quinta-feira, 18 de junho de 2015

“Crítica do Programa de Gotha” – Karl Marx

“Crítica do Programa de Gotha” – Karl Marx
Resenha Livro 176 – “Crítica do Programa de Gotha” – Karl Marx - Ed. Boitempo




Entre os dias 22 e 27 de Maio de 1875 ocorreu na cidade de Gotha na Prússia o congresso de unificação dos dois grandes partidos operários alemães: a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, fundado em 1864 e tendo por líder máximo Ferdinad Lassalle (morto em 1864) e o Partido Social Democrata dos Trabalhadores, fundado em 1869 e dirigido por Liebknecht, Bracke e Bebel, contando, ademais, com  colaboração de Marx e Engels.

Ocorre que a forma como se deu a unificação dos dois partidos implicou na sub-rogação do programa da social democracia alemã marxista, que uma vez baseada desde o ponto de vista teórico entre outros pelos estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores e pelo próprio Manifesto Comunista, se submeteu no congresso ao programa político Lassaliano. 

“A crítica ao Programa de Gotha” são as glosa marginais escritas ao longo do programa por Marx, um crítica decidida e virulenta contra uma forma de socialismo não consequente que seria incorporado dentro do estatuto do novo partido operário da Alemanha. Isso significava que Marx e Engels se colocariam contra a formação do novo partido? Não! Nas palavras do Velho Mouro, “Cada passo do movimento real é mais importante do que meia dúzia de programas”. Nesse sentido, a unidade representava um avanço, em que pese todos os erros enunciado pela organização partidária que nascia. Outrossim, Marx e Engels não criticaram publicamente o programa diante de uma opção política tática, como revela uma carta de Engels a Bebel datada de 12 de Outubro de 1875:

“Em vez disso, os asnos das folhas burguesas tomaram esse programa com toda a seriedade, leram nele o que lá não se encontrava e entenderam-no ao modo comunista. Os trabalhadores parecem fazer o mesmo. Foi apenas esta circunstância que permitiu a Marx e a mim não nos pronunciarmos publicamente sobre tal programa. Enquanto nossos oponentes e também os trabalhadores atribuírem a esse programa os nossos pontos de vista, poderemos silenciar sobre isso”. 

As críticas de Marx ao programa de Gotha são essencialmente conceituais e incidem sobre o espírito lassaliano do programa aprovado desde que certa fraseologia que se extrai do texto decorre das ideias do antigo dirigente do partido alemão. É o caso da “Lei de Bronze dos Salários”, que consta no programa, como se os salários na sociedades capitalistas seguissem uma espécie de lei natural e imutável. Outra ideia particularmente combatida por Marx dentro corresponde à passagem segundo a qual “a libertação do trabalho tem de ser obra da classe trabalhadora, diante da qual todas as outras classes são uma só massa reacionária”. Tal concepção, segundo Marx, subestima a necessidade de uma política de coalizão com os camponeses na luta contra a reação feudal o que se verificaria ipsis litteris na Revolução Russa de 1917 ou mesmo em Revoluções que tiveram como ponto de partida o campesinato como em Cuba ou Nicarágua. Outrossim, a burguesia junto às classes médias, em face da aristocracia feudal, naquele período histórico e em alguns lugares ainda tinha a cumprir um papel revolucionário. De outro lado, o que se sabe é que Lassalle, que foi um dirigente de nassas, foi acusado de negociar junto a Bismarck, e eventualmente tal sectarismo teria como condão preservar os setores políticos mais reacionários da Prússia. 

A questão das cooperativas também são alvo das críticas de Marx no que tange a sua subvenção pelo Estado. 

“A organização socialista do trabalho total, em vez de surgir do processo revolucionário de transformação da sociedade, surge da ‘subvenção estatal’, subvenção que o Estado concede às cooperativas de produção “criadas” por ele, e não pelos trabalhadores. É algo digno da presunção de Lassalle imaginar que, por meio de subvenção estatal, seja possível construir uma nova sociedade da mesma forma que se constrói uma nova ferrovia!”. 

E as confusões acerca da questão do estado são reiteradas e esclarecidas por Marx quando o programa aborda a questão dos impostos progressivos.

Dentre as consignas ou o que poderíamos chamar de programa mínimo do partido alemão, muitas delas já são hoje uma realidade na democracia burguesa do século XXI. São elas o Sufrágio Universal, proibição do trabalho infantil (formal nos dias de hoje) e regulação do trabalho prisional. Outras não se verificam como a Jurisdição pelo povo e assistência jurídica gratuita, preparação militar geral e milícia popular no lugar do exército permanente e autoadministração completa para todos os fundos de assistência e previdência dos trabalhadores. 

A edição da Boitempo da “Crítica do Programa de Gotha” é uma importante fonte de estudos acerca das ideias de Marx sobre o programa partidário dos socialistas. A edição conta não só com as glosas, mas com cartas referentes ao documento, um prefácio de M. Löwy e um “Resumo Crítico de Estatismo e Anarquia” de Bakunin em que Marx rebate as críticas do ativista libertário russo às suas concepções sobre estado ou mesmo às falsas concepções a ele atribuídas sobre estado e revoluções. 

A atualidade desta obra reside nas críticas acerca da concepção do estado seja quanto ao entendimento reformista de Lassalle, seja dentro das críticas de Bakunin  – de maneira contundente e eficaz, Marx demonstra os limites e mesmo o oportunismo das posições políticas reformistas e anarquistas quanto ao papel do estado dentro do processo de transição. Sai-se convencido que apenas a leitura marxista oferece uma percepção científica do fenômeno de transição societário desde a sociedade em que estamos rumo à sociedade que almejamos, sem classes e sem exploração.  

sexta-feira, 12 de junho de 2015

“Primo Basílio” - Eça de Queirós

“Primo Basílio” - Eça de Queirós



Resenha Livro -175 “Primo Basílio” - Eça de Queirós – Editora Ática

O Primo Basílio foi publicado em 1878, correspondendo à obra da fase realista de Eça de Queirós (1845-1900).

O escritor português é na verdade um dos fundadores de tal escola literária em Portugal, assumindo mesmo uma posição de engajamento dentro da literatura. Engajamento em dois sentidos. Primeiro para criticar a sociedade e as instituições portuguesas, especificamente seu clero católico e o instituto do celibato dos Padres (“O crime do Padre Amaro” de 1875) e a família e o casamento (“O Primo Basílio” e “Os Maias” de 1880). E o segundo sentido de seu engajamento dá-se desde o seu pertencimento à uma geração de escritores que deram início à escola realista em Portugal,  destacando-se Antero de Quental (que depois se tornaria presidente de Portugal) e Teófilo Braga (introdutor de ideais socialistas junto a Eça), ambos, como Queirós, egressos da tradicional Faculdade de Direito de Coimbra.

O movimento realista literário em Portugal nasce em confronto com a tradição literária romântica então liderada por A. de Castilho – a proposta é combater a ideia da arte pela arte, bem como o subjetivismo e o idealismo românticos e criticar os costumes retrógrados de uma sociedade atrasada como a portuguesa. Enquanto o desenvolvimento industrial e capitalista culminava na ascensão da classe burguesa e das novas suas ideias, lastreadas especialmente no pensamento filosófico e literário francês, a velha Portugal ainda estava regida sob a monarquia e uma cultura patrimonialista e formalista, um ambiente acanhado o que, na arte, se reproduzia numa forma ultra-sentimental e de conteúdo medíocre. Houve debates entre os realistas e românticos e uma série de conferências dos renovadores com o intuito de mudar os rumos  do ambiente cultural português.

Numa carta ao amigo Teófilo Braga, Eça sinaliza sua intenção que repercute o projeto realista:

“Minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa e mostrar-lhe como num espelho, que triste país eles formam – eles e elas. É o meu fim nas ‘Cenas da Vida Portuguesa’. É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso – e com todo respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas realizações; que lhe dá uma sociedade podre”.

Destacamos a passagem em que Eça faz menção às instituições, reverenciando-as. Trata-se exatamente de instituições que o escritor irá demolir no “Primo Basílio” como o casamento, diante da traição de Luiza, bem como da traição de Jorge na província e a reiterada falta de respeito mútuo entre os casais ou a família que também é, ao término da história, destruída estupidamente em função de um mero capricho, de uma satisfação sexual momentânea do primo Basílio. Uma contradição? Não. Na mesma carta, prossegue Eça de Queirós comentando seu livro:

“Perfeitamente: mas eu não ataco a família – ataco a família lisboeta – a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo centro de bambochada”.

Há aqui a crítica social que se vira contra o formalismo oficial que se expressa na figura do Conselheiro Acácio, um personagem patético que remete ao José Dias de Dom Casmurro do Machado de Assis, com um linguajar cheio de superlativos, uma gravidade na postura que omite o fato de que, às escondidas dos olhos da sociedade, tem uma mulher à sua cama, que por sinal divide com outro homem; a beatice carola de Dona Felicidade, que combina seu cristianismo com as crendices recorrendo à feitiçaria para tentar encantar o homem por que seu coração ambiciona....o Conselheiro Acácio; Luíza, “senhora sentimerntal”, burguesa, mulher do engenheiro Jorge e que, arrasada pelo excesso de leitura de livros de estilo romântico se deixará seduzir pelo  primo Basílio, conduzindo a história para os fins trágicos.

A intenção de Eça ao escrever a sua tríada realista, qual seja, “O Crime do Padre Amaro”, “Primo Basílio” e “Os Maias” não era obviamente anarquizar ou destruir as instituições de seu país, mas reformá-las, modernizá-las conforme as novas tendências de um mundo em rápido progresso econômico e industrial de meados do século XIX. Um mundo novo com o surgimento de cidades, operários e burgueses: o que estava em vista dos jovens modernizadores da literatura portuguesa era levar à provinciana, beata e atrasada Portugal o correspondente no plano das ideias da revolução industrial e da expansão econômica daquele período – é parte das cogitações de Eça de Queiroz as ideias de autores como Taine, Darwin (evolucionismo) e A. Conte (positivismo). Deve ser enquadrado como um escritor modernizador e introdutor do realismo nas letras portuguesas reproduzindo uma visão social de mundo da burguesia em sua fase de ascensão histórica numa sociedade relativamente atrasada naquele momento, ao menos em face de países como Inglaterra e França.

Posteriormente, a partir de livros como “A Cidade e as Serras” (1901) e “A ilustre Casa de Ramires” (1902) o escritor passa para uma segunda fase literária, sendo talvez mais condescendente com os homens. Mas este é assunto para uma outra resenha.

terça-feira, 2 de junho de 2015

“A Mão e A Luva” – Machado de Assis

“A Mão e A Luva” – Machado de Assis 




Resenha Livro 174 – “ A Mão e  a Luva” – Machado de Assis - Ed. Globo 


Estamos diante de uma novela cujos capítulos foram sendo publicados no ano de 1874. Trata-se portanto de obra correspondente à fase romântica de Machado de Assis, ao menos formalmente. Na “Advertência de 1874”, diz o autor que o formato em que foi publicada – sujeito às urgências da publicação diária – causou algumas dificuldades nas intenções do autor desenvolver o perfil dos personagens, particularmente a bela e desejada Guiomar, que certamente desempenha um papel central na história.

Caracterizamos o texto como novela, primeiro por ser assim que a ela se refere Machado de Assis na sua “Advertência”. Segundo diante de sua extensão: as novelas como se sabe costumam ser uma narrativa não tão longa quanto um romance mas nem tão curta quanto um conto.

Ainda que as características realistas não estejam plenamente presentes em “A Mão e a Luva”, pode-se classificar a obra como um momento já de transição. Alguns expedientes tipicamente machadianos como o diálogo entre o narrador (em terceira pessoa) e o leitor e mesmo algumas passagens de humor já nos remetem aos seus romances de maturidade, ainda que não se vislumbre a ironia e o humor sarcástico de um Memórias Póstumas de Brás Cubas – para tal expediente seria necessária uma ruptura com o estilo romântico que envolveria questionamentos ainda não detectados em “A Mão e a Luva”.

A história tem como ponto de partida o amor frustrado de Estêvão por Guiomar, ele então um acadêmico de Direito de São Paulo e ela uma professora e estudante de letras de 17 anos. A rejeição amorosa fez com que o acadêmico – ao estilo byronista que remete tão bem aos poetas boêmios da Academia de São Paulo como Álvares de Azevedo – pense no suicídio e sofra sua primeira grande desilusão amorosa ao lado do colega de curso Luís Alves. Este amor perduraria dois anos depois, quando ambos colegas, bacharéis em Direito, retornariam ao Rio de Janeiro e mais uma vez se deparariam com a bela musa do passado.

Estêvão passara os dois anos sem se lembrar de Guiomar mas bastou ver-lhe para reacender o coração pela fonte do amor partido. Mais uma vez rejeitado, revela-se como o amor em Estêvão é eivado de um sentimentalismo que remete via de regra ao gênero feminino, causando quando muito irritação à jovem Guiomar. Talvez tal fato se explique pela origem de vida de ambos: ele um ex-acadêmico com um coração “pusilânime”, vacilante e fraco. Ela já desde cedo tendo de enfrentar graves dificuldades da vida, perdendo o pai e a mãe quando criança, tendo sido criada pela madrinha. Ambiciosa, dona de si e sem tendência ao sentimentalismo, a bela e desejada Guiomar frequentemente se irrita com os homens que declaravam seu amor por ela. Quando pela segunda vez tem a oportunidade de rejeitar Estêvão, suas palavras são brutais:

“- Dou-lhe um conselho, disse Guiomar depois de alguns segundos de pausa, seja homem, vença-se a si próprio; seu grande desafeto é ter ficado com a alma de criança.
- Talvez, respondeu o homem suspirando. 
- E adeus. Falamos a sós mais do que convinha; não sei se outra consentiria nisto. Mas eu não só reconheço os seus sentimentos de respeito, como desejo que estas poucas palavras trocadas agora ponham termo a aspirações impossíveis”.

O quadro social que serve de pano de fundo da narrativa corresponde ao ambiente burguês liberal fluminense de meados do séc. XIX. Os momentos recreativos davam-se nos teatros e óperas, além de jantares em casas de pessoas distintas como a baronesa, a mãe adotiva de Guiomar. As relações afetivas ou mais especificamente os namoros envolviam intricadas tramas com trocas de olhares, apertos de mãos mais ou menos significativos, além de bilhetes: ainda assim, estamos diante de um romance romântico cujo desenlace será a concretização do amor não como uma convenção social ou a realização de interesses pessoais/pecuniários mas como maior realização de vida. Mesmo com todas estas dificuldades, as barreiras são vencidas no final, quando o amor destina-se a atender aos anseios do outro coração – ligar a mão à luva.

Na resenha referente ao romance Ressurreição já havíamos chamado atenção para a pouca ênfase dada para os trabalhos de Machado de Assis correspondentes à sua fase romântica. A “Mão e a Luva” tem um sabor especial diante de uma narrativa surpreendente, uma história fora de padrões, imprevisível, impactante e que nos sensibiliza pelos desenlaces trágicos e redentores que são concomitantes ao término do livro.