terça-feira, 31 de março de 2015

“Para Entender os Sindicatos no Brasil: uma visão classista” – Waldemar Rossi e Willian Jorge Gerab

“Para Entender os Sindicatos no Brasil: uma visão classista” – Waldemar Rossi e Willian Jorge Gerab 



Resenha Livro # 162- “Para Entender os Sindicatos no Brasil: uma visão classista” – Waldemar Rossi e Willian Jorge Gerab – Ed. Expressão Popular 

Concisão e didática na leitura e na compreensão: estas são as melhores qualidades deste ensaio dos autores sobre a história do movimento operário brasileiro, os avanços e recuos do movimento operário conforme a dinâmica da luta de classes no país, a explanação de alguns conceitos decorrentes do movimento sindical como classes sociais, o corporativismo (signo distinto do nosso sindicalismo e direito do trabalho) e finalmente uma síntese final com análises do movimento sindical dentro dos governos neoliberais de FHC e social-liberal de Lula. 

O ensaio bem pode ser usado para cursos de formação e trabalho de base no sentido de introduzir e oferecer uma visão panorâmica do problema sindical no Brasil e o início das lutas dos trabalhadores no país. Suas origens mais remotas já podem ser observadas desde os fins do séc. XIX com o fim da escravidão e a vinda de imigrantes italianos influenciados e introdutores de ideias anarquistas e anarco-sindicalistas. No contexto da República Velha (1889-1930) as autoridades entediam ser a questão social um caso de polícia o que justificava a perpetração de uma dura repressão a qualquer forma de resistência.

O primeiro marco de organização sindical no Brasil ocorreria em 1905 com a organização da FOSP (Federação Operária de São Paulo) e já no ano subsequente com a organização de seu primeiro congresso, aquele incipiente movimento chega às deliberações que bem denotam seu caráter anarquista:

1- Organização federativa e não centralizada 
2- Sindicalismo de Resistência e não assistencialista
3- Combate ao Parlamentarismo com centralidade na ação direta operária 
4- Luta contra a proposta dos agentes do governo e da Igreja 
5- Formação do COB (Confederação Operária Brasileira). 

A Hegemonia anarquista dentro do movimento operário brasileiro só seria encerrada com a impactante revolução russa vitoriosa de 1917, a qual levaria a maior parte daqueles ativistas ao marxismo-leninismo, culminando com a formação do PCB em 1922. Além dos comunistas e anarquistas, também ganham alguma expressão correntes socialistas-reformistas que propugnavam  a conciliação capital e trabalho. 

Este era o contexto diante da revolução de 1930, momento decisivo e de grande alteração no universo do trabalho e dos sindicatos no Brasil. Dizem aqui os autores:

“Assumindo o poder, Vargas leva o projeto da burguesia  à frente. Ao mesmo tempo, cede a pressões do proletariado criando, porém, instrumentos para controlá-lo. 
O primeiro grande passo foi a criação do Ministério do Trabalho, em 1931, visando a elaboração de plano de controle da classe operária e do atrelamento sindical ao Estado.”

Também no ano de 1931 Vargas assina o decreto 19.770, que regulamenta a sindicalização, criando a tutela direta do estado junto aos sindicatos – exigência de atestado ideológico para os diretores; controle de suas finanças pelo Ministério do Trabalho e Emprego; Estatuto Padrão para todos sindicatos; proibição de propaganda e atividade político ideológica; direito de intervenção do Estado”.

Já em 1937 sob o Estado Novo o modelo corporativista seria consagrado, conforme o modelo fascista italiano. Fica estabelecido desde então o atrelamento completo do sindicato ao Ministério do Trabalho e há a criação da Justiça do Trabalho. 

Muitas páginas são dedicadas pelos autores a este período histórico já que este modelo sindical, mesmo após as mudanças formais introduzidas pela Constituição Federal de 1988, ainda não foram superadas. A dependência com relação ao Estado hoje dá-se a partir da contribuição sindical. Constata-se ademais a existência de fabulosas burocracias em direções de sindicatos que estão há 5, 10, 20 anos longe do chão de fábrica conforme arranjos políticos junto a partidos com representação parlamentar em Brasília. Os sindicatos numa perspectiva classista, de defesa dos interesses dos trabalhadores ainda são em grande parte instituições burocráticas que buscam a conciliação e transigir direitos em troca da permanência de seus velhos dirigentes no cargo – consoante a máxima corporativista segundo a qual sindicato, Estado e representante dos patrões devem buscar consensos. 

Dentro desta última perspectiva, os autores conseguiram sinalizar hoje 4 grandes matizes sindicais. É uma forma ilustrativa e bastante representativa do que temos dentro de movimento sindical no Brasil dos dias de hoje. 

1- Sindicatos que não abrem mão de seus objetivos, de suas formas de luta e de suas palavras de ordem, sejam quais forem os quadros políticos específico e geral – postura sectária – hoje minoritária no movimento sindical 
2- Sindicato que não abrem mão dos seus objetivos, mas adequa às formas de luta e “palavras de ordem” a cada quadro político, sempre passando pela consulta às suas bases sindicais – Hoje também minoritária no movimento sindical 
3- Sindicatos que admitem um processo de adaptação dos objetivos, formas de luta e palavras de ordem, buscando a melhor convivência possível entre interesses adversos – postura de conciliação de classes – reformistas 
4- Sindicatos que submetem-se aos objetivos dos adversários, buscando conquistas que não contrariem os interesses dos mesmos dos mesmos e, com isso, evitarão máximo qualquer conflito – só permitindo exceção quando sua sobrevivência estiver em jogo- postura de submissão (ou pelega, quando envolver, também, o recebimento de vantagens materiais pagas pelo patrão) 

As pesquisas que envolvem os sindicatos, a conformação do mundo do trabalho e suas transformações desde a reestruturação produtiva  e todos outros aspectos que perpassam a vida objetiva e a subjetividade da classe que vive do trabalho são centrais num momento em que só este sujeito histórico pode oferecer uma resposta em sua totalidade para a crise civilizatória pela qual passamos. 


quinta-feira, 26 de março de 2015

“A Falência da II Internacional” – V. I. Lênin

“A Falência da II Internacional” – V. I. Lênin 



Resenha Livro #161 - “A Falência da II Internacional” – V. I. Lênin – Ed. Kairós – Série Materialismo Histórico


Este artigo foi redigido por Lênin no ano de 1915, ou seja um ano após o início da I Guerra Mundial e pouco depois do último Congresso da II Internacional, o ocorrido em Bâle na Suíça em 1912. 

O que está em discussão é a política dos partidos social-democratas pelo mundo diante do militarismo e do perigo de guerra, sendo certo que a o conflito, segundo a linha revolucionária esposada por Lênin e seus companheiros, tratava-se de uma guerra imperialista, de caráter espoliador e antiproletário. 

Lênin chama atenção para o fato de que este foi o entendimento do Congresso de Bâle em 1912 e todavia dois anos depois do encontro ratificar um documento consensual prontificando todo movimento proletário mundial a declarar “guerra à guerra” em solidariedade aos povos trabalhadores, a maior parte dos partidos social-democratas (os de maiores peso, como os partidos alemão e francês ) capitularem ao social-chauvinismo (ou ao oportunismo, expressão sinônima) e passarem a defender a participação dos respectivos trabalhadores em seus exércitos nacionais, bem como aprovando dentro do parlamento créditos de guerra. 

É nesse sentido que  Lênin considera a falência definitiva da II Internacional o momento do início da I Guerra:

“Para formular a questão de maneira científica, isto é, da perspectiva das relações entre classes da sociedade contemporânea, devemos dizer que a maioria dos partidos social democratas, tendo à frente em primeiro lugar, o maior e o mais influente dos partidos da II Internacional, o partido alemão, perfilou-se ao lado do seu Estado-maior, do governo da sua burguesia, contra o proletariado. Eis aí um acontecimento de alcance histórico de alcance mundial (...)”. 

Nesse sentido, a falência da II Internacional fecha um ciclo dentro da trajetória do movimento operário marcado pela coexistência entre as correntes reformistas e revolucionárias, inviável dentro do novo contexto imperialista do capitalismo em que os elementos da aristocracia operária e pequenos burgueses atuam dentro do movimento operário contra os interesses dos trabalhadores. Daí a conclusão de Lênin:

“A época imperialista não pode tolerar a coexistência, num mesmo partido, de homens de vanguarda do proletariado revolucionário e da aristocracia semi-burguesa da classe operária que se regozijam com migalhas de privilégios que a situação de ‘grande potência’ confere à sua nação. A velha teoria que apresentava o oportunismo como uma “nuança” específica no seio de um partido único, alheio aos extremos, é hoje, a pior das mistificações. O oportunismo aberto repugna as massas operárias (...)”.

Vale pontuar aqui: trata-se de uma vedação à coexistência dentro de um mesmo partido o que se observa fielmente no modelo do partido bolchevique. Esta tese não invalida alianças deste partido com outros setores sociais em determinadas circunstâncias históricas, como o prova exaustivamente eventos da Revolução Russa, a começar pela aliança operário-camponesa. 

Mas voltando aos oportunistas da II Internacional. Se pensarmos nos malabarismos teóricos dos dirigentes da social-democracia alemã para justificar sua política de capitulação que vão até ao cúmulo do “se nos posicionarmos contra a guerra, seremos presos pelos governos!”, este argumento bem ilustra a diferença entre o marxista e o oportunista. Pois o marxista revolucionário estaria sim disposto a ser um preso político a defender suas ideias justas antes de salvar a sua pele. O mesmo pode-se dizer dos malabarismos teóricos de Kautsky e sua tese de “Ultraimperialismo” que busca diluir a vigência dos traços elementares do conflito corrente, às benesses que a Guerra traz aos capitalistas como um todo em detrimento da classe trabalhadora mundial,  com pilhagens, empréstimos, domínios de mercado, conquistas de recursos e matérias primas, e vantagens políticas da burguesia dividindo e corrompendo o proletariado. 

Estamos com Lênin quando afirmamos que o capitalismo persiste em sua fase imperialista, marcado por suas crises, monopólios, guerras e revoluções. Nesta perspectiva, a falência da II Internacional tem como ensinamento a clara delimitação necessária (no que diz respeito à organização partidária) entre revolucionários e reformistas. 

Quanto aos revolucionários, Lênin indica uma forma de se sinalizar uma crise que aponte para ruptura:

“Para um marxista, não há dúvida de que a revolução é impossível sem uma situação revolucionária, mas nem toda situação revolucionária conduz à revolução. Quais são, de maneira geral, os indícios de uma situação revolucionária?

1- Impossibilidade para as classes dominantes manterem sua dominação de forma inalterada; crise da “cúpula”, crise da política dominante, o que cria uma fissura através da qual o descontentamento e a indignação das classes oprimidas abrem caminho. Para que a revolução estoure não basta normalmente que a base não queira mais viver como outrora mas é necessário ainda que a “cúpula não o possa mais”;

2- Agravamento, além do comum, da miséria e da angústia das classes oprimidas; 

3- Desenvolvimento acentuado, em virtude das razões indicadas acima, da atividade das massas, que se deixam em período pacíficos, saquear tranquilamente, mas que em período agitados são empurradas tanto pela crise em seu conjunto como pela própria cúpula, para uma ação histórica independente”.          

terça-feira, 24 de março de 2015

“A II Internacional Pelos Seus Congressos (1889 – 1914)” – Edgard Carone

“A II Internacional Pelos Seus Congressos (1889 – 1914)” – Edgard Carone 



Resenha Livro #160 - “A II Internacional Pelos Seus Congressos (1889 – 1914)” – Edgard Carone – EDUSP – Editora Anita Ltda. 

Edgard Carone é um historiador marxista brasileiro que tem uma vasta produção historiográfica não só acerca de temas sobre História do Movimento Operário mas sobre a História Geral do Brasil, particularmente da República Velha aos anos subsequentes até meados do século XX. 

Neste ensaio sobre a II Internacional, o historiador conta a história daquela experiência a partir dos seus 9 congressos, ou poderíamos diz 8 congressos e meio, já que o IX Congresso Socialista Internacional ocorrido na Suíça (1912) é antes um evento de caráter extraordinário convocado diante da iminente possibilidade da Guerra com a crise na região dos Bálcãs – que viria efetivamente a servir de estopim para a 1ª Grande Guerra Mundial em 1914. 

Houve na história do movimento operário internacional três momentos/tentativas de organização dos operários em nível internacional – a perspectiva socialista tem como ponto de partida o Manifesto Comunista de Marx (1848) segundo o qual os trabalhadores de todo mundo devem se unir em sua luta contra o capitalismo que também se conforma como uma realidade internacional: “Trabalhadores de todo mundo, uni-vos”, conclui Marx no Manifesto. E ainda em vida o próprio e seu camarada Engels jogam peso na construção da I Internacional (1864 a 1872). O seu fim diz respeito em primeiro lugar às divergências e antagonismos internos, especialmente entre socialistas e anarquistas que enfraquecem a organização bem como as duras derrotas do movimento operário, em especial com a caída da Comuna de Paris em 1871.

No contexto do ressurgimento de novas organizações socialistas após o refluxo supracitado, os maiores movimentos operários organizados eram o alemão e o francês. Estes serão os principais protagonistas na criação  e desenvolvimento da II Internacional, cada um com suas singularidades. 

O partido alemão é um partido amplo capaz de aceitar em seus quadros alas reformistas como a de Bernstein e alas revolucionárias como a de Rosa Luxemburgo. Já na sua fundação, o partido alemão nasce sob o signo do reformismo já que é resultado de uma fusão da Associação dos Trabalhadores de Ferdinand Lassale (1869), considerado por Marx como ambicioso e oportunista. Vertentes lassalianas e reformistas (Bebel), centristas Kautsky, (ainda que considerado em certo período como um marxista ortodoxo) e revolucionárias (Liebknecht) coexistem dentro da organização da Alemanha.  

Já o movimento francês, de forma análoga ao inglês, tem origens mais próximas do movimento sindical. Nas palavres de Carone: 

“Na França, a evolução do movimento operário partidário está ligada à existência anterior do movimento sindical, o que não se dá na Alemanha. No período da III República (após 1870), ‘avanço sindical e avanço coletivista ou comunista são inteiramente ligados um ao outro. Eles reagem um ao outro, e não se pode delinear o movimento socialista sem evocar o movimento profissional.” 

Ademais, há ainda a forte presença do Blanquismo no movimento francês, basicamente uma corrente política substitucionista e voluntarista, muito popular no contexto da Comuna de Paris. 

Diante destas inúmeras frações dentro das organizações de cada movimento nacional, é previsível a pluralidade de correntes dentro dos congressos internacionais.

“A presença da Sociedade Fabiana inglesa é exemplo: eles defendem não a mudança do regime pela força ou evolutivamente, mas a implantação de uma ‘democracia industrial’ alcançada através de um socialismo administrativo. No caso dos possibilistas franceses, isto é, da tendência  de Paul Brousse, o que pretendem é a “nacionalização dos diversos serviços públicos da Comuna”. Os sindicalistas ingleses ou franceses, com Allemane, tem algumas posições próximas dos possibilitas, segundo os quais, além de defenderem a ação sindical, dão a primazia à luta econômica sobre a luta política”.

 Há ainda a questão dos anarquistas: em geral, estes últimos apenas admitiam a intervenção dos operários na luta econômica e descartavam por inteiro a luta política parlamentar. Também defendiam e agitavam a tese de uma Greve Geral como panaceia geral para a destituição universal da burguesia. Havia uma clara incompatibilidade entre os anarquistas e os socialistas (revolucionários e reformistas), implicando na luta e na expulsão dos anarquistas da II Internacional. No III Congresso (1893), como condição para participação, dizia o regulamento:

“São admitidos ao Congresso todos os sindicatos profissionais operários, como os partidos e associações profissionais operários, como partidos e associações socialistas que reconheçam a necessidade da organização operária e de sua participação política”. 

Já dentre os documentos aprovados no congresso:

“A ação incessante para a conquista do poder político pelo Partido Socialista e a classe operária é o primeiro dos deveres, pois somente então ela será dona do poder político, esmagando privilégios de classes, expropriando a classe governante e possuidora poderá se amparar inteiramente e fundar o regime da igualdade e de solidariedade da República social”. 

Um questão intrigante que surge na análise dos congressos aparece com os debates sobre a questão do militarismo e o crescente perigo de guerra internacional. No último Congresso da Internacional (1912) as intervenções dos delegados vão no sentido da Paz Mundial, da “Guerra à Guerra”, da exigência do fim dos sigilos dos tratados internacionais, do fim da espoliação colonialista e de que os trabalhadores, por meio da internacional devam impedir o conflito mundial iminente por todos os meios possíveis.

Apenas dois anos depois (1914), com o início do conflito a maior parte dos partidos da II Internacional capitula às suas respectivas burguesias nacionais em sentido contrário às palavras de ordem do IX Congresso, sendo que alguns deputados operários votam a favor dos créditos de guerra. 

A chave explicativa deste complexo fenômeno envolve varáveis que vão além desta resenha, mas que, de toda forma, foi debatida por Lênin em seu “A Falência da II Internacional”. (Ver Próxima Resenha)

O que chamamos a atenção é que apenas as atas congressuais, ainda que fontes importantes que representam a resultante das discussões e ilustram as preocupações do movimento operário do período histórico, devem ser olhadas como fontes históricas e ilustram como fotografias etapas do desenvolvimento do movimento operário internacional. 

Não tomemos as proposições das atas como a verdadeira linha política do movimento operário em nível mundial em sentido literal - são como dissemos fotografias. Na prática, ainda o movimento não era dirigido desde uma força externa como no período da III Internacional, sendo o período da II Internacional a fase em que as deliberações tinham uma ação muito menos vinculante sobre os partidos socialistas. Já a leitura e o estudo da história do movimento socialista, escuso dizer, é fundamental para delimitar os erros e acertos do passado e identificar no presente soluções que orientem o caminho da vitória: a emancipação dos trabalhadores.

sábado, 21 de março de 2015

“O Avesso do Trabalho II” (Org.) Vários

“O Avesso do Trabalho  II” (Org.) Vários





Resenha Livro # 159– “O Avesso do Trabalho V. II: trabalho, precarização e saúde do trabalhador” – Org. Edvânia Lourenço, Vera Navarro, José Silva e Raquel Sant’ana
A Expressão Popular tem publicado uma série de livros dedicados ao mundo do trabalho, à conformação das relações laborais diante da reestruturação produtiva a partir dos anos 1970 e seus impactos tanto nas vidas individuais dos trabalhadores quanto em suas organizações coletivas, os sindicatos e os movimentos de luta. Trata-se afinal de uma questão-chave: para os marxistas, compreender as diversas facetas do mundo do trabalho, da sua atual configuração, de sua evolução na história e de se compreender ao máximo todos os elementos constitutivos da classe trabalhadora no Brasil é uma pré-condição indispensável para aqueles que se propõem a lutar por uma transformação social na qual a centralidade e o protagonismo político é todo ele da classe trabalhadora – o que é indiscutível dentro do marxismo-leninismo.
Neste trabalho, os autores reuniram uma série de artigos acadêmicos apresentados por ocasião de algumas edições do “Seminário de Saúde do Trabalhador de Franca”, por sinal, um dos poucos eventos no país que se debruça ao tema específico de saúde e relações do trabalho dentro de suas interfaces no direito do trabalho e sindical, na assistência social e na medicina. Este seminário foi concebido pelo “Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Calçados de Franca” e conta com a comunidade  acadêmica da Unesp, USP, Ministério Público do Trabalho, secretarias de saúde do município e do estado e outros sindicatos.
Os artigos estão divididos em 4 grandes grupos. O primeiro bloco “Mudanças no Mundo do Trabalho” introduz a discussão desde um ponto de vista mais estrutural, verificando-se o aumento nos últimos 20-30 anos dos casos de adoecimento e acidentes de trabalhos observados pela introdução de novas técnicas de produção (por exemplo a robotização) em escala global que engendram uma maior intensidade das jornadas de trabalho e a polivalência das funções, aumentando o desgaste do trabalhador. Explica-se outrossim o drama psicossocial dos trabalhadores diante do aumento exponencial do desemprego nos últimos anos e do aumento do exército industrial de reserva.

Há mesmo um processo de captura da subjetividade do trabalhador que chama a ser não um empregado mas um “colaborador” da empresa o que antes de tudo denota uma intenção manipuladora que tem como função: (i) afastar ao máximo a possibilidade de participação dos trabalhadores em organizações reivindicatórias; e (ii) tornar o trabalhador um dócil capacho dos patrões, eventualmente assumindo a culpa e a responsabilidade de tarefas laborais extra-contratuais.

Paralelamente, diante das novas tecnologias que vão exigindo cada vez menos mão de obra para a execução de trabalho produtivo, com o aumento do trabalho no setor informal, de serviços e trabalho part-time, levando autores a questionar a centralidade do mundo do trabalho na contemporaneidade, muito tem-se falado a respeito da crise do mundo do trabalho.

Estas perspectiva neoliberal que busca eliminar virtualmente no plano teórico a noção de luta de classes vai ao ponto de dizer ter havido o “fim do trabalho”. Contra tal perspectiva diz corretamente Ricardo Antunes:

“Ao Contrário, portanto, das teses que propugnam o descentramento da categoria trabalho, as tendências em curso configuram-se como elementos suficientes para evidenciar as formas contemporâneas da centralidade do trabalho E, desse modo, esboçara crítica da crítica.
Ainda que esboçando uma redução quantitativa (com repercussões qualitativa) no mundo produtivo o trabalho abstrato cumpre papel decisivo na criação de valores de troca. A redução do tempo físico de trabalho no processo produtivo, bem como a relação do trabalho manual direto e a ampliação do trabalho mais intelectualizado, não negam a lei do valor, quando se considera a totalidade do trabalho , a capacidade de trabalho socialmente combinada, o trabalhador coletivo como expressão de múltiplas atividades combinadas”

A título de esclarecimento, trabalhado abstrato é o trabalho produtor de valor de troca, é o trabalho alienante em contraponto ao trabalho concreto produtor de valor de uso e não é exclusivo do modo de produção capitalista.

Já os demais capítulos irão versar especificamente sobre interfaces entre o processo do trabalho e o adoecimento, a reestruturação produtiva e a saúde do trabalhador e uma série de artigos específicos sobre a Política de Saúde do Trabalhador no Brasil.

Quanto a este último ponto, cumpre lembrar que iniciativas foram tentadas através de conferências interministeriais no sentido de criar projetos comuns de políticas de saúde do trabalho: Ministério da Saúde, Ministério do Trabalho e Emprego e Ministério da Previdência Social. Todavia, em que pese iniciativas transsetoriais como Centros de Referência do Trabalhador (CERST) – muito criticados pelos trabalhadores sapateiros em seus depoimentos no livro, diga-se de passagem – cada órgão atua de forma desarticulada, há burocracia e pouco resultado prático.

O Ministério do Trabalho e Emprego com certeza seria o órgãos com melhores chances de enfrentamento direto junto às empresas que violam gravemente os direitos de saúde dos trabalhadores, ao lado do Ministério Público do Trabalho. E os exemplos listados no livros de violação de direito são vastos e gravíssimos, das teleoperadores de telemarketing aos cortadores de cana da região de ribeirão preto que chegam a morrer de tanto trabalhar. O atendimento não só no âmbito da saúde mas multi-disciplinar, envolvendo a assistência social e mesmo tratamento psicológico seria um segundo momento e deveria estar amparado pelo SUS que por meio da lei 8080/90 art.17 que já prevê atuação  no âmbito da saúde do trabalhador.

Um último problema: a medicina do trabalho sequer é lecionada nas escolas de direito nos cursos de graduação. Os graves problemas de saúde do trabalhador não estão nos currículos didáticos do aluno de direito, realidade grave que precisa ser sanada. Iniciativas como a do Seminário de Saúde de Franca e a publicação dos artigos pela expressão popular são uma boa iniciativa.    

quarta-feira, 11 de março de 2015

“Tarás Bulba” – Nikolai Gógol

“Tarás Bulba” – Nikolai Gógol 




Resenha Livro  # 158- “Tarás Bulba” – Nikolai Gógol – Editora 34 – Tradução Nivaldo dos Santos

Nikolai Gógol nasceu em 1809 na Ucrânia, foi escritor e dramaturgo, tendo produzido sua obra ao longo dos anos de 1830, 1840, até sua morte em 1852. Suas obras mais conhecidas do público brasileiro são provavelmente  “Almas Mortas” (1842) e sua peça “O Inspetor Geral” publicada em 1835. 

“Tarás Bulba” (1835) é uma novela épica que versa sobre os cavaleiros e guerreiros cossacos. É um livro que corresponde ao resultado de uma intensa pesquisa feita por Gógol em 1830 sobre a história, cultura e folclore de sua terra natal, passando por suas lendas, canções, formas de linguagem e de expressão daqueles personagens que surgiriam na história a partir dos séculos XV e XVI. Os cossacos fizeram guerra contra os “infiéis” tártaros (que eram muçulmanos) e contra os Poloneses (que seguiam o catolicismo), conquanto o povo cossaco (russo) disseminava o cristianismo ortodoxo. 

Ocorre que para além de um povo guerreiro que percorre as estepes russas em seus cavalos julgando glorioso morrer na guerra, existe no livro um aspecto humano e pitoresco tanto daquele povo como daquele ambiente histórico. Somos levados a conhecer um povo basicamente alegra e festivo, onde apenas se centraliza a figura do homem e em que desde cedo os jovens são motivados a pensar em termos de lutar e defender o sangue e a honra cossaca – “nunca abaixar a cabeça para ninguém”. Os Cossacos são corajosos, gostam de farrear, dançar e cantar, mas são desregrados e não raro se embriagam de aguardente até estarem todos endividados junto aos “usurários judeus” – o que não fazia muita diferença já que num determinado momento, pela força, podiam tomar dos comerciantes judeus tudo de volta. 

Tarás Bulba é um velho cossaco e pai de dois filhos que retornam de um seminário de Kiev. Contente em revê-los depois de anos, resolve desde logo fazer um banquete com muita bebida e no outro dia já são levados a uma fortaleza militar para iniciá-los na arte da guerra. E a descrição deste velho cossaco poderia dar conta do temperamento daquele povo:

“Bulba era extremamente teimoso. Era um daqueles caracteres que podiam surgir somente no difícil século XV num canto seminômade da Europa, quando toda a primitiva Rússia do sul, abandonada por seus príncipes, estava devastada, reduzida a cinzas pelas indomáveis incursões dos saqueadores mongóis; quando o homem, depois de perder a casa e o teto, ali tornou-se intrépido; quando em meio aos restos dos incêndios, à vista de vizinhos terríveis e da ameaça constante, ele se instalou e se acostumou a olhá-los diretamente nos olhos, tendo esquecido se no mundo havia algum perigo; quando o outrora pacífico espírito eslavo cobriu-se de uma chama  guerreira e apareceram os cossacos – um vasto e desregrado proceder da natureza russa – e quando todos os caminhos marginais, vaus, margens de rios e lugares apropriados foram ocupados pelos cossacos, cuja quantidade ninguém sabia dizer.”

Havia um código de disciplina moral dentro das tropas cossacas bastante rígido. Aquele que era pego furtando algo de alguém era amarrado num poste e ao lado deixava-se um punhal de madeira. Todos que passavam eram obrigados a acertar o ladrão até matá-lo. Já os assassinos eram tratados da seguinte forma: eram enterrados vivos junto do cadáver que assassinaram.  

Certamente, deve-se entender e associar estas normas com o contexto histórico. Tem-se portanto um uma situação mais geral marcada pela fragmentação política típica ainda do período da alta Idade Média: ausência de estados nacionais centralizados e presença marcante da igreja que dentro da novela implicaria no desdobramento final de Tarás Bulba com um acordo de paz entre os ortodoxos e católicos, acordo denunciado pelo protagonista que acertadamente anteviu a esperteza dos polacos por trás da falsa composição. 

O território Ucraniano de onde deu origem os Cossacos no séc. XV primeiramente fora dominado pela Lituânia e depois pela Polônia, havendo a guerra cossaca contra os polacos como tema central da novela. Haviam ainda os tártaros e os mongóis, ou seja uma miscelânea de povos diferentes. Daí uma fonte de explicação pelo gosto pela guerra. 

O que é interessante nesta novela é que o elemento trágico referente à morte (recorrente nas guerras) assume um novo enfoque. Aos olhos de um leitor do séc. XXI pode parecer uma história trágica já que são relatadas diversas guerras com a morte das principais personagens: mas a morte na cultura cossaca assume um sentido diverso do atual, e tal fato pode ser medido quando Taras (pai) observa Óstap (filho) sendo executado após ser capturado e preso pelos polacos. Foi uma morte bela e honrosa, desde que o filho teve todos os seus ossos quebrados e não emitiu um grito de dor. O mesmo pode ser dito da morte de outros cossacos que insistentemente diziam partir com orgulho, certamente por cair lutando e não de joelhos. Ademais, a novela envolve passagens que não coadunam com a ideia de um drama trágico, mas de uma história com raízes em folclóricas, utilização de termos e expressões típicas da época (inclusive interjeições) e uma forma literária leve que resvala em algumas passagens mesmo para o humor. 

No Brasil talvez o que tenhamos de mais próximos dos cossacos seriam os nossos cangaceiros que também foram guerreiros que lutaram sem medo de morrer.    

domingo, 8 de março de 2015

“A Década Neoliberal e a Crise dos Sindicatos no Brasil” – Adalberto Moreira Cardoso

“A Década Neoliberal e a Crise dos Sindicatos no Brasil” – Adalberto Moreira Cardoso 



Resenha Livro #157 - “A Década Neoliberal e a Crise dos Sindicatos no Brasil” – Adalberto Moreira Cardoso – Ed. Boitempo 

Adalberto Moreira Cardoso é doutor em sociologia pela USP, professor da IUPERJ e especialista em sociologia do trabalho. E foi no âmbito da Instituição carioca que pesquisou e produziu os artigos que compõe este trabalho. A pesquisa tem como fio condutor a relação entre o movimento sindical brasileiro e as políticas neoliberais que redesenharam tanto o mundo do trabalho quanto as perspectivas de organização, confiança e legitimidade que os trabalhadores dariam aos sindicatos a partir dos anos 1990. 

O que se observa na verdade é que a década neoliberal abre o momento de crise no movimento sindical brasileiro que vinha de uma importante ascensão política desde os anos finais da ditadura. 

Nos anos 1980, há a emergência da CUT que ganha densidade política e apelo junto aos trabalhadores diante da crise econômica e da insatisfação da população e dos trabalhadores diante dos sucessivos planos econômicos fracassados. A estratégia Cutista então de se posicionar como uma oposição irrestrita aos governos da ordem, além de outros elementos como a baixo índice de desemprego (que favorece o desenvolvimento das greves ao não intimidar os trabalhadores à luta) e as altas taxas de inflação associadas às políticas de contenção de salários foram alguns dos elementos constitutivos do protagonismo político do sindicato (centralmente da Central Única dos Trabalhadores)  no período anterior ao advento neoliberal. 

A partir da década de 1990, com as privatizações, as pressões do mercado mundial por mudanças nas empresas no sentido de maior competitividade exigindo corte de custos (leia-se diminuição de direitos laborais) que se culmina na desregulamentação do mercado de trabalho e flexibilização de leis trabalhistas, demissões e fechamentos de postos de trabalho diante do desemprego estrutural e do uso de novas tecnologias, estes e outros elementos passam a ser investigados pelo pesquisador em suas interfaces com o mundo do sindicato, com o direito sindical e com o direito do trabalho. Neste último caso, Cardoso demonstra como nosso modelo de pacificação estatal entre capital e trabalho se baseia no modelo legislado (e não no negociado partindo da Negociação Coletiva) constatando ademais que o “alto custo” celetista é resolvido pelos empregadores brasileiros simplesmente não adimplindo as suas obrigações legais para depois estabelecer acordos junto à Justiça do Trabalho – a racionalidade econômica do empresário leva-o a tal prática que lhe sai mais em custo do que o respeito literal à norma legal levando, a partir dos anos 1990, à uma explosão das demandes individuais na justiça do trabalho. 

O Plano Real e suas repercussões no mundo do trabalho como não poderia deixar de ser também seriam parte da crise sindical. A abertura comercial e financeira expôs o mercado de capitais e de bens à pressão competitiva internacional engendrando as pressões sobre os trabalhadores supracitadas. O resultado ademais foi o de aumento das terceirizações, sub contratação  e criação de mecanismos internos de solução de conflito fora da esfera jurisdicional. 

Dentro deste ambiente, os Sindicatos deixam de ser atores políticos e referências de negociação coletiva através de ações políticas em que a greve é a principal arma de defesa dos trabalhadores (modelo dos anos 1980) para atuar centralmente como um órgão assistencialista, inclusive oferecendo advogados aos seus filiados para litigarem em ações individuais do trabalho. Neste contexto neoliberal, portanto, pode-se falar numa despolitização dos sindicatos ou mesmo em sua crise. 

Em termos mais amplos esta crise se enquadra dentro do contexto da reestruturação industrial com suas mudanças no mercado de trabalho. Há se observar aqui a destruição de empregos formais, uma tendência que caminha pari passo com o enfraquecimento dos sindicatos. E talvez mais importante: “(...) os sindicatos e as centrais sindicais perderam uma parcela importante de sua capacidade de funcionar como galvanizadores, promotores ou representantes de identidades coletivas de caráter político”. 

Quanto a este último ponto, uma das chaves explicativas é investigada pelo sociólogo a partir de pesquisas quantitativas envolvendo o grau de confiabilidade dos trabalhadores junto aos sindicatos. Dentre as instituições democráticas como um todo, as pesquisas demonstram uma tendência de baixa confiabilidade. E o Sindicato não escapa com números de 27,13% de confiança para não filiados e 37,12 para filiados. A título de comparação, no universo de trabalhadores filiados, temos em grau de confiabilidade Igreja (60,49), Associação de Pais (58,16), Imprensa (34,89) e Polícia (20,67).

A conclusão da vasta e minuciosa pesquisa de Adalberto Moreira Cardoso é a de que a década neoliberal promoveu um período de letargia dentro do movimento sindical brasileiro. Sua análise tem como ponto de partida dados objetivos da economia, levantamentos estatísticos e de opinião da população e dos trabalhadores e números acerca de processos e pedido em varas trabalhistas de modo a buscar compreender com tais dados da realidade explicam a atual situação dos sindicatos hoje. 

Um outro momento seria o de avaliar as responsabilidades políticas dos dirigentes sindicais (em particular da CUT) que igualmente fizeram escolhas diante desta conjuntura e que têm supostamente sua parcela de responsabilidade para a atual situação de paralisia e defensiva do movimento sindical brasileiro. Ademais, a pesquisa de Cardoso pouco avança no que tange o denominado “sindicalismo de resultado” que iria mesmo se manifestar no governo posterior ao governo FHC como o exemplo da proposta de lei do Acordo Coletivo Especial pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC da CUT. Ou seja, a pesquisa, ainda que excelente, já parece estar desatualizada diante de alguns novos movimentos que ocorreram desde os governos do PT e que não repercutiram, como esperado, em maior combatividade dos sindicatos.  

Atualização - resenha escrita antes do Golpe de Estado perpetrado contra governos do PT e em momento em que graves reformas trabalhistas, incluindo o negociado sobre o legislado, terceirização irrestrita e retirada de demais direitos da CLT se vislumbram numa nova etapa, bastante diferente da conjuntura anterior.     

terça-feira, 3 de março de 2015

“O Duplo” – Fiódor Dostoiévski

“O Duplo” – Fiódor Dostoiévski 




Resenha Livro # 156– “O Duplo” – Fiódor Dostoiévski – Editora 34 – Tradução Paulo Bezerra

“O Duplo” é a segunda obra publicada pelo escritor russo F. D., logo após “Gente Pobre”, ambas datadas de 1846. Enquanto o livro de estreia de Dostoiévski encontrou uma ótima recepção dentro do público e da crítica, “O Duplo” provocaria o efeito inverso: foi um livro incompreendido em sua época, muito provavelmente em função do experimentalismo formal por um lado (foge do realismo literário e segue a trilha de um enredo fantástico) e da temática abordada (o problema da loucura, os devaneios da consciência humana, a relação entre a perda do controle da consciência e uma sociedade fortemente marcada pela exclusão e pelos signos de distinção e nobreza). 

Certamente, “O Duplo” é uma obra à frente de seu tempo sendo possível observar a figura do conselheiro Golyádkin, acossado pela corporificação de seu duplo, o senhor Golyádkin segundo, a expressão de uma alma atormentada pela culpa de sua condição medíocre, esmagada pela solidão e pela pobreza, na iminência da loucura – o que faria entre outros com que posteriormente  Freud se tornasse um grande admirador do escritor russo. 

E, ademais, vemos em Golyádkin e em “O Duplo” o prenuncio de algumas obras da maturidade de Dostoiévski em que seu esforço de escancarar almas humanas atormentadas vêm à tona, como em “Crime e Castigo” e seu personagem Raskólnikov e “Memórias do Subsolo”. 

Mas quem é Golyádkin? Yakóv Pietróvitch Golyádkin é conselheiro titular, um amanuense, mistura de escrivão e copista, pertencente à nona classe na escala burocrática, portanto, sem nenhuma possibilidade de ascensão social. Mal ganha para se manter, passa por grandes privações, mas tem um criado, que por sinal o trata mal e sempre com deboche. Vive num grande isolamento e a solidão é o signo maior da sua existência, de forma que nos poucos momentos em que aparentemente consegue romper o cerco das inimizades e ser aceito em um ambiente social, chega a se comover com lágrimas. Mas a sua situação desde o início do romance está predestinada: quando se dirige pela primeira vez ao médico, este lhe recomenda convívio social e não ser “inimigo da garrafa”. E entre o cômico e o trágico, o protagonista aluga uma carruagem, compra roupas caras e se dirige à festa de aniversário da filha de Olsufievna Ivánovitch, conselheiro de estado. Já é humilhado quando é  barrado na porta do jantar. Ainda assim entra, e após uma pisadela num vestido de uma convidada e pensando ser oportuno tirar a filha do alto dignatário para dançar, é expulso do salão. 

Já antes do aparecimento do duplo, portanto, Golyádkin surge como um sujeito por um lado desejoso de ser parte da sociedade e elevar-se socialmente, mostrar-se nobre e enfrentar as ridicularizações que o deixam encolerizado.  O surgimento do “Duplo” marca uma clivagem na história em que o “Golyádkin Segundo” paulatinamente irá conseguir conquistar e concretizar todos os desejos de aceitação de Golyádkin original. E o pior: revelaria ser o pior inimigo do protagonista.

“Ora o senhor Golyádkin sonhava que estava no meio de um grupo maravilhoso, conhecido por sua espirituosidade e pelo tom nobre usado por todos os seus integrantes; que o senhor Golyádkin, por sua vez, se distinguia nos quesitos amabilidade e espiritualidade; que todos gostavam dele, até alguns de seus inimigos que ali se encontravam tinham passado a gostar dele, o que era muito agradável para o senhor Golyádkin; que todos lhe davam prioridade e que, enfim, o próprio senhor Golyádkin escutava com prazer o elogio que o anfitrião lhe fazia para um dos convidados que levara para um lado..., e de repente, sem quê, nem para quê, tornava a aparecer, na feição do senhor Golyádkin segundo, aquela pessoa conhecida por suas más intenções e motivações atrozes, e ato contínuo, imediatamente, num piscar de olhos o senhor Golyádkin segundo destruía com seu simples aparecimento todo o triunfo e toda a glória do senhor Golyádkin primeiro, obnubilava com sua presença o senhor Golyádkin primeiro, pisava na lama o senhor Golyádkin primeiro e, por fim, demonstrava claramente que Golyádkin primeiro era ao mesmo tempo  autêntico e absolutamente inautêntico, falsificado, que ele é que era o autêntico e, por último, Golyádkin primeiro não era nada do que aparentava, porém isso mais aquilo, e, por conseguinte, não podia nem tinha o direito de pertencer a uma sociedade de pessoas bem intencionadas e de bom tom”.

É possível especular e dar distintas respostas sobre o que significa este “Duplo”. Como a referência em Golyádkin segundo é a de um “irmão gêmeo”, idêntico, tanto na roupa quanto no nome, pode-se pensar que o duplo é a projeção do protagonista num espelho, com a condição de que o seu reflexo exprime os seus contrários. Golyádkin primeiro é chamado de “herói” enquanto o segundo seria o vilão que na vida prática concretiza tudo aquilo que o primeiro fracassa. Numa perspectiva mais psicológica, tratar-se-ia de uma projeção relacionada aos desejos de ascensão e aceitação social de Golyádkin cujo triste fim o levará ao manicômio. O que é certo é que todas estas possíveis interpretações e as linhas de investigação do artista Dostoiéviski parecem transbordar a literatura e ir para áreas mesmo da medicina/psiquiatria, além é claro da história, das relações sociais da Rússia com sua nobreza e burocracia oficial, etc. Temos aqui um poderoso retrato da sociedade e um raio x de almas humanas atormentadas, a combinação mas essencial da obra de Dostoiéviski.