior e auto- data, advindo do Morro do Livramento, filho de pintor de paredes e de lavadeira, neto de escravos alforriados, mulato e gago, com todos estes predicados, enfim, ter ascendido culturalmente e ter sido reconhecido em sua época, num país ainda eivado pela chaga da escravidão. Em romances, contos e crônicas há citações em francês, latim, inglês, remete-se a filósofos, destacando-se sempre Montaigne e filósofos gregos. 

Consta que Machado de Assis era um leitor compulsivo e conhecia as obras de Gustave Flaubert, E. Zola, Balzac, Shakespeare, Pascal e Shopenhauer, entre outros. É muito comum observar citações de termos jurídicos em sua prosa, utilizados fora do contexto processual, mas dentro do escopo de uma prosa, seja de um conto, crônica ou romance: o que é interessante é que, ao contrário da grande maioria dos bacharéis de sua época que se aventuravam no mundo das letras e tinham o diploma de direito, parece que Machado de Assis foi assimilando os conceitos jurídicos como redator jornalístico do “Diário do Rio” ao cobrir as sessões do Senado. E pode-se sempre reparar como os termos jurídicos são utilizados com precisão, ao contrário de um jornalismo contemporâneo tacanho até mesmo no acerto da língua portuguesa, confundindo o “furto” com o “roubo”.   

Estes “Escritos Avulsos II” correspondem a uma compilação de autoria da Editora Globo. Boa parte destes contos foi primeiro publicada sob nome “Relíquias da Casa Velha” (1906). Alguns dos Contos foram publicados por Machado de Assis entre 1874-78 no “Jornal da Família” e outros no “Jornal Estação” em 1882. E aqui reside o interesse singular desta coletânea: se o ponto de virada da obra de Machado de Assis, do romantismo ao realismo se situa no Romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”(1881), é possível encontrar embaralhados nestes contos desde prosas com caracteres que pendem para o romantismo e para o realismo como “História Comum” (em função da sacada filosófica e do refinado humor) ou “Uma Carta” - cujo final destoa bastante dos motivos amorosos associados à realização através do amor, mas antes ao efeito trágico-cômico:

“Celestina empalideceu. Quando a preta a deixou só, Celestina deixou cair uma lágrima – e foi a última que o amor lhe arrancou”.

Celestina era uma solteirona de 39 anos e “não era bonita”. Recebeu uma carta de amor anônima pelas mãos intermediárias de uma escrava e exultou, pensando ter um admirador secreto.

“Celestina ficou realmente fora de si. A irmã não viu o que era, mas concluiu que alguém teria passado na rua, que enchera a alma de Celestina de uma vida desusada (obsoleta). Com efeito, durante a noite, esteve ela como nunca, alegre, e ao mesmo tempo pensativa, esquecendo-se de si e dos outros”.

A decepção advém da descoberta de que a carta não era destinada a Celestina: a escrava cometera um engano e a missiva tinha como destinatária a irmã Joaninha.

Outros contos parecem ter o estilo folhetinesco associado àquele público feminino leitor de jornais, citadino e eventualmente pouco afeto a uma literatura com maiores possibilidades de reflexão acerca da consciência das personagem e especialmente da crítica social daquele  tempo. É o caso do conto 

“O Caso Romualdo”. Aqui é como se houvessem todos os ingredientes para um desfecho realista, mas se observa o procedimento contrário: D. Carlota é uma jovem viúva desejada por Romualdo, amigo do de cujus (falecido). Todavia, o morto, quando convalescia, esteva fora da corte donde morava com a esposa e obteve do amigo Romualdo a promessa de que a esposa ou se conservasse viúva ou se casasse com um advogado chamado Dr. Andrade. Tal promessa cria um impasse para 

Romualdo e vejamos qual o procedimento literário a partir do qual a consciência da personagem nos é revelada:

“Romualdo podia não ir adiante, e desejou isso mesmo. Estava certo da sinceridade da viúva, e da resolução anunciada; mas o diabo do Andrade com os seus modos finos e olhos cálidos fazia-lhe travessuras no cérebro. Entretanto, a solenidade da promessa tornou a aparecer-lhe como um pacto que se havia de cumprir, custasse o que custasse. Ocorreu-lhe um meio termo: obedecer à viúva, e calar-se, e, um dia, se ela deveras se mostrasse disposta a contrair segundas núpcias, completar-lhe a declaração. Mas não tardou em ver que isto era uma infidelidade disfarçada; em primeiro lugar, ele poderia morrer antes, ou estar fora, em serviço ou doente; em segundo lugar, poderia ser que lhe falasse, quando ela estivesse apaixonada por outro. Resolveu dizer tudo.”

Em que pese as vacilações, Romualdo adimpliu com as obrigações a despeito de seus interesses individuais: esta não é a regra quando observamos o tratamento da questão sentimental e do amor no contexto do realismo literário.

O que é certo é que existem nos contos de Machado de Assis fenômeno similar aos romances. Os contos de feitio romântico não têm o humor e ironia, as possibilidades de reflexões filosóficas por meio da análise psicológica que se extraem por exemplo de “O Alienista”[1] (1882). Todavia, reiteramos que tanto as obras “juvenis” quanto de “maturidade” de Machado de Assis devem ser conhecidas, não só pelos méritos artísticos, mas como preciosas fontes acerca do passado brasileiro do Segundo Império, particularmente o ambiente urbano fluminense, as lojas da famosa Rua do Ouvidor, o amplo leque social desde uma alta, média e pequenos camada de proprietários e funcionários públicos (Ex. advogados, comendadores, parlamentares, militares, jornalistas, estudantes, médicos etc.) enfim, as relações sociais e culturais que perpassam as histórias, especialmente em face da tendência narrativa objetiva de Machado de Assis. Sua narrativa confere a possibilidade de se adentrar à intimidade doméstica dos lares burgueses do Brasil do II reinado, incluindo passagens críticas (sutis) acerca das contradições envolvendo a força de trabalho escrava.

  





[1] Alguns consideram “O Alienista” uma novela.