sábado, 31 de outubro de 2015

“Caio Prado Júnior – O Sentido da Revolução”- Lincoln Secco

“Caio Prado Júnior – O Sentido da Revolução”- Lincoln Secco



Resenha Livro – 198 -  “Caio Prado Júnior – O Sentido da Revolução” – Ed. Boitempo – Coleção Retratos Paulicéia 

Existem diversas formas de se traçar a biografia de um grande vulto da história. Uma possibilidade, talvez de menor valor científico, corresponde a fazer um inventário enciclopédico dos principais feitos do personagem ao longo da história, ficando a cargo do leitor extrair a relevância histórica do biografado. 

Uma biografia como um gênero da história enquanto disciplina é muito mais do que isso. Envolve em primeiro lugar a seleção de indivíduos dignos de serem objeto de uma biografia, o que sem dúvida é o caso de Caio Prado Júnior. Este foi historiador, economista, geógrafo,  filósofo e ativista do partido comunista, além de parlamentar. Destacou-se como historiador do Brasil, praticamente fundado os estudos de nosso passado colonial desde bases materialistas. Projetou-se na história como interlocutor de grandes debates, particularmente sobre a questão agrária, e influenciou o rumo dos acontecimentos da nossa trajetória, como um intelectual orgânico, seja na academia, seja como militante partidário, seja no parlamento. 

Outrossim, não só pela escolha temática uma biografia tem o condão de ser classificada como um ramo da história. Ao lermos sobre a vida, a trajetória pessoal e militante, as ideias e os impactos de pensamento e produção teórica de Caio Prado, o biógrafo Lincoln Secco nos oferece um panorama da história das ideias do Brasil entre os anos de 1930 desde a geração modernista até os anos 1970-1980, até mesmo especificamente a evolução dos embates teóricos específicos da esquerda e do PCB dos quais Caio Prado se envolveu, mais diretamente a partir de sua adesão em 1931 até a casacão de seu mandato em 1948. A biografia é um gênero da história quando a história do indivíduo se confunde com a processualidade ou a dinâmica dos acontecimentos mais gerais em que está inserida, sendo como um ponto cardeal da história das ideias e da cultura, bem como a expressão de diversos contextos históricos aparentemente sem sentido. 

Caio Prado Júnior vem de origem de família rica e tradicional de São Paulo. Por um lado a família Prado, da qual sairiam proprietários de fazendas de cafés, prefeito da cidade e outros parlamentares e também do ramo por parte de avós da família Conde Álvares Penteado, que ainda hoje mantém fundação conhecida na cidade. Importante ressaltar que nas vezes em que esteve preso por envolvimento com atividades políticas ligadas ao PCB, Caio nunca se serviu de suas influências familiares para se safar das penas em detrimento dos demais companheiros – foi preso pela primeira vez em 1935, quatro anos após a adesão ao PCB, em 1948, um ano após sua cassação de deputado constituinte em São Paulo e depois na ditadura militar nos anos 1970. Quando muito, sua ligação com o partido serviu de entreveros na família e fontes de volumosos empréstimos junto ao partido.

É de se colocar que a adesão de Caio Prado, como filho das classes mais abastadas de São Paulo, era vista com desconfiança pelo partido, principalmente em sua fase mais obreirista, durante os anos de 1930, com a ascensão de Prestes na direção do PCB. Lincoln Secco acredita que sua adesão se dava por uma crença de que aquele partido sinalizava um projeto de modernização, uma perspectiva civilizatória, O que tornava explicável aquele aparente paradoxo – um filho da elite mais bastarda, recém saído da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco aderindo ao partido do proletariado:

“Tendo alta origem social, ele (Caio Prado Júnior) mais de uma vez falou acerca do quanto a degradação dos que estavam embaixo degradava igualmente os que estavam em cima. (....) Caio Prado Júnior até o fim na mesma linha daquele discurso antes citado: compreendendo que havia uma relação proporcional entre a miséria moral e cultural da população e o baixo nível político das classes dominantes. Tal situação, para ele, não interessava ambas as classes. Nesse sentido, ele se filia muito mais a uma tradição de contestação intelectual  que remonta a José Bonifácio – que via na degradação do escravo a degradação do próprio senhor – e que passa por Manoel Bonfim e outros  que escolheram a defesa da “ das classes dos desprotegidos”. 

Posteriormente, como deputado, ficaria assombrado como mesmo os supostos representantes da classe dirigente o faziam de modo distorcido, prevalecendo as relações patrimoniais e de compadrio.

Caio Prado Júnior enquanto deputado da constituinte não entendia que o papel dos comunistas era o de mera agitação e denuncia do parlamento burguês. Com formação em direito, passou à minucioso estudo das leis financeiras e tributárias e fez projeto de lei que incidisse tributos sobre as grandes propriedades rurais, e diminuísse a oneração fiscal sobre a circulação de mercadorias, desenvolvendo o consumo interno e inviabilizando economicamente terras ociosas que deveriam ser destinadas ao uso produtivo. Nesse sentido, Caio Prado sempre tinha uma orientação prática, tendo como horizonte estratégico o aumento do nível de renda popular, sem demagogias. Por isso criticou asperamente João Goulart (que neste ponto era apoiado pelo PCB) por sua infrutífera proposta de reforma agrária nas beiras das rodovias. O que se quer destacar aqui é que a originalidade de Caio Prado Jr., que depois se traduziria em seus estudos e análises sobre o Brasil, estava sempre em fazer aquilo que Lênin colocava como “análise concreta da situação concreta” – assim, chegou à conclusão de que não havia feudalismo no Brasil partindo de premissas da nossa realidade e não de premissas teóricas com que Marx analisou a Europa, especificamente o campesinato francês. 

Como se sabe, o marxismo no Brasil foi basicamente recepcionado pelo Partido Comunista do Brasil sob os auspícios da Internacional Comunista. Sob esta perspectiva, nasceram tensões entre o pensamento original de Caio Prado e o partido. A verdade é que, ainda que o historiador tenha sido deputado nos anos 1940, ele nunca exerceu (e nunca pareceu querer exercer) um papel de liderança no PCB. Há depoimentos de que nas reuniões costumava ficar calado ou fazer intervenções pontuais, de cunho prático. Como dito, havia desconfianças em relação a ele no partido  e, quando Caio Prado Jr. já era um intelectual de renome, atuava de forma independente através de uma revista de nome de sua próprio editora, a Brasiliense. 

De qualquer forma, um dos grandes pontos do marxismo em Caio Prado Jr. é a superação das esquematizações de cunho quase positivista do nosso marxismo primitivo:

“Apesar desta tradição intelectual pobre, Caio Prado Júnior partiu desde cedo em busca de interpretar sem copiar. Numa carta a Lívio Xavier, de 20 de setembro de 1933, ele escreveu: ‘ É um critério absolutamente errado este de procurar enquadrar artificialmente os fatos brasileiros nos esquemas que Marx traçou para a Europa”. E foi isso que procurou evitar em sua obra. Mais tarde, diria com exagero: “Somos ainda, no âmago de nossa racionalidade, escolásticos inconscientes. Herdamos isso de nossa mãe pátria portuguesa, esse país que, ao contrário do restante da Europa, não teve Renascimento, e prolongou pelos tempos modernos afora o respeito aristotélico dos textos consagrados”. 

Afora o forte tom irônico, certamente o próprio Marx em vida zombaria de seguidores de sua obra que  dela fizessem uma escolástica, perdendo de vida a preocupação científica que o autor alemão procurou dar ao seu trabalho. O compromisso do historiador paulista bem como ativista do PCB foi com a busca pela verdade, o que aliás fez com que dele nascesse o projeto de lei de incentivo à pesquisa científica que hoje conhecemos em São Paulo como Fapesp. 

Outras grandes contribuições de Caio Prado Júnior envolvem sua interpretação pioneira sobre o passado colonial e o conceito de sentido da colonização – que, segundo  Lincoln Secco ainda é parcialmente válido em pleno séc. XXI, para a infelicidade do país; também citamos o  trabalho como editor na Brasiliense e seu enorme volume de produção acadêmica. Como sempre foi coerente com sua visão social de mundo, a universidade jamais soube aproveitá-lo – Caio Prado foi aprovado como professor para lecionar nas faculdades de Direito da USP e na Faculdade de História e Geografia da mesma instituição mas, com o período de exceção, seu nome foi rejeitado. 

Ainda que não se concorde com suas ideias, os revolucionários devem saudar Caio. Caio Prado Jr. deve ser reivindicado pela somatória de seus predicados (economista, geógrafo, historiador, filósofo, parlamentar, militante do PCB) e, mais importante, como alguém que emana luz pelos caminhos da Revolução Brasileiro, por sinal o título de um se seus mais polêmicos e importantes  livros. 

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

“Contos Novos” – Mário de Andrade

“Contos Novos” – Mário de Andrade 




Resenha Livro – 197 - “Contos Novos” – Mário de Andrade – Ed. Klick

“Contos Novos” foram publicados postumamente, em 1947, dois anos após a morte de Mário de Andrade. Este deve ser reconhecido pelos leitores por sua principal obra, “Macunaíma”, personagem alegórico que representa diversas facetas folclóricas do Brasil, desde o índio até o morador de rua, ora um homem cordial, ora um malandro, sempre com preguiça e se virando diante das vicissitudes da vida. 

Mário de Andrade teve especial participação na Semana da Arte Moderna de 1922 que lançou as bases do movimento artístico modernista no Brasil. Tal movimento teria como pressuposto a criação, pela primeira vez, de uma arte verdadeiramente nacional, não só na temática (que de resto já se observava por exemplo nos românticos de primeira ora, como em José de Alencar e seu indianismo), mas principalmente na forma e no estilo, reivindicando a oralidade e os trejeitos populares, bem como a visão social de mundo brasileira. A Semana de Arte Moderna envolveu nas letras escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida; nas artes plásticas Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti e na música Villa Lobos. A força motriz daquela manifestação artística era a da liberdade e independência artísticas frente às influências externas, e especificamente nas letras, utilização poética de versos livres e reprodução da oralidade nos textos, um traço especificamente marcante na produção de Mário de Andrade. 

Importante destacar que o modernismo resvala também para o estudo das ciências humanas entre 1920-1930. É neste período que autores se defrontaram com o problema da identidade nacional, buscando estudar nossas especificidades e nossas origens remotas. Nesse sentido, três obras e autores são fundamentais. “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda que desde a sociologia revela aspectos genérico do povo brasileiro; Gilberto Freyre com “Casa Grande e Senzala” diante de um estudo culturalista aborda os meandros da vida colonial, desde as relações sociais, culturais ou mesmo religiosas, sexuais, etc; e Caio Prado Júnior com seu “Formação do Brasil Contemporâneo” inaugurará uma historiografia verdadeiramente brasileira estabelecendo os sentidos de nossa colonização. 

“Contos Novos” reúnem 9 histórias já da fase de plena maturidade artística do autor. Aqui, sobressaem menos os elementos de vanguarda que demarcam as obras anteriores e sobressaem certa sobriedade, com enfoque especial aos traços mais humanos de determinados personagens. Em outras palavras, não encontramos nos “Contos Novos” aquela intenção experimental relacionada a um romance de vanguarda como é “Macunaíma” (1928), mas uma orientação narrativa mais contida e sutil, com uma busca maior ora das sondagens da alma humana ora dos efeitos dos encontros e desencontros das personagens. 

“Vestido de Preto” e “O Ladrão” a sua maneira ganham o leitor pelo descompasso e a dinâmica da narrativa. No primeiro conto, narrada em primeira pessoa, conta-se a história de um primeiro beijo de primos na infância, beijo dado pelo narrador, Juca. A riqueza de detalhes do evento, incluindo o impedimento da continuação da “brincadeira” pela Tia Velha revelam como aquele beijo sensibilizou e impactou o narrador – criou-lhe amor pela prima por décadas a fio. Posteriormente a prima cresceu e deixou de reparar no primo. Juca beijou um livro empoeirado e passou a se dedicar com afinco às leituras. Há aqui um corte temporal com um reencontro entre o “casal” décadas depois, quando Maria está morando na Europa e encontra-se de passagem no Brasil em banquete. Juca decidiu-se ir ao evento ainda resistindo ao amor da infância:

“Contemplando a gravura cor-de-rosa, senti de sopetão que tinha mais alguém na saleta, virei. Maria estava na porta, olhando para mim, se rindo, toda vestida de preto. Olhem: eu sei que a gente exagera em amor: não insisto. Mas se eu já tive a sensação da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda de preto vestida, fantasticamente mulher. Meu corpo soluçou todinho e tornei a ficar estarrecido”. 

Como o domínio da narrativa pertence a Juca, ficamos sem saber se houve ou não houve de fato um encontro. O que é certo é que enquanto o amor do narrador persiste, sua prima, mal se lembrando do parente, parte para Europa e ignora sua existência. Esta indefinição que abre a narrativa para distintas possibilidades para interpretações é recorrente nos contos, tornando-os sempre imprevisíveis. 

Expediente semelhante dá-se com “O Ladrão”. O conto inicia com o grito de alarme que mobiliza todo um cortiço em plena noite em busca de um suposto ladrão. Os homens mais valentes dirigidos por um polícia seguem no encalço do larápio e o evento acaba significando certo momento de confraternização entre os moradores: alguns dentro de casa pela janela comentam o fato, outros na rua discutindo o caso e dando (quem sabe inventando) explicações para a disparada, até o ponto em que só resta a vigília. E aos poucos cada qual vai tomando o seu rumo com o fim do “divertimento”: sem se saber de fato se tratar-se-ia de um ladrão:   

“A rua estava deserta de novo quase morta, janelas fechadas. A valsa acabara o bis. Só o violinista estava ali, fumando, fumegando muito, olhando sem ver, totalmente desamparado, sem nenhum sono, agarrando a não sei que que esperança de que alguém, alguma garota linda, um fotógrafo, um milionário disfarçado, lhe pedisse pra tocar mais uma vez. Acabou fechando a janela também. 

Lá na outra esquina do outro quarteirão, ficara um último grupinho de três, conversando. Mas é que lá passava bonde.”

Talvez o conto com conteúdo mais político seja o “1º de Maio”. O protagonista é um operário que trabalha na estação de trem da luz como carregador cujo nome é 35. No feriado do dia do trabalhador acordou eufórico com a intenção de participar das solenidades. Seu nome remete ao ano de 1935 – ano do mal sucedido levante comunista que redundaria na edição do Estado Novo varguista dois anos mais tarde. Da mesma forma que Prestes na Intentona, 35 igualmente teria uma expectativa muito alta de seus camaradas quanto à sua consciência de classe:

“(35) ia devagar porque estava matutando. Era esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas fuças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grande “motins” do primeiro de maio em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri”.

“35” vestiu a sua melhor roupa e dirigiu-se à Sé. No caminho encontra os colegas de trabalho que estão na labuta e mangam dele. Na Sé, tudo vazio, exceto a grande quantidade de policiais. Posteriormente, descobre pelos jornais que em São Paulo a polícia proibira comícios na rua e passeatas. Haveria apenas um discurso do “ilustre” Secretário do Trabalho no Palácio das Indústrias. 

As cogitações internas de 35 envolvem a decepção, ora com o estado de coisas, ora com seus companheiros de trabalho, que mangam de algo que  35 obviamente julga sério, ainda que sua consciência de classe ainda se dê por “leituras de jornais”, sem a participação de mobilizações, ao que tudo indica. Todavia, o término do conto serve como uma luz no fim do túnel: 35 não desiste de sua classe e num ato de solidariedade ajuda um companheiro carregador de malas, num gesto altruísta, remetendo ao que há de mais essencial nas relações entre trabalhadores oprimidos, a camaradagem.  

sábado, 24 de outubro de 2015

“A Ideologia Alemã” – Karl Marx e Friederich Engels

“A Ideologia Alemã” – Karl Marx e Friederich Engels 



Resenha Livro – 196 - “A Ideologia Alemã” – Karl Marx e Friederich Engels – Ed. Martins Fontes 

Os manuscritos reunidos e publicados sob o nome “A Ideologia Alemã” datam de 1845, quando Marx e Engels tinham 30 e poucos anos. Segundo Althusser, os escritos têm a importância de delinear o marco divisório entre o jovem Marx e o Marx maduro, o que de resto é bastante controverso dentre os marxistas: o que o próprio Althusser denomina corte epsitemológico na obra de Marx. 

O que é fato histórico: os dois fundadores do socialismo científico não encontraram editora interessada em publicar o livro, um duro ataque ao hegemônico sistema filosófico idealista alemão (partindo de Hegel, à Bruno Bauer e Max Stiner) e ao materialismo  contemplativo de Feuerbach. 

Nem por isso perderam o bom humor e deixaram os manuscritos engavetados “à crítica dos roedores”.  Eventualmente, mais importante do que a publicação da obra, o que era decisivo aos estudiosos e fundadores da tradição do socialismo científico era cogitar e pensar questões quer seriam posteriormente melhor delineadas em obras posteriores. 

Assim temos em A Ideologia Alemã especialmente presente a ideia do materialismo histórico, o combate ao idealismo da filosofia da história, de tipo especulativa, segundo a qual a Ideia ou o Homem, movem as relações materiais. Entendem por outro lado que as relações entre os modos de troca e o desenvolvimento determinado das forças produtivas é que ao longo da histórica foram engendrando as reprentações da ideia, da noção do homem sobre si mesmo, da religião ou mesmo do estado. Em tempos modernos, este embate entre os modos de troca e o desenvolvimento determinado das forças produtivas são genericamente colocados como sociedade civil. 

Antes de passar aos conceitos, mais algumas considerações sobre a obra. “A Ideologia Alemã” só foi “descoberta” e publicada em 1932. Isso significa que toda uma geração de marxistas (como Lênin) não teve contato com a obra. Não é um fato significativo, já que é um livro que não destoa mas que antecipa conceitos que seriam melhor delineados posteriormente, como a ideia de alienação do trabalho (O Capital) ou mesmo a noção da sociedade comunista que surge nas glosas da crítica do programa de Gotha, entre outros. A edição a que tivemos acesso correspondente à da Ed. Martins Fontes conta com uma introdução do historiador marxista brasileiro Jacob Gorender, ao texto integral de Ideologia Alemã e às 11 teses sobre Feuerbach. 

Como dizíamos, a “Ideologia Alemã” é um livro voltado à polêmica e denota a ruptura de Marx com os jovens hegelianos (que invertem a noção/percepção do mundo sem conceber a centralidade das relações de produção e as forças produtivas como elemento fundante do desenvolvimento histórico) bem como com o materialismo limitado de Feuerbach que se volta contra a religião sem levar em consideração as relações sociais que engendram a alienação religiosa. 

Dentro deste esboço crítico Marx é obrigado a perpassar por uma série de conceitos que ficariam definitivamente associados à sua orientação filosófica. Em Ideologia Alemã, o que há de mais importante é a filosofia/metodologia da história que Marx desenvolve como materialismo histórico. 

Assim sintetiza Marx:

“Eis portanto os fatos: indivíduos determinados com atividades produtivas segundo um modo determinado entram em relações sociais e políticas determinadas. Em cada caso isolado, a observação empírica deve demonstrar nos fatos, e sem nenhuma especulação ou mistificação, a ligação entre a estrutura social e a política e a produção. A estrutura social e o Estado nascem continuamente do processo vital de indivíduos determinados; mas estes indivíduos não são tais como aparecem na representação que fazem de si mesmos ou na representações que fazem os outros deles, mas na sua existência real, isto é , tais como trabalham e produzem materialmente: portanto, do modo como atuam em bases, condições e limites materiais determinados e independentes de sua vontade.

A produção das ideias, das representações e da consciência  está , à princípio, direta intimamente ligada à atividade material e ao comércio dos homens”.

É necessário não subestimar a força destas palavras e a forma como elas antecedem em décadas problemas que a denominada filosofia da história iria se deparar muitos anos depois. Como se sabe, a História como uma disciplina autônoma e independente iria surgir formalmente apenas em fins do século XIX com os estudos do alemão Leopold Von Ranke dentro de uma orientação positivista. 

Predominou-se então uma perspectiva contrária ao materialismo histórico propugnado por Marx, mas à “história dos grandes eventos”, onde se privilegiava os grandes fatos políticos seguidos de forma consecutiva sem grandes cogitações acerca das relações entre o que ocorria nos meandros dos grandes palácios com a queda de príncipes e o desenvolvimentos de rebeliões e revoluções e os problemas terrenos relacionados ao desenvolvimento da sociedade civil, à lute de classes, à escassez econômica e principalmente aos choques entre o modo de produção e o desenvolvimento das forças produtivas. Escrito em 1845, só muito posteriormente as lições do materialismo histórico seriam seriamente assimiladas como uma chave explicativa original e eficaz para os fenômenos de grandes transformações na história, desde a queda de impérios até a ascensão de novas classes sociais ao poder. 

Ainda que o tema da filosofia da história seja predominante em “Ideologia Alemã” outros conceitos chave do marxismo são apresentado nos escritos. Havia ainda muita confusão acerca da compreensão do Estado e seu sucedâneo Direito, o que, diga-se de passagem, permanece como fonte de sérias ilusões mesmo no campo da esquerda no Brasil. Assim preleciona Marx:  

“Por ser uma Classe e não mais um estamento, a burguesia é obrigada a se organizar no plano nacional, e não mais no plano local, e dar uma forma universal aos seus interesses comuns. Com a emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o Estado adquiriu uma existência particular ao lado da sociedade civil e fora dela; mas este Estado não é outra coisa senão a forma de organização que os burgueses dão a si mesmos por necessidade, para garantir reciprocamente sua propriedade”. 

Temos aqui, portanto, o caráter de transitoriedade histórica que marca o estado conforme sua ligação com a dominação burguesa que também só perdura no tempo até o momento de queda desta sociedade fruto de uma revolução dos trabalhadores.

“Sendo o Estado, portanto, a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, conclui-se que todas as instituições civis de uma época passam pela mediação do Estado e recebem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei repousa na vontade e, ainda mais, em uma vontade livre, destacada de sua base concreta. Da mesma maneira o Direito por sua vez reduz-se à lei”

O interessante é que palavras redigidas em 1845 ainda possuem um grau de radicalidade política que mesmo partidos da esquerda pequeno burguesa do país certamente não assumiriam em seu “programa mínimo” tais enunciados ditos em alto e bom som por Marx, sendo ele próprio não só um um ativista do momento dos trabalhadores, mas igualmente um interprete rigoroso desta sociedade. Há de se ponderar certamente que Marx ao identificar a natureza burguesa inevitável do estado nunca propugnou, tal qual os anarquistas, o simples boicote das eleições. Aqui ele identifica as raízes históricas e as imbricações essenciais entre a divisão do trabalho, a forma de propriedade privada e seu condicionamento político sob Estado, com a emergência da burguesia como nova classe dominantes. Ainda assim, Marx sugere sempre uma análise detida das particularidades de cada situação, já que à sua época tal processo ainda não se completara efetivamente à nível global.

A leitura da Ideologia Alemã é fundamental como ponto de partida para um contato posterior do “Marx maduro”. Além dos conceitos de “materialismo histórico” que fazem contraponto ao idealismo da filosofia idealista alemã tributárias de Hegel e o materialismo limitado de Feuerbach, neste livro se prenunciam temas como a alienação do trabalho ou mesmo aspectos da sociedade comunista, diante a abolição da propriedade privada, da ressignificação do trabalho e do controle da produção pela vida. 


segunda-feira, 19 de outubro de 2015

“ Marx – Vida e obra” – Leandro Konder

“ Marx – Vida e obra” – Leandro Konder 



Resenha Livro – 195 -  “Marx – Vida e obra” – Leandro Konder – Ed. Expressão Popular 
Leandro Konder foi um importante intelectual marxista brasileiro falecido recentemente, em novembro de 2014. Seus estudos sobre alienação (“Marxismo e Alienação”) e sobre a recepção das ideias marxistas no Brasil ao longo do séc. XX (“Derrota da Dialética”) devem ser consultados por todos ativistas revolucionários do país. Seus textos são acessíveis e didáticos: a facilidade com que traduzia conceitos filosóficos, como materialismo, alienação ou dialética numa linguagem acessível não só a intelectuais, mas à juventude e aos trabalhadores revela um conhecimento teórico profundo. 
Nesse sentido, Leandro Konder remetia ao que Gramsci denominava “intelectual orgânico”: seu pensamento e sua produção teórica poderiam ser facilmente assimiladas por operários num curso de formação. Certamente foge do perfil academicista que também está presente na tradição marxista nacional. 
Objetivo, sintético e escrito com elegância, este livro foi originalmente publicado em 1968, adquirindo novo lançamento apenas com um prefácio atualizado. Seu propósito é descrever os principais fatos referentes à agitada vida de Marx, seja como intelectual, seja como organizador e ativista do movimento operário europeu, desde o jornalismo passando à Associação Internacional dos Trabalhadores (fundada em 28 de setembro de 1864); também Leandro Konder concomitantemente à descrição da vida de Marx vai expondo suas ideias chave, dando ao leitor as origens dos fundamentos do pensamento marxista,  como materialismo (em termos marxistas), a alienação ou o fetichismo da mercadoria. Trata-se portanto de uma pequena biografia e de uma sintética história da evolução das ideias de Karl Marx. 

Karl Marx nasceu em 5 de maio de 1818 na cidade de Treves ao sul da Prússia. O pai de Marx era filho de rabino Judeu. Hirschel Marx era advogado e era um judeu não praticante, com pensamento liberal. Sua mãe era de origem holandesa, e também de origem judia. O contexto histórico da Europa de então era de fortalecimento do conservadorismo diante da queda de Napoleão e da conformação da Santa Aliança que buscava restituir o absolutismo no continente Europeu. Com a subida ao poder por Guilherme III, o pai de Marx viu-se obrigado a converter-se ao protestantismo. Pode-se dizer em suma que Marx na infância viveu numa cidade de 12 mil habitantes sob a ameaça de um governo absolutista autoritário e com ranços antissemitas pertencendo a uma família da pequeno burguesia. 

Consta que na escola em seus exames finais, Marx teve de dissertar sobre o tema “Reflexões de um jovem a propósito da escolha de uma profissão”. Suas cogitações de certa forma já sinalizavam sua atuação futura, sempre associando a teoria com a prática, com uma ambição de transformar a realidade. Diz Konder:

“Em sua dissertação, Karl desenvolveu – aos dezessete anos – duas ideias que deveriam acompanha-lo pelo resto da vida. A primeira era a ideia de que o homem feliz é aquele que faz os outros felizes; a melhor profissão, portanto, deve ser a que proporciona ao homem a oportunidade de trabalhar pela felicidade do maior número de pessoas, isto é, pela humanidade. A segunda era a ideia de que existem sempre obstáculos e dificuldades que fazem com que a vida das pessoas se desenvolva em parte sem que elas tenham condições para determina-las”. 

De fato, temos aqui de forma ainda muito embrionária teses como a ideia de que “os homens fazem a história, mas não a fazem de acordo com a sua vontade exclusiva, mas consoante as condições históricas herdadas”, reflexão com que Karl Marx iria analisar em 1871, muitos anos depois, os eventos históricos da Comuna de Paris. 

Após os estudos secundários, Marx matricula-se na Universidade de Bonn, onde estuda direito, história, filosofia e arte. Também é uma fase em que se envolve com a boemia, escreve poemas, sem envolve em um duelo (do qual sai com uma cicatriz no rosto); certa vez exagerou no álcool e na farra noturna e foi detido. Destaca-se que Bonn era então uma pequena cidade, provinciana, e então o Pai de Marx, preocupado com o futuro do filho, manda-o estudar em Berlim. 

Desde Berlim, uma cidade completamente nova, com 300 mil habitantes, Marx entraria em contado com as ideias de Hegel que ali lecionara e morrera em 1831. O objetivo de Marx então, ao se aproximar dos grupos hegelianos e se aproximar das tendências de esquerda deste filósofo, é completar seu curso e preparar seu doutorado vindo a ser professor catedrático. Conseguiu concluir uma tese de doutorado original cujo tema era “A diferença entre a filosofia da Natureza de Demócrito e a de Epicuro”. Todavia, na Prússia de Guilherme IV não havia cátedras para um pensador progressista como Marx, impossibilitando-o de alcançar a vaga de professor e já criando um embaraço econômico. 

Foi a partir do jornalismo que Marx conseguiu conquistar as primeiras fontes de renda a partir de 1840 – há de se constatar que neste período, o Mouro já estava noivo de Jenny von Westphalen, companheira por toda sua vida. 

Marx contribuiu em inúmeras publicações e dirigiu a Gazeta Renana e posteriormente a Nova Gazeta Renana. Frequentemente arranjava problemas políticos em função de sua análise crítica da conjuntura, o que valeu a ele a primeira mudança para Paris em 1943, com o fechamento da Gazeta Renana. A estadia na França renderia importantes frutos, conforme relata Konder. Desde Paris, Marx pôde observar um movimento socialista de operários bem como entrar em contato com tal organização – fato que certamente o impressionou. E mais:

“Enquanto preparava a edição do primeiro número de Anais-Franco Alemães, Marx escreveu uma  “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, na qual mostrava que as considerações teóricas de Hegel sobre o direito eram inócuas, porque não indicavam os meios práticos, materiais e sociais, capazes de levar à efetiva superação dos problemas humanos que elas abordavam. 
“O poder material – dizia Marx – só pode ser vencido pelo poder Matrial”. E aos que pudessem perguntar se as ideias por acaso não teriam valor algum, ele respondia antecipadamente – “A teoria também se transforma em força material quando se apodera das massas”

Outro momento a se destacar da biografia seria o encontro com Engels. Os dois haviam se conhecido em 1842 quando Engels (natural de uma região da Prússia próxima a Treves) fez uma visita à redação de Gazeta Renana. Porém a aliança duradoura seria após a publicação por Engels do importante livro “A Situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, dois anos depois, em que faz uma minuciosa exposição das condições de vida e das formas de luta do proletariado inglês dos primeiros momentos da revolução industrial. O texto de Engels interessou bastante Marx, aproximando-os e ligando-os como parceiros por toda a vida. 

A vida pessoal e familiar de Marx foram também marcadas por grandes dificuldades financeiras. Frequentemente obrigados a mudar de país em função da atividade político-intelectual, Marx e sua família estiveram na França, Bélgica e finalmente na Inglaterra onde passaram os piores apertos financeiros. Karl sofria de fortes de cabeça e tinha furúnculos que atormentavam, e ainda assim consta que até a velhice dedicou-se com o afinco ao estudo dos mais variados temas, da filosofia à arte, à aritmética, astronomia, história antiga do Egito, chegando mesmo a tentar aprender o Russo, desde que aquela nação chamou-lhe atenção no final de sua vida – Marx previa um desmoronamento do reino dos Czares e estudou com afinco dados sobre aquele país.     

O velho mouro faleceu em 14 de março de 1883 diante de um abcesso no pulmão, dois anos após a morte da mulher, Jenny. Sobre projeção posterior, remetemos à conclusão de Konder:

“Marx elaborou as bases de uma vasta concepção do homem e do mundo. Por força das condições em que viveu e em virtude da urgência das tarefas que se impôs, não pôde desenvolver suas ideias no que concerne aos diversos planos da atividade humana: concentrou-se no exame dos problemas econômicos, sociais e políticos. Sua contribuição à história da cultura, entretanto, ultrapassa os limites da economia, da sociologia e da política. Como diversos marxistas contemporâneos têm demonstrado – sobretudo G. Lukács, Antonio Gramsci e os pensadores da Escola de Frankfurt – a obra de Marx revela uma espantosa vitalidade quando a confrontamos com as mais variadas questões da época presente”.

A importância de se conhecer a vida e a obra de Marx diz respeito a saber situar as obras originais que deverão ser consultadas para a formação marxista. Um ponto de partida para um estudo específico das obras de Marx pode ser este belo ensaio de Leandro Konder. 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Resenha Livro – “Os Grandes Líderes – Kadafi” – Benjamin Kyle – Ed. Nova Cultural

“Os Grandes Líderes – Kadafi” – Benjamin Kyle



Resenha Livro – 194 - “Os Grandes Líderes – Kadafi” – Benjamin Kyle – Ed. Nova Cultural 

Aqueles que reivindicam a visão social de mundo marxista-leninista nunca devem perder de vista a última das teses de Feuerbach elencada por Marx segundo a qual: até então, os filósofos de contentaram em interpretar o mundo, sendo necessário agora transformá-lo. A questão chave aqui está em aliar teoria e prática e, nesse sentido, as discussões teóricas devem ser feitas de forma muito minuciosa: um pequeno desvio teórico pode ter graves consequências na prática, na política adotada pelos revolucionários. 

Estes desvios parecem ter ocorrido no caso da chamada Primavera Árabe, uma série de agitações políticas que modificou o cenário político de diversos países do norte da África e Oriente Médio a partir de 2010. Ao que tudo indica, olhando o fenômeno em perspectiva, 5 anos depois, faltou a muitos de nós senso crítico, decorrente de maior esclarecimento sobre a história política e aspectos da conjuntura daquela região geográfica, fazendo com que mobilizações que rapidamente foram desviadas pelo imperialismo, fossem chamadas de “revoluções populares”. 

Um caso emblemático é o Egito, quando de fato massas populares ocuparam a praça Tahir e Mubarak foi obrigado a sair do poder, após os militares descobrirem que o ditador esteve em contato com o exército israelense buscando articular um ataque do estado de Israel sobre o Egito para dividir o movimento e fazer com que ele retomasse o poder, configurando alta traição à nação. Certamente tal revolução não foi um movimento dirigido pelos trabalhadores através de órgãos de duplo poder ao estilo de soviets, como forma de fazer avançar a consciência daquele povo. A maior força política, a irmandade muçulmana, assume o poder e hoje coloca na cadeia muitos daqueles que estavam na Praça Tahir. 

Poderíamos continuar cogitando o que representou a “revolução” na Síria senão num claro massacre do imperialismo, se servindo aos olhos do mundo de forças extremistas terroristas contra um governo nacionalista burguês, fazendo-nos perguntar qual é o sentido de uma política contra Assad, incluindo solicitação de armas junto ao imperialismo, como a  política levada a cabo pelo PSTU.

A história da Líbia também deve ser objeto de maiores esclarecimentos pela esquerda. Kadafi é derrubado por intervenção militar de forças das nações unidas e tal “revolução” leva ao poder grupos armados islâmicos. Prevalece o discurso do imperialismo que vem pelo menos desde 40 anos atrás de Kadafi como um ditador sanguinário. Mas talvez poucos saibam que Kadafi nacionalizou logo no início do seu governo 51% de todo o petróleo estrangeiro e melhorou sensivelmente o nível de vida na Líbia, construiu estradas pelo vasto deserto do país, hospitais, escolas e programas de irrigação para ampliar terras aráveis. Em 1977 a renda per capta seria na Líbia de 6, 451 dólares a mais alta do continente Africano, produto de um projeto de distribuição de riqueza do petróleo. Certamente, foi um líder extravagante, além de autoritário. Mas comecemos desde sua infância.

A Líbia surgiu como estado nacional após a II Guerra Mundial, com a derrota da Itália que até então controlava aquela região. Antes, era uma expressão geográfica que envolvia cidades mais desenvolvidas como Trípoli e Bengázi e o vasto deserto do Saara, que compunha a maior parte do “país”. Kadafi nasceu em 1942 numa família de beduínos, tribo de nômades do deserto. De formação muçulmana, nunca abandonaria a religião, aplicando-a como princípio de política de estado, o que faria dele um inimigo voraz do estado de israel. 

Ainda na Juventude demonstra interesse pela política e pelo rádio escuta os discursos do político nacionalista egípcio Gamel Abdel Nasser. Dos seu tempo como estudante até a tomada de poder através de um golpe de estado com apenas 27 anos, Kadafi sempre teve como referência política o dirigente nacionalista egípcio. Basicamente, sua orientação envolvia unir todos os estados árabes da região, inclusive num futuro estado único, e lutar contra a instalação de um estado judeu na palestina. 

Foi no dia 01.09.1969 que uma conspiração dirigida e centralizada por Kadafi depõe o Rei Idris, funda a República Árabe da Síria, que seria na prática governada por um Conselho de Comando Revolucionário. Na pratica, gradualmente o poder se centralizaria nas mãos de Kadafi como uma ditadura. E aqui não se deve omitir o fato de que o regime de Kadafi perseguiu intelectuais e estudantes, matou oposicionistas, inclusive no exterior, queimava livros considerados subversivos. 

Outro aspecto que tornou a história/trajetória de Kadafi controvertida foi seu apoio incondicional a ações “terroristas” relacionadas à morte de cidadãos norte-americanos ou israelenses. Apenas para citar um caso, remetemos às olimpíadas de Munique de 1972 em que  onze atletas foram assassinados e dentre os autores sobreviventes, foram recepcionados como heróis na Líbia de Kadafi. 

Temos então um governante que condena o comunismo e o capitalismo, que procura sinceramente colocar-se ao lado do povo, sem porém, admitir divergências, que promove reformas sociais que transformam a Líbia e conquistam a simpatia, principalmente da população do deserto. Já a população da cidade questiona Kadafi pela fuga de estrangeiros do país e pela proibição de jogos e bebidas, além do uso de jeans e saias curtas, conforme padrões religiosos. 

Ao que tudo indica, Kadafi não foi um líder corrupto, como os políticos sob os quais se apoiam sempre o imperialismo. Era um asceta, tanto que diligenciava numa tenda feita de pano e vestia-se como um beduíno, acreditando estar cumprindo uma missão designada por Allah. Seus objetivos remotam ao nacionalismo pan árabe de Nasser, com a diferença de que Kadafi o lavava de forma muito mais radical e nada diplomática – daí sua simpatia com os grupos armados islâmicos. Uma liderança cheia de contradições, mas que, pelo que avaliamos, parece ser um aliado tático muito mais favorável do que a ONU imperialista, interessada em nada mais nada menos do que lucro aos capitalistas. E daí fazemos o balanço: foi certo apoiar a queda de Kadafi? Na nossa opinião, não. 


terça-feira, 13 de outubro de 2015

“Os Irmãos Karamazov (Vol. 1)” – Fiódor Dostoiéviski

“Os Irmãos Karamazov (Vol. 1)” – Fiódor Dostoiéviski 






Resenha livro - 193 “Os Irmãos Karamazov (Vol. 1)” – Fiódor Dostoiéviski – Editora 34 – Tradução Paulo Bezerra 
Tivemos acesso a uma bela edição publicada pela 34 da última obra publicada por Dostoiéviski, “Os Irmãos Karamazov” (1881). Chamamos aqui a atenção dos leitores para os riscos que envolvem a leitura de autores russo, e particularmente deste escritor, a partir de editoras de livro bolso que partem da tradução em segunda mão de uma tradução em francês. Traduzir Dostoiéviski parece ser um enorme desafio dado seu estilo que envolve segui o fluxo de pensamento dos personagens implicando em parágrafos de folhas inteiras. 

Podemos aqui começar a falar algo sobre o estilo literário do escritor Russo, que para todos os fins, é de difícil classificação dentre alguns modelos conhecidos correspondentes a meados e fins do séc. XIX como romantismo, realismo-naturalismo ou simbolismo. O estilo de Dostoiéviski é inconfundível e próprio e a fala de seus personagens envolve um fluxo de pensamentos bem como uma densidade de emoções ao ponto de transmitir a turbulência da alma humana e revelar até a mais completa nudez a percepção de mundo das personagens – a sensação ao ler os diálogos é a de que existe um tensão permanente, e de que os personagens estão pronto para se revelar, ora desde seu lado diabólico, ora desde sua perspectiva divina. Onde há constrangimento ou onde há ódio, todas as sensações, surgem-nos sempre de forma intensa, o que deve render interesse aos leitores que se identifica psicologia/psicanálise. É provável que esta capacidade de sondar o poço de contradições que é alma humana foi o que fez S. Freud afirmar ser este o mais importante livro de Dostoiéviski.
Ainda quanto ao estilo, há descrições das paisagens e elas remetem à Rússia rural XIX: monges, criados e os três personagens decisivos, Os trejeitos, a aparência física, os campos de trabalho rural, bosques e penumbras, os monastérios são descritos com à forma realista e dão ao leitor uma imagem bastante viva da história. Mas os diálogos e a trajetória das personagens percorrem o espaço sem um sentido que alcance a percepção ou algo previsível do leitor. 

São três os personagens centrais desta história que compõe a família Karamazov. O Pai de Dimitri, Ivan e Aliócha é Fiódor Karamazov, um homem devasso e sem escrúpulos, que quando teve de cuidar de um dos filhos pequenos, abandonou-o aos cuidados de um dos seus criados Griori para poder continuar sua vida de farras, com bebidas e mulheres. Possui bens e terras mas ao que tudo indica de forma desonesta. 

“Pode-se, é claro imaginar que educador e pai poderia dar semelhante homem. Justo como paiaconteceu-lhe o que teria de acontecer, isto é, ele abandonou de vez e inteiramente seu filho com Adelaia Ivánovna, não por raiva dele ou quaisquer sentimentos de marido ofendido, mas apenas porque os esqueceu por completo” (Pg. 20)

Outro personagem intrigante e que merece um destaque por remeter à Dostoiéviski é Aliocha. É o filho mais jovem dentre os três Karamazov, decide entregar sua vida à religião e vive num monastério onde tem como principal guia espiritual um não menos curioso stárietz Zossima. Por meio destes dois personagens, Dostoiéviski dá alguns indicações sobre sua ideia religiosa sobre a questão da igreja ortodoxa na Rússia, como lidar com aqueles que não têm fé e mesmo sobre o que viria a ser o inferno. Parte de citações bíblicas, mais do que em outros clássicos como Crime e Castigo e O Idiota, mas ainda tendo cogitações semelhantes: o sentimento de culpa (crime e castigo), viver sem pecar em sociedade (o idiota).

Nesta passagem, Stárietz Zossima, um sábio monge da igreja ortodoxa nos informa sobre o inferno:

“Do Inferno e do Fogo do Inferno, uma reflexão mística 
Padres e mestres, tenho pensado: “o que é o inferno?”. E julgo assim: “É o sofrimento de não mais se poder amar” Uma vez, no infinito do existir que nem o espaço nem o tempo podem mesurar, um ser espiritual ganhou, com sua aparição na Terra a capacidade de dizer consigo “Eu existo, eu amo”. Uma vez, só uma vez lhe foi dado um instante de amor ativo, vivo, e para tanto foi concedida a terra, e com ela o tempo e os limites, e então: esse ser feliz rejeitou o dom precioso, não o valorizou, não o amou, zombou dele, ficou insensível. Depois de deixar a terra, este ser vê o seio de Abraão, e conversa com Abraão, como consta na parábola do rico e de Lázaro, e contempla o paraíso, e pode subir até o Senhor, mas se tortura justamente porque subirá à presença do Senhor sem o haver amado, entrará em contato com aqueles que o amaram e de cujo amor ele desdenhara. Porque vê com clareza e já diz de si para si: “Agora já tenho o conhecimento e mesmo havendo ansiado por amar, já não haverá proeza no meu amor e também não haverá sacrifício porquanto terminou a vida terrena e Abraão não me trará sequer uma gota de água viva”.

Pelos diálogos de Aliocha e recomendações de Stárietz observamos que a vida monástica diz respeito à dedicação diuturna da caridade e do ofício da reza. O interessante é que os monges não rezam por suas almas mas sim pela vida de toda humanidade e mesmo projetam o paraíso no céu desde dia em que cada ser humano adquirir uma certa consciência de que a violação de uma norma por um terceiro é de co-responsabilidade (espiritual?) de todos.

O que é certo é que Os Irmãos Karamazov é um livro da mesma magnitude de outros clássicos do autor, como Crime e Castigo, O Idiota ou mesmo Memórias de SubSolo, um livro que tanto encantou Nietzche. Nele está ausente a ação e o suspense do Crime e o Castigo e o humor e ironia além da crítica social de O Idiota, mas é o que melhor o escritor trabalho a título de romance psicológico.  

A edição 34 dividiu o livro em 2 volumes. Esta Resenha tratou até o primeiro volume que acaba no Livro VI “Um Monge Russo” Pg. 425. Posteriormente faremos a resenha do volume 2 que termina num epilogo na Pg. 987.