quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

“Rúdin” – Ivan Turguêniev

“Rúdin” – Ivan Turguêniev



Resenha Livro #151 - “Rúdin” – Ivan Turguêniev – Editora 34 – Tradução Fátima Bianchi

Ivan Turguêniev é junto com Leon Tolstoi e F. Dostoiéviski um dos principais expoentes da literatura russa do século XIX. É autor de vasta obra de teatro, poesia, contos e romances, tendo sido o primeiro dentre os três a ser consagrado no Ocidente.

Nascido em 28 de Outubro de 1818, no distrito de Oriol na Rússia, Turguêniev veio de família aristocrata: até os nove anos morou na propriedade rural da família e em seguida estudou em Moscou e São Petersburgo. Em 1838 mudou-se para Alemanha a fim de continuar os estudos em nível superior. Em Berlin fez filosofia, letras clássicas e história; participou de círculos estudantis e conheceu pessoalmente o agitador rebelde Bakunin, que serviria de inspiração para compor o personagem principal de seu primeiro romance.

Antes porém de Rúdin, publicou alguns poemas e alguns contos que seriam reunidos sob a denominação de “Memórias de um Caçador” (1852), já encontrando ressonância no público ao discutir o problema do homem do campo diante da servidão e a libertação dos servos, então em pauta. “Rúdin” foi publicado entre janeiro e fevereiro de 1856 na revista O Contemporâneo. O espetacular final do protagonista que desde uma barricada na França de 1848 morre empunhando uma bandeira vermelha, como uma espécie de Dom Quixote, num ato heroico e inútil de resistência e bravura, seria acrescentado alguns anos depois, provavelmente devido ao relaxamento da censura após a morte de Nicolau I.

O romance nos leva num primeiro momento à casa de campo de Dária Mikháilovna, uma viúva aristocrata de Moscou que anualmente dirige-se ao campo junto à sua filha Nathalia para aproveitar o verão: naqueles dias, a proprietária cuida de seu sítio pessoalmente e procura se ocupar convidando vizinhos e conhecidos para jantares e distrações, fazendo-nos conhecer diferentes tipos e personalidades. Pigassov é um dos frequentadores da casa de Dária Mikháilovna e diverte-a com o seu mal humor diante da vida e o seu ressentimento diante das mulheres.

“- Eu lhe asseguro, Aleksandra Pavlovna – proferiu lentamente Pigássov -, que nada pode ser pior e mais ofensivo do que a felicidade que chega demasiado tarde. Prazer, de todo modo, não pode proporcionar, e em compensação nos priva de um direito, do direito mais precioso – o de xingar e amaldiçoar o destino. Sim, senhora, a felicidade tardia é uma coisa amarga e ofensiva”.

Este personagem assumiria um papel importante como uma espécie de contraponto ao protagonista, Rúdin.

Rúdin surge naquele pacato sítio substituindo um Barão amigo da viúva que esteve impossibilitado de visitá-la – seu substituto num primeiro momento desperta a atenção e curiosidade dos ouvintes com sua eloquência e pleno domínio das palavras. Todos menos é claro Pigássov, um homem já velho e amargurado diante de fracassos pregressos e convencido de que “a palavra” é inútil, sempre vendo Rúdin como presunçoso – talvez por inveja, mas muito mais provavelmente em função do seu próprio passado que envolve o abandono dos estudos por fracasso pessoal e a desilusão radical diante do mundo das letras e sua utilidade.

Rúdin representa um setor da nobreza russa que conformaria aquilo a que se chama de “intelligentsia” e que em certa maneira remete ao próprio Turguêniev, uma juventude que iria estudar nas universidades Alemãs e Francesas, tinham contatos com ideias de reformadores sociais e filósofos como Kant, Hegel e Feuerbach e, ao retornar à Rússia czarista, dominada ainda pelo regime feudal no campo e com a esmagadora maioria da população vivendo na penúria e no analfabetismo, tornar-se-iam deslocados, sem conseguir de fato traduzir as ideias, ou as palavras, em atos.

Este é o drama do homem cosmopolita, como Rúdin, mesmo que se reconheça as suas boas intenções:

“- Está ouvindo – continuou Liéjnev, dirigindo-se a Pigássov – De que outra prova precisa? O senhor ataca a filosofia; ao falar dela, não encontra palavras suficientemente desdenhosas. Eu mesmo não lhe tenho grande apreço e mal consigo entendê-la: mas não é da filosofia que advêm nossos principais infortúnios! Os delírios e os meandros filosóficos nunca se enraizarão no russo: para isso ele tem muito bom senso; mas não podemos permitir que toda aspiração honesta para a verdade e a consciência seja atacada em nome da filosofia. A desgraça de Rúdin é que ele não conhece a Rússia, e essa é realmente uma grande desgraça. A Rússia pode prescindir de cada um de nós, mas nenhum de nós pode prescindir dela.”

Este deslocamento entre esta “intelligentsia” que importa filosofias ocidentais, conversa em francês dentro de pequenos círculos aristocráticos e apenas consegue “dialogar” com gente letrada, permanecendo completamente ininteligível para o mujique, sua mulher e as crianças – como atesta a tentativa frustrada de Rúdin em dar aulas de Literatura numa escola secundária – diz respeito à esta distância entre “a palavra” e à realidade, implicando na paralisia deste setor social – ao menos dentro do contexto histórico observado por Turguêniev, a Rússia de 1830-40.

Como se sabe, esta mesma  “intelligentsia” ganharia volume e expressão política ao longo do século XIX sendo a “ida ao povo” uma de suas saídas políticas desde os grupos populistas de fins do séc. XIX – com o acréscimo de que desta vez tal “intelligentsia” não se reduziria apenas a filhos da aristocracia.

De qualquer forma, os romances de Turgueniêv, Tolstoi e Dostoiéviski vão como refletindo o que foi a sociedade russa e como se deu a sua evolução durante o séc. XIX o que, dentre vários tópicos a serem analisados, oferece uma chave explicativa fundamental para se entender a razão pela qual a primeira revolução socialista do mundo estourou naquele local e naquela sociedade.  Pensar em Lênin em 1917 é certamente pensar num Rúdin em 1830.


sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

“Carlos Fonseca e a Revolução Nicaraguense” – Matilde Zimmermann


“Carlos Fonseca e a Revolução Nicaraguense” – Matilde Zimmermann 



Resenha Livro #150 - “Carlos Fonseca e a Revolução Nicaraguense” – Matilde Zimmermann – Ed. Expressão Popular 

Carlos Fonseca foi fundador, ideólogo e principal liderança política da "Frente Sandinista de Libertação Nacional", força política que dirigiu a Revolução Nicaraguense. Trata-se de evento que perdurou os anos 1970 e teve seu ápice entre os anos 1978-1979, culminando na tomada do poder político com a queda do ditador Somoza em 19 de Julho de 1979.

Alguns esclarecimentos preliminares são necessários. Augusto César Sandino a que a FSLN faz referência em seu nome foi o equivalente a José Martí do Movimento 26 de Julho da Revolução Cubana: foi um revolucionário nacionalista da Nicarágua que combateu a ocupação norte-americana na década de 1930 naquele país  sendo apropriado pelo movimento como uma referência anti-imperialista, nacionalista  e revolucionária.

Carlos Fonseca em seu exílio em Cuba seria responsável por resgatar este personagem histórico e incorporá-lo ao patrimônio dos lutadores, em especial como forma de se diferenciar e delimitar das outras oposições burguesas ao ditador Somoza, que se apoiavam eventualmente no imperialismo.

“Em 1927, Augusto César Sandino, um dos generais liberais, que combatiam o presidente imposto, negou-se a assinar uma rendição mediada pelos Estados Unidos e se pôs à frente de uma guerra de seis anos contra os marines norte-americanos. Os esforços do exército camponês de Sandino, somados  à crescente oposição à intervenção dos Estados Unidos, levou, em 1933, à retirada das tropas norte-americanas. Sandino foi assassinado em 1934 por ordem de Anastasio Somoza García, chefe de uma nova força militar, treinada pelos Estados Unidos: a Guarda Nacional. Nos anos 1960 e 1970, Carlos Fonseca deu uma nova vida ao exemplo de Sandino para inspirar uma nova geração a combater o governo e a Guarda Nacional, encabeçados pelos filhos de Anastasio Somoza”

E efetivamente nos primeiros anos de atividade guerrilheira, Fonseca buscou identificar nas montanhas sobreviventes ou filhos de combatentes do tempo de Sandino para a luta contra o ditador.

A Nicarágua é um pequeno país na América Central, fazendo divisa ao norte com Honduras e ao Sul com a Costa Rica. O poder político, após a ocupação norte-americana, era fatiado por grandes família endinheiradas organizadas no Partido Liberal (da família Somoza) e no Partido Conservador. Sua economia divide-se entre a produção de gado e especialmente a partir de meados do séc. XX na produção de algodão.

Fonseca iniciou sua militância quando estudante no  PSN (Partido Socialista Nacional), que equivalia ao Partido Comunista. Isso foi na década de 1950, quando tinha apenas 14 anos  e estudava no Instituto Nacional do Norte em Matagalpa.

Carlos Fonsceca viera de uma família humilde, sua mãe era uma costureira e teve Carlos como filho ilegítimo de Fausto Amador, homem extremamente rico e apoiador de Somoza.

O Partido Comunista logo desencantou o inquieto Carlos, já que tinha como política aliar-se aos partidos burgueses da oposição e estar contra a luta armada revolucionária: condenavam a tradição advinda de Sandino que ainda estava viva e focava sua intervenção na ação eleitoral e sindical.  Posteriormente, ficaria mais clara as diferenças entre Carlos Fonseca e o PSN:

“Os textos da maturidade política de Fonseca são extremamente críticos em relação ao PSN, partido que ele condena como colaboracionista de classe e burocrático, incapaz de encabeçar uma revolução na Nicarágua e relutante em fazê-lo. Chamava o PSN de “browderista” em referência ao secretário geral do CPUSA ( Partido Comunista dos EUA) Earl Browder, principal defensor no hemisfério Ocidental da participação dos comunistas em “frentes populares” ao lado das forças burguesas. Uma vez que Fonseca decidiu que o PSN não era genuinamente marxista, teve pouca paciência com os trabalhadores que simpatizavam com o partido”.

E o que não deixa de ser interessante é que quando a conjuntura tornou-se efetivamente revolucionária a partir de 1977, 78 e 79, enquanto os sandinistas e seu FSLN tornavam-se uma força política de massas, o PSN junto aos demais partidos burgueses ficavam em total isolamento, de modo a surgir um embate ou polarização clara entre Guarda Nacional/Somoza e FSLN/sandinistas e um vazio no centro político.

O ponto de saturação que levaria ao rompimento final junto ao partido comunista, bem como à total adesão ao método da luta de guerrilhas dá-se a partir de 1959 com a vitória da Revolução Cubana. A vitória do movimento 26 de Julho convence muitos daquela geração acerca da viabilidade de uma tática mais radical do que a via eleitoral e sindical proposta pelo PSN. É também neste contexto que Fonseca passa a estudar com mais atenção a história da Nicarágua e de Sandino.

Fonseca rompe com o PSN em 1961 e em 1963 seria criado a FSLN, primeiramente denominada FLN, uma referência às lutas de libertação nacional dos países da África.

Fonseca cumpriu um papel importante como ideólogo político daquela organização. Foi o redator do seu programa histórico que serviria de linha política mesmo após sua morte em combate em 1966.

O programa continha 13 reivindicações que envolviam a derrubada da ditadura, uma reforma agrária radical, expropriação das propriedades da família Somoza – todos foram efetivamente cumpridos ao longo dos anos 1980, talvez só se observando a reforma agrária não tão radical quanto planejada no plano original. O programa também previa nacionalização dos bancos, bem como do comércio exterior e da exploração dos recursos naturais e abolição da Guarda Nacional substituída pelo exército popular e patriótico. Defendia legislação trabalhista e programas sociais e de educação.

Um dado importante é que Fonseca não assistiu à vitória de seu movimento político: na verdade só pôde tomar parte da luta durante todo um período de refluxo das mobilizações e não assistiu ao sensacional crescimento das manifestações anti Somoza determinada pela deterioração e crise política do regime a partir de 1977, com o término do estado de sítio e a série de manifestações espontâneas, no campo e na cidade, por todo o país. O sério terremoto que abalou a capital Manágua alguns anos antes e as denúncias de mal uso do dinheiro destinado à ajuda humanitária já desgastara bastante o governo.

Todavia, este levante popular pegou mesmo os dirigentes sandinistas de surpresa e veio em sentido contrário a algumas expectativas determinadas pelo programa: os guerrilheiros partiam da organização das montanhas (campo) quando o levante teve um caráter eminentemente urbano, com participação massiva da classe operária, com barricadas nas ruas, bombas caseiras e coquetéis molotov, pichações de muro, greves, ocupações de prédios, além de participação nas lutas em armas de estudantes e mulheres. O que movia em grande parte a população era o ódio contra o ditador que se servia de métodos espúrios de repressão, atacando os bairros pobres indiscriminadamente atrás de guerrilheiros, lançando bombas aéreas e matando milhares de inocentes – o ódio contra Somoza encontrou expressão não nos velhos partidos conciliadores de oposição mas na única organização disposta a combatê-lo em armas. A população buscava a FSLN enquanto antes a FSLN buscava (sem sucesso) a população. A organização em pouco tempo cresceu num ritimo exponencial, até derrotar o ditador, a Guarda Nacional, tomar uma a uma as cidades e dirigir vitoriosamente a revolução.

Muitos outros elementos são destacados e dignos de reflexão nesta biografia de Zimmermann. O papel das mulheres e dos índios e negros na luta revolucionária, a relação entre o internacionalismo dos partidos comunistas e o internacionalismo dos movimentos guerrilheiros latino-americanos, o isolamento total do movimento guerrilheiro diante do movimento camponês e o triunfo da revolução na cidade, a relação com o sandinismo e a dimensão anti-imperialista daquela insurreição, as três frações políticas internas que dividiram a FSLN em meados dos anos 1970: além destes pontos, outros não abordados pela autora, como o governo do FSNL a partir de 1980 e a adaptação de suas direções ao poder num movimento semelhante ao Partido dos Trabalhadores aqui no Brasil, incluindo o enriquecimento de lideranças e culminando na derrota eleitoral em 1990.

A revolução nicaraguense foi a segunda e última experiência revolucionária popular vitoriosa na América Latina – seguida após o movimento de Che e de Fidel Castro. É necessário um estudo mais detalhado deste movimento e em particular daquele personagem marcado pelo ascetismo - não bebia nem fumava e reclamava uma conduta ponderada dos militantes revolucionários, inclusive no trato sexual. Carlos Fonseca, hoje ainda virtualmente desconhecido no Brasil. Com seus 1.80 de altura e sua vontade incansável de fazer triunfar a revolução, um revolucionário que, como Zapata, não bebia, não fumava e que como “Che”, acreditava que a luta guerrilheira deveria forjar um novo homem, mais solidário e fraterno. Não é só um herói da nação nicaraguense mas de toda América Latina em sua luta por emancipação .  

domingo, 18 de janeiro de 2015

“Doidinho” – José Lins do Rego

“Doidinho” – José Lins do Rego

Resenha Livro 149 – “Doidinho” – José Lins do Rego – Editora Nova Fronteira 



“Doidinho” (1933) é o segundo livro escrito por José Lins do Rego e corresponde a uma sequência da vida do personagem Carlos de Melo desde “Menino de Engenho” (1932) (Ver resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/12/menino-de-engenho-jose-lins-do-rego.html). 
 
Enquanto o primeiro romance aborda a infância do personagem vivida no engenho de seu avô, o coronel José Paulino, em “Doidinho” o cenário passa a ser o colégio interno do severo do mestre Seu Maciel, localizado na cidade de Itabaiana. 


Existe elementos de mudança e de continuidade entre os dois romances sendo certamente recomendável a leitura de ambos, dentro da sequência cronológica. No que se refere à continuidade, ainda temos uma narrativa em primeira pessoa sempre buscando resgatar as percepções de mundo e as sensações experimentadas pelo menino, das lições e dos castigos na escola, dos contatos com a catequese, o sentimento de culpa religioso e o medo da morte, a experimentação sexual, o amor e a amizade. 


E os elementos que diferenciam os romances dizem respeito essencialmente ao local onde se passa a história: desde o colégio interno, localizado na cidade, longe do engenho e da família, junto a cerca de 70 meninos da Paraíba e Recife, de diversas idades, se relacionando através de brincadeiras nem sempre desprovidas de malícia e perversidade infantis: as intervenções envolvem questões pessoais que oprimem e humilham, como a mãe de um garoto que é “mulher da vida”, criando-se uma situação que engendra a saído do aluno do colégio ou o próprio Carlos (“Doidinho”), cuja tragédia familiar envolvendo o pai e mãe, ambos mortos, não o poupam de brincadeiras sinistras acerca de sua família. 


Esta sensação de que o mundo das crianças dentro do colégio remete a uma espécie de estado de natureza hobbesiano, com pouco lugar à fraternidade e muito espaço ao deboche e às delações que levam aos castigos através do bolo de seu Maciel remetem bastante este romance de José Lins do Rego ao “Ateneu” de Raul Pompéia ( Ver resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/10/o-ateneu-raul-pompeia.html) 


Os poucos lances de solidariedade dentro do internato seriam cultivados através da amizade do narrador-protagonista com seu amigo “Coruja”, e ainda assim temporariamente, já que o seu colega seria posteriormente recrutado como uma espécie de ajudante do mestre, ficando responsável por fazer relatórios das arruaças, ditando nomes, para posterior castigo. 


E se observa como a metodologia da punição física, associada à educação religiosa e ao treinamento militar dizem respeito a um modelo de educação autoritário, cuja figura central do Mestre Maciel está lá para meter medo nas crianças: o que, diga-se, não impede de haver violações às normas. Da mais grave de todas, certamente foi a que envolveu Pão Duro e Clóvis, um caso de pederastia que fez estalar os bolos de muitos dedos e quase custou a expulsão dos discentes. De outro lado, tanto da descoberta desta infração, quanto de outros momentos críticos como quando um aluno mais velho não se submeteu ao diretor, o narrador chama atenção como os fatos adversos afetavam pessoalmente o velho Maciel, quase como um pai que, efetivamente, ora se desapontava, ora se orgulhava de seus alunos, frutos de sua intervenção como mestre.  Tinha uma postura autoritária e buscava meter medo nos alunos para garantir sua autoridade apenas durante o período letivo já que, durante as férias, o pequeno Carlos observou como o diretor transformava-se em homem pacífico. 


A escola ensinava na mesma sala alunos de diversas séries: havia os internos e os externos. Tomavam banho apenas duas vezes por semana de modo que era comum os estudantes  estarem com piolhos nos cabelos. A comida feita pela negra Paula era a base de carne seca e bolacha: uma ração que deixava as crianças magras. Eventualmente tomavam banho de rio. Em um dado momento puderam conhecer o cinema, naquela época, com filmes mudos, sendo a sonoplastia executada num piano. Desde a igreja, os pequenos aprendiam a ter medo do inferno: 


“Não poderíeis jamais avaliar o que sejam os sofrimentos do inferno. Lembrai-vos da maior dor que possa afligir um homem na terra, e esta dor se prolongando por séculos e séculos. Quando vos dói um dente, a vontade que vos chega é a da extração imediata, de arrancá-lo para vosso alívio. Para a dor que vos atormenta tendes logo o recurso dos remédios. Quantos não chegam à alucinação com os seus padecimentos, quantos não se beiram do suicídio! Avaliai agora uma dor sem remédio e sem jeito. Um dor que é de todo o vosso corpo, da cabeça aos pés, de todas as vossas fibras e de todos os vossos nervos; a vossa carne ardendo, derretendo-se nas chamas de um fogo mais quente que o das caldeiras, o fogo soprado pelos demônios”. (P. 81)


Quando o narrador descreve seu passado, busca identificar a sua percepção da realidade enquanto criança sem, contudo, deixar de oferecer uma descrição bastante objetiva daquele mundo. Este realismo na narrativa é típico dos escritores do modernismo em sua segunda fase: seria uma característica dos romances daquela geração de escritores regionalistas como Graciliano Ramos, Rachel de Queiróz e Amado Fontes, se relacionando tal objetividade com um esforço de reflexão acerca de problemas sociais como a seca, a migração, o trabalhador rural e a desigualdade social (não oculta mesmo aos olhos de Carlinhos em suas férias no Engenho). 


O que os escritores da 2ª Geração do Modernismo ganham em relação aos pioneiros de 1922 é uma maior consciência social, seja por meio da crítica, seja descrevendo um Brasil ainda não modernizado, o que está presente naquele engenho do avô do protagonista, um coronel que ainda tem em suas terras as relações sociais ditadas pelo mandonismo centrado na sua pessoa e mesmo as relações econômicas aparentemente feudais, com trabalhadores posseiros se submetendo ao coronel em troca de terra para plantar e proteção econômica para os tempos difíceis.  


“Doidinho” termina numa passagem de suspense com uma cena de fuga do aluno do colégio diante da inaptidão de Carlinhos em participar do desfile de 7 de setembro: o menino não tomava jeito nos treinamentos e foi rejeitado (o único), sentido -se humilhado e buscando, com a fuga, atenuar seu sentimento de culpa e tristeza. Ao que tudo indica, o escritor deixou em suspense uma história que continuaria a ser contada depois. 


O denominado “Ciclo da Cana de Açúcar” continuaria com os romances: Bangüe (1934), O Moleque Ricardo (1935) e Usina (1936) 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

“A Morte de Ivan Ilich” – Lev Tolstói

“A Morte de Ivan Ilich” – Lev Tolstói


Resenha Livro # 148 - “A Morte de Ivan Ilich” – Lev Tolstói – Editora 34 – Tradução Boris Schnaiderman 
O escritor russo Lev Tolstói costuma ser lembrado por duas razões: em primeiro lugar e principalmente como escritor de romances consagrados mundialmente como "Guerra e Paz" (1869) e "Ana Karerina" (1877) e em segundo lugar como reformador social, teórico e crítico da nascente sociedade burguesa russa de fins do século XIX, buscando, desde sua propriedade rural em Iásnaia-Poliana próximo ao distrito de Tula, defender uma sociedade igualitarista, pacifista e camponesa – posteriormente esta linha de pensamento ganharia maior evidência política na Rússia com o grupo dos Populistas, dos quais o irmão do líder revolucionário V. I. Lênin tomaria parte. 

Estas duas dimensões presentes na trajetória de Lev Tolstói, o artista e o doutrinador, vão dialogar e estar cada vez mais presentes dentro de um só projeto: inicialmente, o escritor inicia sua trajetória como um estudante desregrado e boêmio da Universidade de Kazan, onde se matricula em 1844. Lev veio de família da alta aristocracia russa e após anos de dispersão nos estudos, abandona a universidade em 1847, persistindo até 1851 a sua vida degenerada jogando cartas, bebendo e caçando, em Tula e São Petersburgo. 

Em 1851, Tolstói adentra o exército como oficial junto ao irmão Nikolai e desde o Caucásio irá escrever suas primeiras obras: Infância (1852) e Adolescência (1853). Desiludido com a carreira militar, demite-se do exército russo em 1856 e percorre em viagem diversos países do ocidente, podendo observar as diferenças decorrentes da modernização capitalista baseada na revolução industrial na Europa ocidental, enquanto a Rússia ainda procedia à libertação dos servos. 

Em 1860, o escritor instala-se definitivamente em Iásnaia Poliana onde ficaria até o fim da vida escrevendo romances, novelas e contos e gradualmente desenvolvendo certo senso crítico que o levaria a romper com a igreja ortodoxa, estar contra a grande propriedade rural, os efeitos deletérios da civilização capitalista burguesa e a insensibilidade da classe dominante russa. Tal viragem política em Tostói dá-se a partir de "Confissão" (1882), "Crítica da teologia ortodoxa" e "Que devemos fazer?"

A novela “A Morte de Ivan Ilich” (1886) já é deste período em que vislumbramos um encontro pleno entre o artista e o reformador social: sem rebaixar a arte a um mero meio de panfletagem ideológica, consegue o artista criar uma das mais belas peças sobre uma questão universal (a morte), garantindo ainda o seu ponto de vista crítico sobre o problema da modernização capitalista  na Rússia e o elogio da autenticidade do camponês na figura do criado Guerássim. 

Ivan Ilich é um magistrado, pertencente ao alto escalão burocrático do Estado e chefe de uma família aristocrata russa do século XIX. Viveu uma vida estritamente dentro dos parâmetros e de tudo o que se poderia esperar de alguém de sua origem social abastarda: filho de uma família nobre, estudou Direito e, formado, iniciou sua carreira numa distante província, onde conheceria sua esposa. O casamento então lhe surgiria não como produto do amor, mas como algo prático e conveniente, como de resto quase tudo o que ocorria em sua vida: o trabalho de magistrado, as relações familiares e a convivência com os amigos através do jogo de cartas são os três elementos constitutivos da vida de Ivan Ilich até o percebimento de uma dor sutil na região do rim combinado com uma sensação de algo podre no hálito, o prenúncio da doença e da morte. 

Seria através dos dias em que a dor irá se avolumando e, com o tempo, com uma percepção que vai se transformando em certeza de que aquela dor contínua e cada vez mais aguda não poderá ser contida pelos médicos, ou seja, diante da evidência da morte, que Ivan Ilich passa a perceber como sua vida esteve o tempo todo eivada pela mentira, como as convenções sociais de seu cargo ou das obrigações protocolares de um casamento sem amor rodeavam-no agora, irritavam-no acima de tudo. As sensações dominantes que antecedem a morte são a de medo e ódio diante do não entendimento do sentido da dor conquanto algo se esclarece na mente do personagem: a mentira da vida adulta e sua infelicidade.

“E quanto mais longe da infância, quanto mais perto do presente, tanto mais insignificantes e duvidosas eram as alegrias. A começar pela Faculdade de Direito. Ali ainda havia algo verdadeiramente bom: havia a alegria, a amizade, as esperanças. Mas nos últimos anos estes momentos bons eram mais raros. Depois, no tempo do seu primeiro emprego, junto ao governador, surgiam de novo momentos bons: eram as recordações do amor a uma mulher. A seguir, tudo isso se baralhava, e sobravam ainda menos coisas boas. Adiante, ainda menos, e quanto mais avançava, mais elas minguavam”. 

Como dizíamos, aqui temos já um Tostói que defende uma arte engajada e nesta pequena novela a crítica social ganha maior evidência na indiferença sentimental dos amigos e mesmo da mulher e da filha mais velha pelos destinos de Ivan Ilich. 

Aos amigos, a vida ou morte de Ivan Ilich apenas interessa para se observar quem irá preencher o seu cargo dentro da burocracia estatal. À mulher, desde uma cena no enterro do marido, o leitor é convencido de que uma de suas grandes ou principais preocupações é com questões pecuniárias, o pagamento pelo estado de uma volumosa pensão. A filha parece estar tomada de interesse exclusivo pelo casamento de forma que apenas o filho mais jovem de Ivan Ilich derrama lágrimas verdadeiras a todo instante, talvez em função de sua pouca idade. 

Há um certo pessimismo derivado de um ponto de vista tolstoiano que de alguma forma remete indiretamente à tese de Rousseau segundo a qual o homem nasce puro, mas a sociedade o aniquila moralmente. Esta perspectiva é também parte da orientação política tolstoiana ancorada na crítica mordaz da modernização capitalista russa e na defesa de uma “volta às raízes” em que o personagem Guerássim torna-se o contraponto à desfaçatez e falta de autenticidade das elites políticas daquele país. Trata-se do criado de Ivan Ilich e o único que oferece algum conforto ao patrão:

“A partir de então, Ivan Ilich chamava às vezes Guerássim, fazendo-o segurar os seus pés sobre os ombros, e gostava de conversar com ele. Guerássim fazia isto com leveza, de bom grado, com simplicidade e uma bondade que deixava Ivan Ilich comovido. A saúde, a força, a vitalidade de todas as demais pessoas ofendiam Ivan Ilich; somente a força e vitalidade de Guerássim não o entristeciam e sim acalmavam-no”.

O sentimento de dor física ao final combina-se com uma sensação de culpa ou dor moral em Ivan Ilich, constatando a falta de sentidos e de verdade ao seu redor, num limite máximo nos últimos 3 dias de vida. Depois há uma espécie de liberação e mesmo re-conciliação ou perdão de Ivan Ilich junto aos seus, quando a própria morte se exaure. Dizem os biógrafos que a ideia da morte atormentava Tosltói desde muitos anos antes da redação desta novela e de fato ela está marcante em vários outros livros. 

“A Morte de Ivan Ilich” é talvez a mais bem escrita história em prosa sobre este tema.  

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

“Memórias do Subsolo” – Fiódor Dostoiévski

“Memórias do Subsolo” – Fiódor Dostoiévski


Resenha livro 147 - “Memórias do Subsolo” – Fiódor Dostoiévski – Ed. 34 – Tradução Boris Schnaiderman

Este romance é um dos mais intrigantes e, segundo a crítica, dos mas “dostoiéviskianos” daquele autor russo expoente da literatura universal do séc. XIX. Em outras palavras, nestas “Memórias do Subsolo” acumulam-se a sua densidade narrativa, o aprofundamento até o interior do sub-consciente de personagens, cortes abruptos no enredo e a temática filosófica, com polêmicas junto às correntes de pensamento da época.

Inicialmente o leitor parte desde a mente atormentada de um narrador aos seus 40 anos de idade (primeira parte do livro, “O Subsolo”) quando através de um monólogo nos é dado a conhecer menos a sua história de vida e mais a sua visão social e filosófica de mundo; e “A Propósito da Neve Molhada”, segunda parte do livro, quando este mesmo personagem atormentado, que nutre um infinito ódio por si próprio e ainda, paradoxalmente, se sente superior ao resto do mundo, relata alguns eventos que vão do trágico ao patético, como seu encontro com ex colegas de colégio que o odeiam até o seu posterior conhecimento de Liza, a prostituta.

E quem é este autor que nos fala sempre desde baixo, desde o subsolo?

“Sou um homem doente...Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina.(Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso). Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva.”.

O memorialista diz ter uma aparência física horripilante: é extremamente feio e gostaria ao menos de ter um “ar de inteligente”, mas sabe intimamente que nem isso é possível. É pobre, não possui recursos e tem vergonha da sua pobreza. Tem um criado que odeia e por quem é humilhado. Como funcionário público que ganha um salário miserável, vivendo na penúria, é um personagem que remete a Luís de “Angústia”, de Graciliano Ramos, tanto nas coincidências dos trejeitos, quanto no sofrimento diante do pauperismo ou mesmo nos desencontros com a mulher.

A primeira parte de "Memórias do Subsolo" veio à público em 1864 e aqui já se percebe uma constante na narrativa: uma certa inquietação da personagem frente aos horizontes intelectuais de seu tempo. A ironia com que trata a medicina na passagem acima citada remete em linhas gerais à uma espécie de crítica da razão prática que iria encontrar seu endosso na filosofia irracionalista de Friederich Nietzche: este, ao ler esta obra de Dostoiéviski, disse a um amigo numa missiva: “A voz do sangue (como denomina-lo de outro modo?) fez-se ouvir de imediato e minha alegria não teve limites”.

Percebe-se como esta crítica do racionalismo filosófico – que encontraria sua expressão típica no positivismo – surge de forma pioneira e de certa maneira já sublinhando os limites da perspectiva formal e linear de ver o mundo em personagens que fazem o contraponto ao narrador, como seus ex-colegas de escola, especificamente ZVIERKOV. Este é o exato contrário do memorialista, qual seja, com distinto cargo estatal, sempre rodeado de belas mulheres, amigos e dinheiro: e de outro lado, medíocre intelectualmente, ao menos aos olhos de seu rival.  

Certamente, o isolamento a que este “homem doente” se remeteu ao longo de sua vida deve-se ao fato de não se dar com uma sociedade baseada na razão instrumental, incapaz de perceber a superficialidade das convenções sociais. O fato de não ter tido família segundo o próprio relata à Liza prostituta também o tornara “insensível”. Há ademais uma perspectiva muito desfavorável do homem em geral por parte do narrador: “penso que a melhor definição do homem seja: um bípede ingrato”. Não seria o isolamento uma atitude que nos levaria a pensar em Zaratustra que também é uma espécie de eremita para quem apenas alguns poucos estariam capazes de ver o mundo para além das aparências mundanas?

Justifica-se o autor quanto às suas memórias, dialogando com aquele homem “comum” ou que baseia as suas ideias dentro do senso comum:

“E, no que se refere a mim, apenas levei até o extremo, em minha vida, aquilo que não ousaste levar até a metade sequer, e ainda tomaste a vossa covardia por sensatez, e assim vos consolastes, enganando-vos a vós mesmos. De modo que eu talvez esteja ainda mais “vivo” que vós. Olhai melhor! Nem mesmo sabemos onde habita agora o que é vivo, o que ele é, como se chama. Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar”.

Observa-se aqui uma crítica contundente aos homens letrados de seu tempo: a falta de autenticidade se revela por meio da incorporação e reprodução de ideias prontas, criando uma cultura medíocre, a dominante, estando o narrador à parte, desde o seu subsolo.


“Memórias do Subsolo” foi lançado dois anos antes do grande romance de Dostoiéviski, "Crime e Castigo" (1866). Outros livros marcantes do escritor russo disponíveis em boas traduções para o leitor brasileiro são “O Idiota” (1868) e “Os Irmãos Karamazov” (1878). 

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

“Memorial de Aires” – Machado de Assis

“Memorial de Aires” – Machado de Assis 




Resenha Livro #146 – “Memorial de Aires” – Machado de Assis – Instituto de Divulgação Cultural São Paulo

“Memorial de Aires” foi o último romance escrito e publicado por Machado de Assis. Foi lançado no mesmo ano da sua morte, 1908. Temos aqui, portanto, o escritor em sua plena maturidade artística, considerando a divisão que a crítica literária consagrou, separando a obra machiadiana em dois períodos. 

Um primeiro, inserido no contexto da 3ª fase do romantismo, em que a observação social ainda se mistura com um certo moralismo ainda desprovido da ironia e da crítica social que marcaria o Machado de Assis “adulto” (2ª fase) a partir do seu “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), obra que inaugura o realismo/naturalismo no Brasil. 

Ocorre que “O Memorial de Aires”(1908) já não é um livro como “Memórias Póstumas” ou “Dom Casmurro” em que o humor e a ironia estão vinculados à crítica da sociedade burguesa e pequeno-burguesa do II Império,  desde as relações amorosas interessadas até críticas mais específicas como o problema da abolição ou a falta de vocação para política dentre os parlamentares. O humor machadiano perfaz-se por meio de um ceticismo que remete à perspectiva de um mulato que ascende à uma elite intelectual racista e, observador sagaz, percebe por meio de sutilezas as iniciativas egoístas de um personagem, a discriminação velada de outro: são as análise psicológicas que explicam a origem de uma conduta frequentemente simplória e que é revelada a nu pelo escritor realista. 

Pois “O Memorial de Aires” parece pertencer a uma perspectiva literária distinta dos romances tipicamente realistas de Machado de Assis: aparentemente, temos uma conciliação junto ao gênero humano semelhante àquela de Eça de Queiróz em seus últimos romances, como “Cidade e As Serras”, quando não há a crítica de costumes avassalara de “O Crime do Padre Amaro”. 

A história do “Memorial” tem a forma de um diário pessoal, que é contado a partir do dia 09 de Janeiro de 1988, um ano após o retorno do embaixador Conselheiro Aires ao Rio de Janeiro a título de aposentadoria. 

E este narrador irá nos contar sua vida e suas relações pessoais com personagens intrigantes, humanos, contraditórios, porém também vistos sob a perspectiva parcial do embaixador. 

Algumas sacadas típicas de Machado de Assis como o diálogo com o leitor estão presentes neste Memorial além de uma franqueza que remete ao procedimento literário de outro memorial, o de Brás Cubas:

“Está claro que lhe não falei da filha, mas confesso que se pudesse diria mal dela, com o fim secreto de ascender mais o ódio – e tornar impossível a reconciliação. Deste modo ela não iria daqui para a fazenda, e eu não perderia o meu objeto de estudo. Isto, sim, papel amigo, isto podes aceitar, porque és a verdade íntima e pura e ninguém nos lê. Se alguém lesse achar-me-ia mau, e não se perde nada em parecer mau: ganha-se quase tanto como em sê-lo”.

Percebe-se aqui como a situação atual de vida – ex-embaixador, aposentado, viúvo, sem filhos, morando sozinho com o empregado – justifica e faz o leitor compreender o “diálogo” com o papel. Talvez houvesse algo de auto-biográfico nestas passagens já que quando redigiu seu último trabalho, este era o período em que Machado de Assis vivia a solidão da velhice após a recente morte de sua ex-companheira. De pessimismo  a conclusão final, e olhe lá. 

De outra monta, é possível observar em algumas passagens uma percepção da vida menos pessimista que aquela esposada em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, cujo fim, lembramos, é :

“Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”

Como dizíamos, temos aqui um exemplo da fina ironia machadiana que em termos de visão de mundo se expressa num pessimismo que talvez remetesse ao seu mal estar enquanto mulato ascendido à condição de membro da elite intelectual de um país igualmente periférico e subdesenvolvido. 

De outro lado, observamos passagens em que a vida e em especial as personagens são vistas com mais condescendência, no “Memorial de Aires”:

“Se eu a visse no mesmo lugar e postura, não duvidaria  ainda assim do amor que Tristão lhe inspira. Tudo poderia existir na mesma pessoa, sem hipocrisia da viúva nem infidelidade da próxima esposa. Era o acordo ou o contraste do indivíduo e da espécie. A recordação do finado vive nela, sem embargo da ação do pretendente; vive com todas as doçuras e melancolias antigas, com o segredo das estreias de um coração que aprendeu na escola do morto. Mas o gênio da espécie faz reviver o extinto em outra forma, e aqui lho dá, aqui lho entrega e recomenda.”

A viúva Fidélia fora uma dedicada esposa até a morte do marido, cuidando diuturnamente de seu túmulo e fechando o seu coração a todos os pretendentes. Porém, Aires já previa a possibilidade da viúva (que ainda era jovem) fraquejar o seu luto e conciliá-lo com um novo amor, por meio de uma teoria bastante simpática ao gênero humano – quando um Machado de Assis mais mordaz poderia especular sobre interesses pecuniários e outros que não os de bom coração, os que efetivamente levaram a viúva Fidélia a novo casamento. 

Outra passagem que revelaria um Machado de Assis mais otimista:

“A questão é que virtualmente não se quebre este laço, e que a lei da vida não destrua o que foi da vida e da morte. Creio nas afeições de Fidélia; chego a crer que as duas formam uma só, continuada. 

Quando eu era do corpo diplomático efetivo, não acreditava em tanta coisa junta, era inquieto e desconfiado; mas, se me aposentei foi justamente para crer na sinceridade dos outros. Que os efetivos desconfiem!”

Apenas um estudo mais biográfico poderia apontar eventuais coincidências entre o ponto de vista do embaixador Conselheiro Aires e o próprio Machado de Assis. Importa aqui assinalar que para além da divisão tradicional binária entre “jovem” e “maduro” Machado de Assis, existem outras produções que não se encaixam dentro deste binômio, merecendo leitura e análises à parte. 

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

“O Trabalho no Espaço da Fábrica: um estudo da General Motors em São José dos Campos (SP)” – Gilberto Cunha Franca

“O Trabalho no Espaço da Fábrica: um estudo da General Motors em São José dos Campos (SP)” – Gilberto Cunha Franca 



Resenha Livro 145- “O Trabalho no Espaço da Fábrica: um estudo da General Motors em São José dos Campos (SP)” – Gilberto Cunha Franca – Ed. Expressão Popular

Esta pesquisa do geógrafo Gilberto Cunha Franca trata da nova conformação do mundo do trabalho, da sua disposição no espaço, da sua organização produtiva, dos novos papeis a que os trabalhadores são chamados a desempenhar, bem como a nova conformação do movimento sindical, tendo como ponto de partida o estudo da General Motors e especificamente a sua planta na cidade de São José dos Campos-SP. 

Quando se fala em nova conformação do mundo do trabalho, tem-se em mente as mudanças gerais a que os sociólogos se referem como “reestruturação produtiva” que em nível mundial tem início a partir dos anos de 1970. Significa entre outras coisas a superação do modelo fordista de produção, a desregulamentação do trabalho e a emergência política do neoliberalismo. 

O fordismo correspondia à forma de produção de mercadorias padronizada e em série que com o tempo influiria na regulação das relações laborais e de consumo: diante das inovações tecnológicas, há o desmantelamento das antigas manufaturas e a concentração dos meios de produção num dado espaço, com as máquinas comandando o ritmo de trabalho  e a ação humana correspondendo à uma ação auxiliar e subordinada ao ritmo febril da linha de produção.  

Diante do avanço das técnicas de produção, haveria novas mudanças na morfologia do trabalho, com a superação do modelo fordista em detrimento de um novo arranjo produtivo que reduzisse custos, otimizasse o valor da força de trabalho e diminuísse o tempo gasto inutilmente dentro da jornada de trabalho. O desenvolvimento do meio informacional dentro da produção resulta na maior automação do trabalho: dentro da indústria automobilística, é a robótica, utilizada na estamparia e outros serviços prestados com rapidez e precisão, liberando os operários para realização de outras tarefas ou mesmo fechando postos de trabalho (e reduzindo custos de produção). 

Outra característica da nova morfologia do trabalho decorrente da reestruturação produtiva é a gestão “just in time”, em que as tecnologias da informação foram imprescindíveis. A ideia é a de fornecer os equipamentos para montagem e produzir as mercadorias conforme a demanda: pode-se comparar tal modelo à ideia de um supermercado. Conforme as prateleiras vão se esvaziando com a compra dos produtos pelos consumidores, vão sendo paulatinamente restituídas – ideia de “coesão e condensação” das atividades e do espaço de trabalho direto para se evitar qualquer desperdício e redução do tempo de produção. 

Os estudos do geógrafo sobre a nova morfologia do trabalho seguem abordando o trabalho polivalente e o trabalho em grupo, ambos também decorrentes da reestruturação produtiva e implantados no último período nas montadoras da GM. 

Se no modelo fordista, vem-nos à mente a imagem do personagem de “Tempos Modernos” de Charles Chaplin em que um operário executa uma única operação ao longo de toda a sua jornada de forma extenuante, repetitiva e alienante, no toyotismo e com a automoção, os operários são requisitados novamente (como no período anterior ao fordismo, no período pré-industrial) a executar diversas e distintas tarefas, em especial aquelas de manutenção das máquinas e controle de qualidade das peças. 

Agora o operário realiza uma série  de operações parciais simples, baseando-se eventualmente na rotação de tarefas e alocação flexível dos postos de trabalho, uma estratégia das chefias para evitar o cansaço e o desânimo dos operários. Na prática, o trabalho polivalente significa uma jornada de trabalho mais puxada, maior esforço físico e mental do trabalhador. 

Como se pode ir observando, as transformações técnicas da reestruturação produtiva foram grosso modo engendrando condições de vida e de trabalho mais difíceis para os trabalhadores. E de fato, tal fenômeno coincide com outros processos históricos claramente desfavoráveis aos trabalhadores como o aumento das terceirizações e dos contratos temporários de trabalhos, flexibilização das leis laborais, hegemonia de políticas econômicas neoliberais e posicionamento defensivo ou francamente desfavorável aos trabalhadores pelas lideranças sindicais até pela fragmentação e enfraquecimento da própria representação classista, por exemplo, com a terceirização. 

Identificar as origens e as razões desta situação desfavorável é um passo importante que deverá ser dado pela geografia e sociologia do trabalho. Daí a importância de pesquisas como esta de Cunha Franca. 

domingo, 4 de janeiro de 2015

“O Governo João Goulart – As Lutas Sociais no Brasil 1961-1964” – Moniz Bandeira

“O Governo João Goulart – As Lutas Sociais no Brasil 1961-1964” – Moniz Bandeira 




Resenha Livro 144- “O Governo João Goulart – As Lutas Sociais no Brasil 1961-1964” – Moniz Bandeira – Ed. Civilização Brasileira 

O jornalista e pesquisador Moniz Bandeira escreveu este ensaio sobre o governo João Goulart depois de 14 anos do golpe militar que derrubara Jango. Este relativo curto espaço de tempo entre os eventos e o relato tem a grande vantagem de, nas palavras do jornalista, oferecer ao leitor um panorama daquele período político por alguém que vivenciou e assistiu a todos os acontecimentos, do começo ao fim, tanto do camarote como do palco e dos bastidores, como cronista do jornal “Diário de Notícias” do Rio de Janeiro. 

Tal posição também garantiria ao autor a possibilidade de acesso direto a fontes centrais das lutas sociais daquele período: além do próprio João Goulart, desde o exílio no Uruguai, o pesquisador pode entrevistar personagens decisivos daquela narrativa, como Sérgio Magalhães (presidente da Frente Parlamentar Nacionalista, um bloco parlamentar de apoio governista), Darcy Ribeiro (ex-chefe da casa Civil de João Goulart), ministros, governadores de estado, militares, jornalistas: tanto de personagens pro quanto contra Jango. 

Os últimos momentos do governo foram marcados por intensa radicalização política, tanto pela direita, quanto pela esquerda, com greves, ocupações de terras, espionagem, provocações e quebra de hierarquias dentro das forças armadas: qual seja, uma sucessão de fatos políticos que podem ser resumidos na ideia da radicalização da luta de classes decorrente do isolamento político do governo João Goulart que, perdendo sua base política dentro das classes dominantes, teve como única opção apoiar-se nas forças populares, nos sindicatos (CGT), no movimento estudantil e camponês para aprovar suas reformas de base e fazer avançar políticas que iam em sentido contrário dos interesses do imperialismo e da burguesia nacional a ele dependente. Exemplos: a controvérsia acerca a encampação das empresas da AMFORP (plantas de industrias de base norte-americanas abandonadas no país que atravancavam o desenvolvimento nacional), a lei proposta por Jango de contenção da remessa de lucros diante do caos inflacionário e, talvez a maior briga comprada por João Goulart, uma proposta de reforma agrária, bastante tímida, restrita a distribuir as terras que sofreram valorização com a construção de rodovias e usinas. 

Há de se observar ademais tanto o contexto geral da Guerra Fria quanto a participação ativa dos EUA que gradualmente vão de uma hostilidade a uma franca oposição ao governo brasileiro (apoiando financeiramente e militarmente a oposição à Goulart). No que tange à Guerra Fria, o “combate ao comunismo”, a infiltração comunista dentro do governo ou a tese da “guerra revolucionária comunista” (segundo a qual no Brasil se conspirava um “golpe” violento, tese sustentada no parlamento pelo líder da UDN Bilac Pinto) seriam os pretextos para combater Jango: no fundo a luta da classes perpetrada pela classe dominante que se volta contra João Goulart é muito mais contra aquelas medidas concretas elencadas acima, bem como as suas Reformas De Base. 

Em outras palavras, quando a direita evocava o fantasma de Cuba, a política externa independente de Jango (que reatou relações comerciais com países socialistas com o desagravo de Washington) e a infiltração comunista no governo, ela antes buscava conter um processo político democrático. Ninguém realmente acreditava que um estancieiro, latifundiário e conciliador como João Goulart fosse um marxista-leninista. O que estava em jogo era a luta contra as reformas:

1- Reforma Agrária, com emenda do artigo da constituição que previa indenização prévia em dinheiro. 
2- Reforma Política, com extensão do direito de voto aos analfabetos e praças.
3- Reforma Universitária, assegurando liberdade de ensino e fim da vitaliciedade de cátedra.
4- Consulta à vontade popular por meio de plebiscitos. 

No que tange à participação dos EUA no golpe, não só o livro de Moniz Bandeira, mas toda a historiografia sobre o período é consensual acerca da ingerência norte-americana direta nos acontecimentos, contando os golpistas com o aval e apoio bélico norte-americano direto - dispositivo a ser uitilizado em caso de resistência. Ao que tudo indica, João Goulart estava bem informado de todos estes elementos o que deve ter pesado consideravelmente para o ex-presidente não optar pelo caminho da luta e resistência armada contra o golpe. 

Seja como for, o balanço a ser feito pela esquerda, as lições a serem extraídas das lutas sociais daquele período parecem não remeter tanto à questão, “deveríamos ou não ter resistido em armas ao golpe”? e sim “por que o golpe nos pegou tão desprevenidos”? 

O livro de Moniz Bandeira dá alguns sinais importantes. Em primeiro lugar as ilusões democráticas em torno das forças armadas, no seu espírito legalista, “confiando que os oficiais  nacionalistas e o grosso dos sargentos se oporiam, como em 1961, a qualquer intento de derrubada do Presidente da República”. 

Ademais, a esquerda criara enormes ilusões em torno das lideranças vacilantes da burguesia nacional que conduziam o processo democrático e se paralizou, não se preparou política, ideológica e militarmente para fazer frente aos ataques da direita, confiando portanto na força daquelas lideranças hesitantes.  Finalmente, constatou-se que Goulart, fiel até o final ao princípio da legalidade, transigiu e buscou a conciliação, e foi vítima de um golpe enquanto ele próprio poderia, quando estava na ofensiva, avançar, derrotar seus inimigos mais atrozes, cassando, por exemplo, o mandato de Carlos Lacerda após suas provocações sobre as forças armadas federais, quando tinha base jurídica para tanto, e se apoiando nas massas para viabilizar seu projeto de reformas.  

A característica fundamental do governo João Goulart é o da polarização/radicalização política. Nestes momentos, as máscaras caem e a luta entre as classes assumem um novo nível, tornam-se abertas, escancaradas: daí a importância do estudo deste período da história do Brasil. 
    

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

“México Insurgente” – John Reed

“México Insurgente” – John Reed
Resenha Livro #143 - “México Insurgente” – John Reed – Boitempo Editorial
               

Tivemos já a oportunidade de resenhar um livro que trata da Revolução Mexicana (1910-1920) desde o ponto de vista da história.. (Fonte: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/09/a-revolucao-mexicana-antecedentes.html

Em “A Revolução Mexicana: Antecedentes, Desenvolvimento e Consequências”, um trabalho conjunto de  Rodolfo B. Bustos, Rafael A. Medina e Marco Antonio Loza  publicado pela Ed. Expressão Popular o leitor terá uma visão panorâmica daquele evento histórico que corresponde a uma grande revolução camponesa, resgatando inclusive o passado colonial mexicano e os seus antecedentes indígenas pré-colombianos.

Tal passado é uma chave explicativa para se entender a força daquele movimento que tinha como principal orientação a luta pela terra e a concretização da reforma agrária, consoante expectativas que vinham desde a espoliação espanhola.

Entender objetivamente um evento histórico envolve sondar o passado, a evolução dos embates de classe e sua relação com o desenvolvimento das relações de produção: no caso mexicano, sua revolução decorre de uma etapa em que o capitalismo em nível mundial já se expressa em sua fase imperialista, com a dominação econômica e política indireta, porém não menos rigorosa das antigas colônias espanholas – e efetivamente os EUA interviriam diretamente  na Revolução Mexicana de molde a garantir seus interesses econômicos.

“México Insurgente” por outro lado não é exatamente um livro de história, não temos aqui uma reflexão estrutural sobre a economia, a sociedade ou a política do México. John Reed esteve alguns meses de 1913 no norte do México como correspondente jornalístico desde a frente de batalha e de lá redigiu uma série de reportagens sobre o cotidiano daquele país sobre a guerra civil: já muito elogiado quando da sua publicação, Reed, quando voltou aos EUA, reuniu o seu material e escreveu “México Insurgente”.

Este seria o seu primeiro livro em que o jornalista desde a vivência pessoal poderia relatar os pormenores de uma revolução: o pensamento dos cabos mais simples até os generais mais importantes como Pancho Villa (que na verdade era um homem também muito humilde, recém alfabetizado e que negara o convite para ser presidente do México em caso de vitória das tropas constitucionalistas); o dia- a- dia das tropas, sua alimentação parca a base de tortillas de milho e sua miserabilidade na roupa esfarrapada, descalços, ou de chinelas (isto tanto para as tropas federais quanto para as constitucionalistas); a alegria do povo que sob qualquer pretexto arranjavam bailes, cantavam modas de violão e faziam chistes; as relações de gênero em que à mulher mexicana cabe exclusivamente cozinhar e cuidar de seu homem, sendo as disputas conjugais resolvidas à bala; e os enfrentamentos do campo de batalha, os cercos junto às cidades, as estratégias militares napoleônicas de Pancho Villa, uma espécie de guerrilheiro sem qualquer  formação que na luta que consolidou-se como líder supremo da revolução mexicana da região norte daquele país.

Uma parte toda de “México Insurgente” é dedicada a este personagem muito particular da história do séc. XX que foi Pancho Villa. Era um consenso, e não negado por Villa, que antes da revolução o mesmo era um bandido comum, já tendo matado muitos: por suposto, com o tempo, o temor dos seus inimigos frente ao tratamento implacável dado pelos homens de Villa aos colorados  e aos federales viria a aumentar as lendas em torno do seu passado.

Reed relata um episódio em que Villa era homenageado num palácio tomado pelas suas forças. Todo o povo amontoado a saudá-lo e ele parecendo sentir-se entre entediado e constrangido: não era uma liderança política, não sabia fazer discursos (e não o fez àquela ocasião). Era um guerreiro, cegamente obediente e fiel às lideranças da revolução. Pancho Villa foi um revolucionário igualitarista, que no combate lutava ombro a ombro com seus homens, provando sua coragem na prática. E pelo que lutava? Diz o próprio:

“Quando se estabelecer a Nova República, não mais haverá exércitos no México. Os exércitos são os maiores apoios da tirania. Não pode haver ditador sem exército.

Poremos o exército para trabalhar. Em todas as partes da República serão estabelecidas colônias militares compostas por veteranos da revolução. O Estado lhes dará a posse de terras agrícolas e criará grandes empresas industriais para garantir-lhes trabalho. Trabalharão três dias na semana, e trabalharão duro, porque o trabalho honesto é mais importante do que lutar, e só um trabalho honesto produz bons cidadãos. E nos outros três dias receberão instrução militar, que, por sua vez, usarão para instruir todo o povo para ensiná-lo a lutar. Então, se a Pátria for invadida, apenas teremos de dar um telefonema do Palácio Nacional na Cidade do México e em meio dia todo o povo mexicano se levantará em seus campos e fábricas, completamente armado, equipado e organizado para defender seus filhos e seus lares”.

O outro livro mais famoso do jornalista John Reed acerca de revolução em que igualmente o periodista relataria de forma dinâmica e cinematográfica os fatos históricos é “Dez dias que abalaram o mundo” que discorre sobre a Revolução Russa.

Em ambos os livros temos uma reportagem, uma descrição jornalística, portanto, de eventos históricos. Não significa em absoluto que sejam obras datadas. Muito pelo contrário!

Interessa-nos como preciosas fontes talvez não tanto para entender e sim para compreender os eventos históricos. Enquanto com o método do historiador, o leitor procura um sentido da história e assim extrair um entendimento objetivo dos eventos e suas relações enquanto processos encadeados, as reportagens oferecem facetas, imagens, aspectos, traços subjetivos da histórica que complementam aquele entendimento inicial. Algo que na historiografia foi denominado história do cotidiano.

Os depoimentos pessoais, por exemplo, de Pancho Villa vão além de meramente explicar a razão pela qual aquela liderança não aceitou junto a Zapata disputar os rumos políticos da revolução: de certa forma, pela boca do dirigente há a visão social de todo um contingente que ele lidera e que está disposto a tombar em torno de uma luta pela terra e contra a espoliação dos nacionais e estrangeiros. 

De uma maneira geral, podemos dizer que é uma cultura camponesa que em parte explica as relações de força da Revolução Mexicana.


Diz-se que Che Guevara leu “México Insurgente” durante suas viagens pela América Latina. Certamente deve ter sido um livro que sensibilizou e tocou subjetivamente aquele revolucionário amoroso.