sexta-feira, 24 de julho de 2015

“A Organização do Trabalho no Século XX: Taylorismo, Fordismo e Toyotismo” – Geraldo Augusto Pinto

“A Organização do Trabalho no Século XX: Taylorismo, Fordismo e Toyotismo” – Geraldo Augusto Pinto



Resenha Livro 181- “A Organização do Trabalho no Século XX: Taylorismo, Fordismo e Toyotismo” – Geraldo Augusto Pinto – Ed. Expressão Popular 

A centralidade do trabalho , seja como elemento que identifica e particulariza o ser humano frente às demais espécies animais , seja como elemento constitutivo da sociedade tal como ela se organiza, desde os tempos da escravidão, servidão até o trabalho assalariado, ou seja, a importância do tema do trabalho em si justificaria pesquisas e análises em torno de suas mais diversas facetas. Outrossim, ainda que seja bastante evidente que tal centralidade nas sociedades contemporâneas em nada foi abalada pela assim denominada reestruturação produtiva capitalista que implicou em transformações na organização da produção, com a crise do regime fordista, a descentralização da produção e mesmo o desemprego estrutural com o fechamento dos postos de trabalho, todos estes fenômenos não retiraram da ordem do dia a importância do trabalho.

Na verdade, observa-se isso sim uma maior superexploração do trabalho, com jornadas flexíveis, maior informalidade e novas exigências multifuncionais aos novos trabalhadores dentro do novo padrão de acumulação flexível e as formas de organização do trabalho que se baseiam direta ou indiretamente no modelo toyotista – tal constatação em não mitiga/diminui a centralidade do trabalho bem como nos autorizaria a dizer “adeus ao trabalho”, como querem alguns sociólogos – mas mudam apenas a forma como ele (trabalho) se organiza, se manifesta, a consciência dos trabalhadores, os sindicatos, etc.

É neste contexto que obras bastante pedagógicas como a de Geraldo Augusto Pinto ganham relevância. Elas têm o condão de, diante das vozes que reiteram a cantilena neoliberal do fim do trabalho, dar uma solução de continuidade ou um sentido ao trabalho, aqui, no processo de organização da produção, com, importante frisar, seus impactos dentro do contexto operário. Partindo de uma análise geral das três grandes fases de transformação na organização, constatamos uma lógica geral pela qual os capitalistas perseguem um maior domínio no controle e na previsão da produção bem como dos resultados econômicos– em contraponto à menor margem de controle sobre a execução das tarefas pelos trabalhadores bem como o maior grau de exploração e opressão dentro das jornadas de trabalho:

“Como se vê, a imprevisibilidade de mensuração da mais-valia, ou seja, o fato de que não é dado às empresas saberem de antemão qual é a taxa de rendimento exata que lhe trará cada trabalhador individualmente, sempre foi o centro de toda a problemática da organização capitalista do trabalho. 

Frente à cada forma de organização e controle implementada pelo empresariado, desenvolvem-se resistências individuais ou coletivas por parte dos trabalhadores, como por exemplo as contestações aos sistemas calcados nos princípios tayloristas levados a cabo por amplos setores da luta sindical. A necessidade permanente de quebrar estas resistências obrigou o empresariado a estudar sempre novas estratégias que lograssem obter maior controle sobre os trabalhadores, através de mecanismos que têm variado entre a coerção e o consentimento”.

Ainda que as diferentes formas de organização do trabalho cumprissem esta função de controle sobre a força de trabalho, originalmente, ainda no século XIX, com Taylor, as primeiras pesquisas referentes ao tema se diziam “científicas” e tinham como escopo aumentar a produção. Frederick Taylor (1856-1915) foi um norte americano de família abastada que abandonou os estudos para se empregar numa empresa metalúrgica, quando pôde fazer observações pessoais de falhas no processo de produção. Seu ponto de partida metodológico era dinamizar o aproveitamento do tempo a partir do pré-estabelecimento de tarefas a serem executadas por cada trabalhador.

Assim comenta Geraldo Augusto Pinto sobre Taylor:

“Refletindo sobre como acabar com a proteção do tempo de trabalho, chegou à conclusão de que se subdividisse ao extremo diferentes atividades em tarefas tão simples quanto esboços de gestos, passando então a medir a duração de cada movimento com um cronômetro, o resultado seria a determinação de um tempo “real” gasto para se realizar cada operação”.

As gerências sabendo qual seria este tempo ideal, poderiam então cobrar um resultado palpável de seus trabalhadores. Nem muito a ponto de prejudicar os trabalhadores e coloca-los de licença médica e nem pouco e manter a produtividade baixa.

O estudo de Taylor “Princípios de administração científica” refere-se ao contexto histórico do fim do século XIX e início do século XX, com a divisão do trabalho no interior da fábrica já desenvolvida a partir da introdução de máquinas. Outro ponto importante é que dentro dos princípios de Taylor, as gerências passam a ganhar maior importância dentro das fábricas – Taylor crítica tendências anteriores que esperavam do trabalhador a iniciativa ao trabalho. Uma rígida divisão social do trabalho é o do que se trata bem como uma vertical relação de poder.

O Sistema Ford pode ser entendido como um passo adiante ao taylorismo. Henry Ford foi um bem sucedido empresário norte-americano que agregou à teoria da organização do trabalho aspectos de suas plantas automotivas. Mais talvez do que uma contribuição técnica, Ford e o fordismo são sinônimos de uma sociedade de consumo de massas:

“Cumpre esclarecer, entretanto, que sua principal genialidade consistiu, sobretudo, em ter imaginado a possibilidade de incutir nos seus contemporâneos a postura de consumidores de massa de produtos padronizados. 

Contrapondo-se aos industriais do ramo automobilístico da época, seu maior objetivo foi a produção de tantas unidades de veículos quanto fosse possível, tornando-os um objeto de consumo das massas”. (Pg. 34)

É de se constatar intuitivamente que um modelo baseado na simples produção em massa, diante dos ciclos de crescimento e crise econômica típicos do capitalismo, não poderia perdurar ao longo do tempo. Com a crise do petróleo de 1973, as sucessivas desvalorizações do Dólar entre 1978 e 1985, a produção em série e em larga escala, fundamentada em unidades produtivas altamente verticalizadas e concentradoras de grandes contingentes de trabalhadores especializados típicas do modelo fordista significavam já nos anos 1970 um entrave ao desenvolvimento do capitalismo – daí o momento da reestruturação produtiva, com novas unidades produtivas organizadas em células e o modelo toyotista, desenvolvido nos anos 1950 no Japão do pós Guerra, não mais voltado à produção em massa, mas à produção conforme à demanda, com estoques zero, trabalhadores polivalentes e descentralização das funções, com novo layout da empresa, não mais como uma linha de montagem (como no padrão ford), mas na forma  da letra U.

O que nos interessa diante destas últimas transformações são seus impactos mais importantes junto aos trabalhadores e suas formas de organização. A reestruturação produtiva implicou pressões pela flexibilização (retirada) de direitos trabalhistas, intensificação e aumento das jornadas de trabalho, precarização e aumento da subcontratação, aumento do desemprego estrutural e crise de representação dos sindicatos. Esta crise de representação refere-se à própria diferenciação dos trabalhadores em grupos distintos (terceirizados e não terceirizados, formais e informais, por ex.), fragmentando e dividindo a classe. O aumento do desemprego e a informalidade também é um elemento importante como pressão externa que dificulta a mobilização e a luta sindical.

Diante destes desafios, compreender as mudanças e o sentido que orienta a organização do trabalho imposta pelos capitalistas envolve apreender elementos importantes da realidade da classe trabalhadora. Para aqueles que  se colocam como partícipes do projeto de transformação socialista junto à classe, tal estudo precisa ser disseminado. Daí a importância de estudos didáticos como este oferecido pela editora Expressão Popular.


terça-feira, 21 de julho de 2015

”A Vanguarda Operária” – Celso Frederico

”A Vanguarda Operária” – Celso Frederico



Resenha Livro –180 “A Vanguarda Operária” – Celso Frederico – Editora Símbolo / Coleção Ensaio e Memória 24

Este ensaio sociológico buscou de forma pioneira pesquisar a questão da consciência da classe trabalhadora brasileira: o objeto de estudo, realizado no início da década de 1970, veio a coincidir com um momento histórico especial, de reorganização e despertar para novas lutas operárias desde a indústria automobilística da região do ABC. Quando da realização da pesquisa sobre a consciência de peões e ferramenteiros da indústria automobilística de São Bernardo do Campo, a reorganização sindical ainda dava seus primeiros passos naquela região e o que o pesquisador pôde observar, no que se refere às formas de resistência dos operários, eram ainda formas embrionárias que iam da sabotagem individual, da destruição de máquinas e peças, à operação tartaruga, individual ou coletiva, além de pequenas paralisações espontâneas: não há de se esquecer que o contexto histórico é o da ditadura militar que não consentia o direito de greve e colocava à disposição dos patrões auxílio policial para reprimir qualquer forma de contestação.

O sociólogo ao definir o seu tema de estudo, o problema da consciência operária, constatou a dificuldade de se aferir informações sobre o tema a partir dos métodos tradicionais de pesquisa de campo: formulários e questionários a serem respondidos a partir dos quais se extrai uma “média aritmética” que retrataria como os trabalhadores pensam. E isso por alguns motivos. Em primeiro lugar, existiria um certo desnivelamento ou deslocamento entre o pesquisador e seu objeto de estudo o que engendraria sempre numa relação de desconfiança dos trabalhadores. Estes entendem mesmo intuitivamente o trabalho como a fonte originária de uma série de conflitos pessoais e sempre, nas entrevistas de campo, “procurariam desvencilhar-se de perguntas incômodas, mudar de assunto, fazer observações visivelmente contraditórias, ou permanecer num silêncio significativo”.

“A ambiguidade das informações assim obtidas apontavam para a questão que a sociologia não sabe ou não pode resolver: a dissimulação mais ou menos consciente que está na base das relações que o operário estabelece com o pesquisador”. 

Esta lógica da dissimulação é uma arma de defesa dos oprimidos e explorados em épocas de paz: o explorado ou oprimido, como um povo subjugado pelo colonialismo pode, segundo Otávio Paz, citado por Frederico, manter uma atitude reservada com seus algozes, dissimulando o seu ódio. Esta lógica da dissimulação perpassa a relação de estranhos supostamente interessados em conhecer de perto a consciência dos explorados.

A alternativa metodológica buscada pelo sociólogo foi então a de sondar a consciência dos explorados a partir dos “operários avançados”. Trata-se dos setores mais politizados que poderíamos (a revelia do autor que não utiliza estra expressão) designar como “vanguarda” dos peões – certamente, o termo deve ser utilizado com reservas já que no momento da pesquisa o nível organizativo ainda era baixo e não se cogitava o salto nas mobilizações que daria ensejo ao movimento do novo sindicalismo.

O que caracteriza os operários avançados é a sua tipicidade: eles manifestam de forma mais aberta e expressiva aquilo que os demais ainda elaboram, desde o ponto de vista da sua  consciência de classe, de forma ainda embrionária.

“Os operários avançados são operários típicos, no que diz respeito à consciência de classe, porque eles se destacaram, diferenciando-se do conjunto dos trabalhadores, ao se colocarem na linha de frente das lutas sociais. Na indústria automobilística, eles aparecem como o ponto mais avançado e, portanto, mais concreto da consciência de classe. Pois o concreto, como ensina Alfredo Bosi, na sua origem etimológica quer dizer: crescer junto, formar-se em densidade “concrescer”

Os operários avançados formam um setor cuja consciência cresceu junto com a classe na luta diária contra a dominação capitalista. Nessa luta, e somente nela, pôde a consciência enriquecer-se de determinações, desenvolver-se, pois aí se expressa praticamente o ser da classe operária a que Marx se referia”.

Observa-se aqui então dois critérios metodológicos distintos. Um de orientação positivista baseado em coleta “fria” de números e amostragens, revelando uma suposta neutralidade que na verdade revela a aparência do fenômeno – a lógica da dissimulação. E uma metodologia orientada desde o ponto de vista dos operários avançados que corporificam a consciência operária em sua concretude naquele determinado ambiente – fábrica, nos departamentos dos ferramenteiros, na linha de montagem, etc.

Esta segunda metodologia se serve dos depoimentos pessoais dos operários avançados bem como sobre manifestações culturais ou artísticas dos trabalhadores – há na pesquisa a transcrição de uma peça redigida por um trabalhador que descreve o cotidiano dos peões da indústria automobilística, o drama de sair de casa às 05:00 e retornar às 11:00 e não ver os filhos crescerem, a iniciativas individuais de protestos que envolvem discussões e bate boca com gerentes – a história parece um ciclo sem fim, remete ao “fim de partida” de Samuel Beckett, com um final inconcluso, como se a vida do trabalhador, alienado, fosse despropositada, sem sentido....

A pesquisa do sociólogo avança desde as formas mais individuais de resistência, que é a destruição ou inutilização de peças e máquinas, até a greve, que, conforme dito, começava a ser organizada e agitada quando da realização da pesquisa a partir de 1968. A organização propriamente dita dos trabalhadores ainda persegue sendo um dos problemas atuais na indústria automobilística e do movimento operário brasileiro como um todo. Mesmo diante do reconhecimento formal (legal) dos sindicatos, fica pendente a associação dos trabalhadores com fins que extrapolam a mera representação dos empregados e o assistencialismo. Trata-se da organização com a finalidade de pôr abaixo o regime de exploração capitalista. E o próprio capitalismo engendra tal organização:

“Numa tal situação, torna-se mais do que nunca, impossível harmonizar os interesses contraditórios. A completa realização da exploração capitalista – agora levada ao limite – vai gerar necessariamente sua “negação”: a união dos trabalhadores. Após ter organizado os operários num mesmo local, durante 12 horas por dia, a fábrica ainda precisa aproximá-los em pequenos grupos, tanto por um imperativo do processo de produção, quanto pela necessidade de dinamizar o trabalho através da formação de um “espírito de equipe”. Assim, a fábrica acaba criando os pré-requisitos de uma outra forma de associação que, certamente, não estava nos planos da gerência industrial.

É a própria organização capitalista do trabalho que prepara as condições que irão propiciar a emergência do contrapoder operário. Consciente desta articulação dialética que acompanha os desdobramentos da realidade social, um operário escreveu: “o dono da fábrica e seus cupinchas têm o controle da produção, e nós vamos politicamente a mão de obra para paralisar a produção”. 

quarta-feira, 15 de julho de 2015

“O Socialismo Jurídico” – Friedrich Engels e Karl Kautsky

“O Socialismo Jurídico” – Friedrich Engels e Karl Kautsky



Resenha Livro -  “O Socialismo Jurídico” – Friedrich Engels e Karl Kautsky – Boitempo Editorial
O artigo “O Socialismo Jurídico” foi planejado por F. Engels e escrito por ele e por Kautsky, com publicação no ano de 1887 pela “Die Neue Zeit”. Na verdade, com o tempo descobriu-se que o artigo começou sendo redigido por F. Engels e este, após ter sido cometido por enfermidade, delegou a tarefa de terminar este importante trabalho a Kautsky. Relevante texto na medida em que o parceiro de Marx, aqui, tinha como objetivo central dar respostas a ataques contra à Marx (falecido desde 1883)  desde o livro do professor de Direito Processual da Universidade de Viena, Anton Menger, obra denominada “O Direito ao produto integral ao trabalho historicamente exposto”. 

Para o leitor contemporâneo, a resposta de Engels ganha relevância nem tanto em sua tarefa de combater as falsificações de Menger sobre o trabalho de Marx. Menger alega que supostamente teria havido plágio de autores socialistas franceses que precederam Marx: isso valeria para a teoria da mais valia (que de todo resto é inteiramente incompreendida pelo jurista austríaco) bem como é debita à autoria de Marx uma formulação jurídica da qual ele nunca foi autor (e que remete ao socialismo utópico) que é a do “direito ao produto integral do trabalho”. 

Mais importante do que as refutações a Menger, são as críticas ao Socialismo Jurídico que perpassam o artigo. O Socialismo Jurídico conta com certa influência na ala direita da social democracia alemã, é uma ala reformista e pelo exposto contrária mesmo ao marxismo. 

Podemos identificar as origens do Socialismo Jurídico na história, conforme diz Engels:

“Mas a burguesia engendrou o antípoda de si mesma, o proletariado, e com ele novo conflito de classes, que irrompeu antes mesmo de a burguesia conquistar plenamente o poder político. Assim como outrora a burguesia, em luta contra a nobreza, durante algum tempo arrastara atrás de si a concepção teológica tradicional de mundo, também o proletário recebeu incialmente de sua adversária a concepção jurídica e tentou volta-la contra a burguesia. As primeiras formações partidárias proletárias, assim como seus representantes teóricos, mantiveram-se estritamente no jurídico “terreno do direito” , embora construíssem para si um terreno do direito diferente daquele da burguesia. De um lado a reivindicação da igualdade jurídica foi ampliada, buscando completar a igualdade jurídica com igualdade social; de outro lado, concluiu-se das palavras de Adam Smith – o trabalho é a fonte de toda a riqueza, mas o produto dos trabalhos dos trabalhadores deve ser dividido com os proprietários de terra e os capitalistas – que tal divisão não era justa e devia ser abolida ou modificada em favor dos trabalhadores”. 

Em outros termos, a concepção jurídica de mundo é uma particularidade da sociedade burguesa e ela se projeta adiante na história com o desenvolvimento do capitalismo e a polarização entre as duas novas classes antagônicas, capitalistas e trabalhadores. Os trabalhadores não são imunes a essa sombra que se emana nas novas relações sociais, mas a alteram, sem contudo, revolucionar efetivamente toda a sociedade (por meio de novas relações sociais decorrentes de um novo modo de produção) que não são determinados pelo direito, mas, o inverso, são determinantes do fenômeno jurídico. 

Este não é a linha política do “Socialismo Jurídico” que não obstante redundaria na ala mais direitista e reformista da social democracia alemã, advogando a transformação da sociedade em direção ao socialismo por meio do direito e da lei. Vejamos o que diz Menger: 

“As mudanças sociais necessárias (da ordem jurídica vigente) se realizarão no decorrer de longo desenvolvimento histórico no decorrer de longo desenvolvimento, do mesmo modo que a nossa atual ordem social desagregou e destruiu o sistema feudal no decurso dos séculos, até que finalmente só foi necessário um empurrão para que ele autoabolisse inteiramente”. 

Nada mais estranho tais ideias ao projeto político encampado por Marx, Engels e sua tradição, que envolve a organização e a luta dos trabalhadores em unidade em todo mundo contra a opressão e exploração, não se cogitando aguardar o momento histórico “maduro” para com um “empurrão” avançar rumo a uma modelo societário mais civilizado. 

Finalmente, Engels constata que os partidos socialistas fazem determinadas reivindicações jurídicas que irão variar de acordo com local e com o tempo. Mas o que se está em discussão é a concepção do direito para os marxistas: em última instância trata-se uma forma necessária encontrada para a circulação de mercadoria, para a subsunção do trabalho ao capital, para a alienação e especialmente para a configuração de um sujeito de direito que em condições de igualdade formal e liberdade (autonomia da vontade) dispõe da possibilidade de venda e compra da força de trabalho. O Direito é um fenômeno com especificamente capitalista e que, na terminologia leninista, poderia nos servir enquanto fonte de lutas táticas ou mesmo defensivas e não como um horizonte estratégico, tal qual o socialismo jurídico e suas roupagens mais modernas na forma de socialismo “democrático”, “socialismo e liberdade”, etc.  


terça-feira, 14 de julho de 2015

“A Questão do Direito em Marx” – Márcio Bilharinho Naves

“A Questão do Direito em Marx” – Márcio Bilharinho Naves




Resenha Livro 179- “A Questão do Direito em Marx” – Márcio Bilharinho Naves – Ed. Outras Vozes – Coleção Direitos e Lutas Sociais 

Márcio Bilharinho Naves é formado em Direito pela USP, Doutor em filosofia pela Unicamp e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas desta universidade. Participa do Grupo de Estudos althusserianos da Unicamp, um dos poucos núcleos aqui no Brasil que, dentro do marxismo, alinha-se às teses do pensador francês. Márcio Naves é autor de obras sobre Althusser, Pachukanis (o principal jurista dos primeiros anos de transição pós revolução 1917 na Rússia bolchevique) e Mao (uma liderança que, a despeito das críticas da burguesia e do marxismo ocidental, foi reivindicado em certos aspectos por Althusser).

Como se sabe, a 11ª tese de Feuerbach (1845) de Marx criou um aspecto que diferencia o marxismo das demais correntes políticas e filosóficas de seu tempo e mesmo das tradições que viriam a seguir.

É famosa a consigna segundo a qual:

Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se porém de modificá-lo.

Trata-se de uma assertiva curta mas com um extenso significado. O marxismo abandona a tradição meramente especulativa da filosofia e passa a ser também uma ferramenta de transformação da realidade. Temos, didaticamente, duas interfaces fundamentais do marxismo: o marxismo enquanto corrente política (voltada à “transformar o mundo”) e o marxismo enquanto pressuposto teórico-metodológico (voltado a “interpretar o mundo”, de forma científica, acrescentaríamos).

O que devemos ter como ponto de partida é que em ambas perspectivas (política e teórico-metodológica) o marxismo é todo ele eivado de divisões internas, de diferentes interpretações que não só são divergentes, mas eventualmente antagônicas entre si.

Interessa-nos aqui especificamente o problema do marxismo enquanto pressuposto teórico-metodológico. Poderíamos citar diferenças que envolvem desde aqueles que reivindicam um marxismo ortodoxo (marxismo-leninismo) fiel às categorias fundantes de Marx, Engels e Lênin com a sua adequação a partir da análise concreta à situação concreta (ortodoxia não é dogmatismo) até uma tendência que vem sendo bastante difundida desde os anos 1990 de um “ecletismo” que terá as categorias do marxismo como um dos ingredientes de outros pensadores do pós-estruturalismo, deixando de lado na maioria dos casos o compromisso de um projeto revolucionário, o “transformar o mundo” – pode-se falar num marxismo academicista.

Outra clivagem interessante, e que nos interessa nesta leitura sobre o Direito e Marx, diz respeito ao entendimento do significado do pensamento do jovem Marx no contexto de sua obra em geral.
Uma corrente (que é dominante no Brasil) dirá que existe um movimento de continuidade entre as obras do Jovem Marx que constam das publicações na “Gazeta Renana” e nos “Manuscritos de 1844”, nos escritos sobre emancipação humana da “Questão Judaica”, passando pelas descobertas mais a fundo acerca da teoria da história em “A Ideologia Alemã”, até a plena maturidade do autor nas obras sobre história quando escreve sobre a Comuna de Paris (Guerra Civil na França – 1871) e o Capital. De certa maneira esta tradição reivindica as ideias do jovem Marx que, ainda neste momento, está bastante influenciado pela geração dos jovens hegelianos de esquerda, e é por isso denominado como um Marx Humanista.

O principal autor que se orienta por esta perspectiva é Gyögy Lukacs e pode-se dizer que ela é hegemônica dentre os intelectuais brasileiros: Carlos Nelson Coutinho e mesmo Florestan Fernandes em comentários sobre este tema se mostram a favor desta solução de continuidade entre o jovem e velho Marx.

Pois Márcio Bilharino Naves parte do ponto de vista althusseriano. Segundo Althusser, o entendimento da obra de Marx deve ser feito considerando uma cisão/ruptura entre as obras de juventude e da maturidade em Marx de forma que, e especialmente no que tange à teoria do direito, só poderemos captar o que é verdadeiramente jurídico em Marx a partir da leitura do Capital.
O entendimento do Direito em Marx é produto de uma construção lenta e gradual que se completa justamente quando o velho Mouro descobre os fundamentos de sua crítica à economia política desde o livro 1 do Capital. Antes disso, se formos às fontes do Jovem Marx (relembrando que o mesmo foi um bacharel em direito) chegaremos ao ponto de encontra-lo defendendo o.....jusnaturalismo.
Sobre este período “pré-marxista” de Marx sobre o direito, afirma o autor:

“Esse período compreende duas fases: na primeira, na época da Gazeta Renana, Marx sustenta uma posição jusnaturalista e liberal radical; na segunda, na época dos Anais Franco-alemães, Marx defende posições humanistas que o levam do democratismo extremo de Sobre a Questão Judaica ao comunismo especulativo dos Manuscritos de 44.”

O que falta à crítica da juventude é os conhecimentos da economia política a partir do qual Marx irá detectar como o direito é uma forma (no sentido literal da palavra, como se fosse uma forma de modelar) adaptada para a subsunção do trabalho ao capital e, o que é mais importante, derivada, especificamente das sociedades capitalistas. O direito surge com a noção de sujeito de direito, tendo em vista as relações jurídicas formais para os sujeitos de direito contratarem compra e venda da força de trabalho e formalmente estabelecerem relações “iguais” e “livres”.

Assim, “(O Jovem Marx) capta apenas o movimento mais superficial da sociedade burguesa, o efeito do processo do capital que ele ainda não é capaz de apreender. De modo que Marx apenas descreve as formas aparentes da sociabilidade burguesa sem estabelecer o seu vínculo com as relações de produção e circulação que as tornam inteligíveis. Influenciado pelo humanismo feuerbachiano e por sua teoria da alienação, Marx acaba por promover o reforço da ideologia jurídica ao colocar no centro da análise a categoria da propriedade privada”. 

Os primeiros contornos para uma definição mais concreta do fenômeno jurídico seguirá pari passo o próprio desenvolvimento do capitalismo. No plano filosófico, os autores essenciais são Kant e sua categoria do Direito Pessoal Real que exprime uma tentativa de conciliar a liberdade do indivíduo e a exigência de ainda pensá-lo como coisa, na medida em que trabalha para outrem (considerando, outrossim, que Kant é um filósofo da alvorada do capitalismo);Hegel com sua noção de sujeito de direito universal, quando todo o homem passa a ter reconhecida a mesma capacidade que o direito lhe confere de realizar atos jurídicos e celebrar contatos; e finalmente Marx que irá trazer todas estas cogitações para o plano das relações de circulação e produção, observando como o direito é em primeiro lugar um fenômeno específico da sociedade do capital (e portanto sociedades pré-capitalistas como a Romana a rigor não conheceram Direito, mas outros tipos de manifestações que envolviam regramentos, tradições místicas, religião, mas que nunca tinham a regra de ouro do fenômeno jurídico que é o da equivalência formal).

“Procurando avançar nessa terra incógnita podemos afirmar, então, que o que é específico do direito, seu elemento irredutível, é a equivalência subjetiva como forma abstrata e universal do indivíduo autônomo quando o trabalho é subsumido realmente ao capital. O direito é um modo de organização da subjetividade humana que torna capaz de expressão de vontade, com o que é possível a instauração de um circuito de trocas no qual a própria subjetividade adquire uma natureza mercantil sem com isso perder a sua autonomia.

Mas é somente nas condições de existência de um modo de produção especificamente capitalista que o indivíduo pode se apresentar desprovido de quaisquer atributos particulares e qualidades próprias que o distingam de outros homens; ele se apresenta como pura abstração, como pura condensação de capacidade volitiva indiferenciada”. 

E adiante, continua o professor Márcio:

“Desse modo, podemos considerar que em Marx o Direito é essa forma social sui generis, a forma da equivalência subjetiva autônoma. A nosso ver, esse conceito capta as determinações essenciais da análise do direito que Marx realiza em sua obra de maturidade, especialmente em O Capital e, considerando a sua análise do processo de subsunção real do trabalho ao capital, afirma a especificidade burguesa do direito, permitindo que se estabeleça uma demarcação nítida entre o fenômeno jurídico e outras formas sociais – consideradas pela tradição como sendo também jurídicas – próprias das formações sociais pré-burguesas.

Assim podemos formular esta sentença resolutamente anti-normativista: só há direito em uma relação de equivalência na qual os homens estão reduzidos a uma mesma unidade comum de medida em decorrência da sua subordinação real ao capital”.

Diante de tais assertivas, eventualmente alguns ativistas da área do direito (bem intencionados) podem perguntar a si próprios o que restaria fazer em termos práticos diante da constatação da intensa imbricação entre capitalismo, dominação oculta do capital sobre o trabalho e direito? Em que medida, intervenções do tipo assistencialistas não implicariam na perpetuação das ilusões jurídicas enquanto a meta seria a de destruição (extinção) do direito? Certamente não há aqui fórmulas prontas, mas há algo a se observar que são os pontos de fissura a partir dos quais é possível avançar no questionamento da ordem da legalidade:

“Se o direito e a ideologia jurídica podem emperrar, será ali onde o “sujeito for abalado em sua quietude, em sua certeza, em sua jurisprudência morta, ultrapassado por qualquer coisa irrepresentável na forma subjetiva de uma abstrata troca de valores. Talvez não saibamos como, talvez não saibamos muito, mas o conhecimento não ideológico que Marx e Pachukanis nos deram da relação de capital e de sua forma jurídica necessária remete para o que talvez possa ser um passo para sair desse mundo de espelhos: a dissolução dos títulos “científicos” do direito, o descompromisso com a legalidade, a interdição aos “socialismos jurídicos” e a redução de todas as manifestações do “jurídico” a uma fórmula “essencial” que ao mesmo tempo, seja conhecimento e recusa: o direito como mero, simples, banal, momento subjetivo de troca de equivalentes”.   


domingo, 12 de julho de 2015

“Memórias de um Sargento de Milícias” – Manuel Antônio de Almeida

“Memórias de um Sargento de Milícias” – Manuel Antônio de Almeida 




Resenha Livro 178– Memórias de um Sargento de Milícias – Editora Ática 

Pode-se dizer que este romance bem como o autor estiveram deslocados de seu tempo. A obra foi publicada entre 1852 a 1853 junto aos leitores cariocas do Correio Mercantil, um jornal por sinal bastante importante para vida cultural do país tendo em sua redação, entre outros, José de Alencar e Quintino Bocaiúva.

Depois da publicação no periódico, as “Memórias” sairiam publicadas em dois volumes sob a assinatura de “por um brasileiro”. Não tiveram grande expressão junto ao público sendo certo que até 1900 a obra teria apenas 6 edições. Apenas nos anos de 1940, com alguns trabalhos da crítica literária feitos do Mário de Andrade e Antônio Cândido, detectou-se não estar-se diante de um mero romance de costumes ( um equivalente literário aos quadros do pintor francês Debret que esteve no Brasil e buscou igualmente fazer este trabalho histórico), mas de um romance de relevo, genuíno em suas formas e que em certos aspectos remete ao pícaro espanhol ou ao malandro, personagem conhecido na tradição cultural brasileira.

O que acontece é que “Memórias de um Sargento de Milícia”(1852-3) surge num contexto literário onde predomina o romantismo literário, com suas características relacionadas ao subjetivismo, ao sentimentalismo e ao elogio ao amor, características inteiramente distintas ao livro que é antes de tudo uma crônica do tipo humorística envolvendo personagens do subúrbio do Rio de Janeiro do “tempo do rei”.

Memórias de Sargento de Milícias é uma crônica da vida de diversos personagens durante o  período da vinda de Dom João VI ao Brasil: não existe uma densidade na narrativa que implicaria num aprofundamento da análise psicológica das personagens. Estes de certa forma são descritos de uma forma paisagística o que talvez justifique num primeiro momento a ideia de um romance de costumes. Ocorre que não se trata só de narrar costumes e hábitos de uma época:  estes são o pano de fundo para uma narrativa, para uma divertida história envolvendo Leonardo, filho de Leonardo Pataca, um português que desde o navio para o Brasil, a partir de uma piscadela e uma pisada no pé, se engraça com uma saloia portuguesa, resultando no nascimento de protagonista da história que ao fim e ao cabo, depois de passar uma vida de vadio e safar-se de suas inúmeras maracutaias, terminaria como Sargento de Milícias e junto a mulher desejada.

Começamos a resenha dizendo que o livro estava à frente de seu tempo. Tal característica se constata do fato da história se basear em personagens e ambientes do subúrbio do Rio de Janeiro. Observa-se que o narrador opta muitas vezes por não nomear os personagens, mas sim qualificá-los pela sua profissão: “o barbeiro”que é o compadre, “a vizinha” que faz provocações acerca do pequeno Leonardo e acaba sendo vítima de retaliações do pequeno; “a comadre” que também é parteira. O ambiente do subúrbio do Rio vai em sentido contrário dos romances românticos ou mesmo realistas dos momentos posteriores observados em Machado de Assis: a tradição das festas populares religiosas, quando todo o povo saia à rua a acompanhar a procissão; os fados e as festas populares; a crença em torno de rituais sobrenaturais (o que hoje em claro e bom português diríamos ser macumba e que então era reprimido com pena de prisão pela polícia); encontros festivos dos ciganos; as missas lotadas em datas religiosas. Todos estes aspectos da cultura popular de um período bastante longínquo fazem com que “Memórias de um Sargento de Milícias” apenas encontre na literatura obras paralelas produzidas décadas depois em Aluízio de Azevedo de “O Cortiço” e Lima Barreto de “Clara dos Anjos” e “O Triste Fim do Policarpo Quaresma”.

Um dos personagens mais intrigantes para um leitor do séc. XXI das “Memórias” é o Major Vidigal. Ele concentrava em si uma espécie de diversos poderes policiais e mesmo jurisdicionais, mandava e desmandava os malandros para cadeia, e através de diligências pessoais poderia ser convencido à soltura dos presos a partir do seu gosto pessoal. Com tantos poderes e diante de regras duras contra a vadiagem, todos temiam o Major Vidigal, ainda que, a seu tempo, o leitor poderá tomar ciência de que o todo poderoso aplicador da lei se deixava quedar pelo coração (mulher) e não aplicar a lei.

“O som daquela voz que dissera ‘abra a porta’ lançara entre eles, como dissemos, o espanto e o medo. E não foi sem razão: era ela o anúncio de um grande aperto, de que por certo não poderiam escapar. Nesse tempo ainda não estava organizada a polícia da cidade, ou antes estava-o de um modo em harmonia com as tendências e ideias da época. O Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo da administração; era o juiz que julgava e distribuía pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunha, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação  das sentenças que dava, fazia o que queria e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto, façamo-lhe justiça, dados os descontos necessários às ideias do tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado”.         

Hoje com a descoberta das “Memórias”, temos uma fonte histórica para se conhecer a cultura, a sociedade e mesmo os trejeitos e a forma de se falar da corte nas três primeiras décadas do séc. XIX. Alguns aspectos ainda permanecem vivos: o “jeitinho brasileiro” que envolve arranjar junto à burocracia do estado favores por intermédio de conhecidos é observado nas relações entre o Major Vidigal. A confusão entre o público e o privado é questão que está no bojo da formação do estado nacional brasileiro e que encontro expressão mesmo num despretensioso livro de comédia.

sábado, 4 de julho de 2015

“Os Bruzundangas” – Lima Barreto – Ed. Brasiliense São Paulo – São Paulo – 1961

“Os Bruzundangas” – Lima Barreto – Ed. Brasiliense São Paulo – São Paulo – 1961


Resenha Livro 177 - "Os Bruzundangas" / "As Aventuras do Doutor Bogóloff" - Ed. Brasiliense- São Paulo - 1961

A “República dos Estados Unidos da Brazundunga” é uma matáfora do Brasil. Trata-se de um raro exemplo de romance do tipo sátira de autoria do escritor por Lima Barreto, o principal expoente do período literário do pré-modernismo no Brasil. 

A Sátira encontra seu equivalente na caricatura ou mesmo naquilo que os sociólogos chamam de tipo ideal e é bem uma chave explicativa para se compreender um fenômeno social, uma cultura ou um povo. O tipo ideal Webberiano é uma espécie de generalização que permite ao observador de diversos fatos tais apreendê-los em seu caráter total, um recurso técnico portanto que forma uma terminologia comum; na arte a caricatura opera de forma semelhante ao tipo ideal Webberiano, concentrando os traços mais destacado de um personagem (nariz ou boca), com a diferença de que aqui há o evidente tom jocoso. 

A uma grande paródia sobre Brasil, correspondendo a espécie literária de tipo humorístico e ao mesmo tempo eivada de crítica social (Castigat ridendo mores – o riso castiga os costumes), em que se comenta o patrimonialismo, o bacharelismo e o apego aos meros títulos formais da Brazundanga, a política voltada unicamente à busca de cargo para parentes (nepotismo) desprovida de qualquer cogitação político-ideológica, a crítica literária e os artistas dentro de uma patética tradição de importar um regime de arte totalmente alheia à tradição local, a aristocracia política formada por nomeações que atendem interesses familiares e pecuniários, e por aí vai. 

Só o fato de termos um romance na forma de sátira e a atualidade da crítica mordaz de Lima Barreto, ele próprio em vida um mulato e nunca reconhecido em vida por seus talentos e com uma perspectiva privilegiada para as críticas perpetradas, sugeriria maior disseminação de tal obra ainda hoje pouco conhecida. Uma das eventuais explicações deve-se ao fato de que o livro foi publicado postumamente de forma incompleta e sem ser revisto pelo escritor. Diante de apertos financeiros, Lima Barreto confiou os originais ao editor Jacinto Ribeiro dos Santos que lhe pagou setenta mil réis pelos direitos da obra “por todo o sempre”. Antes o livro havia sido publicado no jornal Periódico do ABC de 1917 e depois com a posse dos direitos autorais junto à família do autor, estariam os capítulos completos, sem revisão, além de alguns não incluídos na primeira edição de Jacinto Ribeiro. 

Crítica ao Brasil por meio da Brazundanga 

A sátira tem o condão de ir destacando alguns dos vícios mais proeminentes da sociedade brasileira (objeto da paródia) e levá-los a uma espécie de extremo que causa no leitor um efeito de um humor e de reflexão crítica. Um exemplo, é o apego às formas em detrimento ao conteúdo, o formalismo que se satisfaz com as aparências do saber. O bacharelismo e o peso do título de doutor nestas terras têm como resultado uma mediocridade geral, em que eventuais capazes, sem protegidos e títulos são defenestrados pelo meio. 

“Digo – “caracteriza”, porque, como os senhores verão no correr destas notas, não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que as impila a ir ao âmago das cousas que fingem amar, de decifrá-la pelo amor sincero em que as têm, de querê-las. Só querem a aparência das cousas. Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina que  eles pretender exercer, não é curar, não é ser um grande médico, é ser doutor; quando se fazem oficiais dó exército ou da marinha, não é exercer as obrigações atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem de executar o que é próprio a elas. Vão ser uma ou outra coisa pelo brilho do uniforme. Assim também são os literatos que simulam sê-lo para ter a glória que as letras dão, sem querer arcar com as dores, com o esforço excepcional, que ela exige em troca”. 

Temos aqui portando, a crítica ao formalismo, ao bacharelismo e à má conduta de uma elite que não exercem suas profissões à altura das expectativas mas consoante interesses mesquinhos e à vaidade pessoal. No que tange especificamente aos bacharéis, nas Brazundangas ela forma uma aristocracia doutoral, com uma hierarquia própria, que vai dos doutores em Direito e Engenharia (mais considerados e visados pelas moça a fim de casamentos...) e dentistas (nas escala doutoral escalão mais baixo). Num país onde a maracutaia é a regra, muitos cidadãos compram seus títulos de barão na Europa e são realmente respeitados pelo povo de Brazundanga que engole tal engodo. 

Em suma poderíamos infelizmente dar como de certa atualidade (ainda que com certo exagero, como se fosse uma caricatura do Brasil) as críticas na sátira das Brazundangas em Lima Barreto. Talvez poderíamos dizer que apenas no que tange a literatura, o panorama mudaria pouco tempo depois da obra ser publicada (1917) com geração da arte moderna de 1922 que ao contrário da tradição de até então, inaugurou no Brasil uma arte com fontes verdadeiramente nacionais. Sabe-se que Lima Barreto teve posições reservadas com o movimento modernista de 1922. Mas é inegável a importância daquela vanguarda no sentido de tirar a literatura e as artes nacionais da área de influência e dependência francesas. 

Lima Barreto é um escritor que se insere num momento de transição na literatura, o do pré-modernismo, caracterizado naquele escritor pela literatura de subúrbio do Rio de Janeiro, denúncia das desigualdades sociais e do racismo. O escritor foi muito criticado em sua época por sua linguagem popular, teve problemas de alcoolismo e terminou a vida num manicômio. 

Finalmente, nesta edição que compõe as obras completas de Lima Barreto vai uma pequena novela do autor denominada “Aventuras do Doutor Bogóloff”. Trata-se de um Russo filho de pai modesto dono de uma pequena livraria – na juventude o jovem mantém alguns contatos com movimentos anarquistas e é preso para desgosto do pai, um humilde que via o Czar como paizinho. Pouco tempo depois o pai morre e após ser solto e com a perseguição policial, Bogóloff resolve tentar a vida  no Brasil, diante de propagandas sugerindo ser aqui o melhor dos mundos. A interface entre esta novela e Bruzundanga é justamente  a crítica aos costumes, sociedade, políticos e povo brasileiro, desta vez feita por um imigrante que em alguns anos tem uma trajetória fantástica pelo país – possibilitando observar o Brasil desde várias perspectivas. Começa trabalhando numa colônias de europeus no Sul onde constata alto volume de trabalho para pouco rendimento. Dirige-se à corte, e consegue uma entrevista junto a um parlamentar e com uma conversinha fiada sobre técnicas de agricultura é nomeado numa canetada Diretor da Pecuária – quando passa a ganhar um alto soldo do tesouro público para basicamente assinar papeis. Em função de um mal entendido, durante uma viagem de pesquisas para a implantação de seu projeto é destituído do cargo, todos o abandonam, e consegue sobrevivem na base da malandragem com pequenos delitos. Faz-se de crítico de arte e de pintor, sem nunca ter pintado na vida e engana toda uma sociedade – o fato de ser loiro, estrangeiro e sobrenome Bogóloff, contribui para a peça plantada, e por aí vai. 

Lima Barreto é um dos primeiros escritores a dar voz a personagens fora do ambiente burguês e seus livros remetem à perspectiva de um jornalista com uma perspectiva crítica bastante acentuada sobre seu tempo. Foi um rebelde e por isso morreu isolado. Hoje merece ser resgatado e conhecido.