quarta-feira, 26 de novembro de 2014

“Teoria da Organização Política V. II” – Ademar Bogo (org.)

“Teoria da Organização Política V. II” – Ademar Bogo (org.)
Resenha Livro #135 - “Teoria da Organização Política V. II” – Ademar Bogo (org.) – Ed. Expressão Popular




                
Este segundo volume de textos tem como matéria o problema da organização política dos movimentos revolucionários ao longo do século XX perpassando experiências revolucionárias em praticamente todo o globo. 

Neste segundo volume, foram dados destaques a escritos de ativistas e intelectuais marxistas que intervieram especificamente em contextos da periferia do sistema capitalista, sendo recorrentes os temas da luta anti-imperialista e o problema da relação entre o proletariado e as respectivas burguesias nacionais. 

Assim, temos aqui textos de J. C. Mariátegui (Peru), Gramsci (Itália), Luiz Carlos Prestes (Brasil), Che (Argentino, mas com atuação principal na Revolução Cubana), Marighella (Brasil), Álvaro Cunhal (Portugal), Agostinho Neto (Angola) e Florestan Fernandes (Brasil).  

Dentre os autores supracitados, destacaremos aqueles menos conhecidos ou comentados dentre o público Brasileiro.  

É o caso de José Carlos Mariátegui que tem como obra traduzida em português “Sete Ensaios de Interpretação Sobre a Realidade Peruana” e mais recentemente uma coletânea de artigos sobre a Revolução Russa (decorrente de uma viagem do jornalista peruano à Itália), ambos também publicados pela Ed. Expressão Popular.  

Mariátegui é um caso raro de ativista e intelectual latino-americano que soube se apropriar de uma forma singular do marxismo e aplicá-lo efetivamente como um método de interpretação da realidade, sabendo adequá-lo às especificidades da realidade nacional e latino-americana, identificando de forma pioneira a importância do elemento indígena dentro do contexto da luta revolucionária no Peru e sinalizando, igualmente de forma pioneira, as diferenças entre a situação de países da América do Sul e os países asiáticos em que as classes médias e a burguesia nacional teriam mais chances de fazer bloco político com os de baixo do que com os de cima – ora no Peru e demais sociedades da América Latina, observa Mariátegui criticando a linha Aprista que recomendava uma política semelhante ao koummitang chinês – o elemento de classe média, desde a tradição colonial, passando por elementos econômicos, políticos e culturais, desprezava os debaixo e buscava sempre ascender junto aos de cima.  

É interessante que mais à frente no texto de Carlos Marighella denominado “A Crise Brasileira”, este mesmo assunto é retomado a título de auto crítica pelos comunistas brasileiros. No caso, a “Crise Brasileira” foi escrita alguns anos após o Golpe de 1964 e tem como escopo justamente identificar as razões pelas quais a esquerda saiu derrotada naquele evento. São inúmeros os motivos elencados por Marighella: falta de trabalho de base junto ao movimento camponês, confiança no dispositivo militar do estado burguês, confiança nos acordos de cúpula sem correspondente disseminação de agitação e propaganda nas massas (especialmente para além das empresas estatais). Mas outro ponto tocado por Marighella e já prenunciado por José Carlos Mariátegui em 1929 (!) é justamente as incompatibilidades políticas entre burguesia nacional e proletariado e as demais forças revolucionárias em países como Brasil e Peru.  

No caso brasileiro, as esquerdas cometeram o erro de deixar o movimento de massa ser hegemonizado e dirigido pela fração da burguesia nacional liderada por João Goulart desconsiderando que, apesar da retórica nacionalista, ela tende à vacilação e à capitulação: e de fato, foi o que houve em 1º de Abril, qual seja, um golpe de estado sem qualquer reação, a não ser uma tentativa frustrada de greve geral.   Diz Marighella, “A grande falha desse caminho era a crença na capacidade de direção da burguesia, a dependência da liderança proletária e política efetuada pelo governo de então. A liderança da burguesia nacional é sempre débil e vacilante. Ela é destinada a entrar em colapso e a capitular sempre que do confronto com os inimigos da nação surja a possibilidade do poder ao controle direto ou imediato das massas”.  

“Continua sendo exato que a aliança com a burguesia nacional é uma necessidade na conjuntura histórica brasileira. Seja como for, porém, torna-se imprescindível travar a batalha pela conquista da hegemonia, sem o que o futuro do movimento de massas estará comprometido”.

Outro autor eventualmente desconhecido do leitor brasileiro é Antônio Agostinho Neto. Nascido em Luanda (Angola) em 1922, filho de pastor de igreja protestante e mãe professora, veio de família muito humilde: seu país, uma colônia portuguesa desde 1482. Decidido a cursar Medicina, conseguiu reunir recursos e matriculou-se na Faculdade de Medicina de Coimbra se tornando médico em 1958.

Em Lisboa inicia sua atividade política sendo eleito representante da Juventude das Colônias Portuguesas, o que lhe valeu a prisão quando participava de ato público. Em 1959, Agostinho Neto retorna a Luanda e integra o Movimento Popular para a Libertação da Angola (MPLA), fundado em 10 de Dezembro de 1956. A repressão na colônia era intensa e 6 meses depois de sua chegada já foi preso.

O MPLA persistiu com uma atuação importante organizando assaltos em prisões para libertar presos políticos e representando a luta pela libertação da Angola, contando com apoio da União Soviética e de Cuba. Seria apenas com a Revolução dos Cravos em Portugal em 1974 que o panorama político mudaria de forma favorável às colônias Portuguesas: em menos de um ano, em 11 de Novembro de 1975, após 14 anos de luta contra o colonialismo, Agostinho Neto, já então reconhecido dirigente do MPLA, instituiu a República Popular de Angola, da qual foi aclamado presidente.

O texto selecionado pela Expressão Popular é na verdade um discurso sem muitas referências quanto à data e local onde foi pronunciado. Seu título: “Quem é o Inimigo? Qual é o nosso objetivo”.  

A linguagem é simples, objetiva e um pouco diferente dos demais textos por não referir-se aos conceitos marxistas: a verdade é que os movimentos de libertação nacional da África e Ásia do pós-guerra, ainda que muitos apoiados pela União Soviética, passaram para a história com a denominação de países “não alinhados”, considerando o contexto de bipolarização da Guerra Fria. O próprio Agostinho faz menção ao não alinhamento bem como à crise do campo socialista que àquela altura encontrava, no campo das relações internacionais, importantes fricções internas.  

De toda a forma, mesmo não havendo um alinhamento formal, do ponto de vista material, coincidem os pontos de vista da luta anti-colonialista na África com as lutas anti-imperialista na América Latina (Mariátegui, Che, Prestes, etc) e Ásia (Ho-Chi Mih).  

O objetivo do texto é listar quem é o inimigo e ainda que o autor identifique a presença do racismo como elemento estrutural do colonialismo, o que está por detrás dele é...o imperialismo e este é identificado como o inimigo principal. Nesse sentido, dá um salto de qualidade em sua análise, identificando como irmãos os povos oprimidos tanto de Angola, quanto de Portugal.  

Por outro lado, quando responde a pergunta “o que queremos?”, Agostinho fala sobre socialismo e luta contra o capitalismo.   

“E no fundo, o que é que nós queremos? Não penso que a luta de libertação se dirija no sentido da inversão dos sistemas de opressão de modo que o senhor de hoje seja o escravo de amanhã. Pensar assim, será querer caminhar contra o sentido da história. As atitudes de vingança social não são as que poderão trazer aquilo que desejamos, ou seja, a liberdade do homem. É que as lutas de libertação, desejo sublinha-lo de novo, não se destinam só a corrigir violentamente as relações entre os homens e especialmente as relações de produção, dentro do país – elas constituem um fator importante para a transformação positiva de todo o nosso continente e do mundo inteiro. A luta de libertação nacional é também um meio de quebrar todo um sistema injusto existente no mundo”.

Buscar os pontos em comum e eventuais diferenças de perspectiva dos autores dentre as ricas experiências revolucionárias vivenciadas por todo globo ao longo do século XX é o que de mais positivo se pode extrair deste volume de textos organizados pela Ed. Expressão Popular. 

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

“O Crime do Padre Amaro” – Eça de Queirós


Resenha Livro # 134– “O Crime do Padre Amaro” – Eça De Queirós - Ed. Ática




Antecedentes

Eça de Queirós é provavelmente o mais importante escritor português do séc. XIX. Foi fundador da escola realista/naturalista naquele país justamente a partir do romance “O Crime do Padre Amaro”, obra satírica que faz crítica sobre a conduta do clero, o problema do celibato e a hipocrisia da atrasada sociedade portuguesa.

Ainda dentro da perspectiva realista, voltada à crítica de costumes e à descrição da realidade de forma objetiva, em contraponto ao romantismo, Eça de Queirós escreveria “O Primo Basílio”, história de um triângulo amoroso em que a leitura daqueles romances românticos serviria de motivo para engendrar a traição desde a figura da leitora Luísa e os “Maias”, a última obra propriamente realista do escritor português.

Na verdade, é possível dividir a produção literária de Eça de Queirós em três momentos. Sua primeira fase corresponde ao período de sua juventude quando do início de sua jornada literária desde quando frequentava o tradicional curso de Direito em Coimbrã. Ainda influenciado pelo romantismo, publica versos e um livro de Contos (1902) ainda dentro dos parâmetros do romantismo, marcados pelo subjetivismo em contraponto ao objetivismo, pela concepção da arte pela arte (sem interesses de intervir na sociedade e transformá-la), pelo idealismo ao contrário do realismo.

A segunda fase é o momento realista/naturalista, inaugurado pelo “Crime do Padre Amaro” (1876), com “O Primo Basílio” (1878) e “Os Maias” (1888), correspondente ao período mais conhecido de Eça de Queirós.

Finalmente, temos a terceira fase, da qual “A Ilustre Casa de Ramires” (1900)  e “A Cidade e as Serras” (1901) expressam uma espécie de conciliação de Eça com o gênero humano, uma menor dose de ironia, de pessimismo e um maior humanismo no tratamento com as personagens – o que há de comum entre a 2ª e a 3ª fases é a beleza na forma com que descreve as paisagens e a forma poética que se aguça nos últimos romances, fruto de influências da escola do simbolismo.  

A juventude de Eça – a Descoberta do Realismo

Será todavia em Coimbrã  que Eça de Queirós conhecerá os acadêmicos Antero de Quental e Teófilo Braga. Ambos foram escritores que junto a Eça de Queirós revolucionaram a literatura portuguesa, pondo fim à hegemonia da escola romântica e, através das conferências, introduzindo as ideias do realismo. Teófilo Braga se tornaria posteriormente o primeiro presidente da República Portuguesa. Antero de Quental foi poeta realista e divulgador de ideias socialistas em Portugal.

Vale destacar algumas palavras sobre a vida pessoal de Eça de Queirós.

Diplomado aos 21 anos do curso de direito, Eça parte de Lisboa onde inicia uma carreira como advogado e jornalista, sem muito sucesso. Em 1869 presta concurso para serviço diplomático e é aprovado para nomeação no Egito. Um ano antes, exerce durante um ano na cidade de Leiria uma função de administrador do conselho do Estado. Leiria é uma cidade provinciana cheia de padrecos e beatas e é desde lá que Eça redige o seu “O Crime do Padre Amaro”, o seu romance mais ácido e que mais escandalizou as pessoas de seu tempo. E não poderia ser diferente.

Como dizíamos, desde Coimbrã, Eça teve contato com pensadores que influenciavam os pensadores realistas, desde o positivista Comte, até Taine, Darwin e Renan. Sua tese central desde o romance é a inviabilidade do celibato clerical e os malefícios sociais da hipocrisia religiosa, dos pressupostos bíblicos que vão contra a realidade da matéria, das exigências do meio e da natureza do homem.

O Crime do Padre Amaro

A narrativa refere-se à história de um Padre, o Padre Amaro. Criado por uma madrinha, sempre no meio de mulheres desde pequeno, desenvolve um temperamento lânguido, suscetível até a vida adulta às seduções femininas. Tornar-se-ia padre independente de sua vontade, em decorrência de uma promessa. Quando nomeado pároco para uma cidade provinciana (Leiria), Amaro desenvolve uma forte paixão por Amélia, a mulher mais bela da cidade e daí passa a frequentar a casa da pequena.

O amor é correspondido e aos poucos vai se criando todo o arranjo para encontros libidinosos, sempre sob os pretextos religiosos (ora preparar a menina para ser freira, ora encontros dentro da casa do Ferreiro e de sua filha doente para alfabetizá-la). Ao contrário dos romances românticos em que o amor é um fim sob o qual qualquer meio se justifica, no romance realista, inverte-se a relação – o amor é um pretexto ou um meio hipócrita pelo qual se evidencia a má conduta e personalidade do padre e da mulher que resvalam no trágico-cômico.

O elemento trágico revela-se ao final do romance, com o triste fim de Amélia, que na verdade parece ser a única a sentir culpa daquela relação – culpa perante os olhos de deus, o que é resultado de sua beatice e de sua criação junto à mãe também beata, à madrinha também beata e a sociedade também beata o que em última instância à levará (a beatice) à morte. O elemento cômico reside no Padre que deveria ser o guardião principal da alma da pobre Amélia e se revela desde sempre uma besta egoísta que em dado momento deseja a morte tanto da mulher quanto de sua criança grávida (pelo bem de “deus” – qual seja, de si próprio). Nada beato o Padre Amaro.

O capítulo final do Crime do Padre Amaro como que revela a intencionalidade geral do romance. Uma cena no centro de Lisboa demonstra pessoas observando jornaleiros dizendo as últimas notícias de Paris: tratava-se da repressão à Comuna de 1871, ao levante parisiense em que operários e populares sacudiram aquela cidade, tomaram de assalto os céus, expulsando o clero e os burgueses e auto-governando a capital francesa por 72 dias. Após a repressão da reação, encontram-se na rua o Padre Amaro e o Cônego Dias, a observar as ruas de Lisboa. 

Eça faz de maneira irônica o leitor refletir da seguinte forma: os portugueses com a sua sociedade decadente e sua Igreja pervertida a dominar a sua sociedade sentem-se superiores aos “republicanos” e socialistas franceses, sem observar que atrasados não são os franceses mas...Portugal.


Esta era a linha de raciocínio dos modernizadores conferencistas que queriam imprimir à literatura portuguesa como Eça de Queirós, Antero de Quental e outros. E quando, ao término do romance, o Padre encostava no busto de Camões, ficava apenas na memória do tempo em que Portugal fora de fato uma vanguarda para o mundo - a era das Grandes Navegações e uma sensação de nostalgia pelo passado grandioso do Império Português!

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

“Caio Prado Jr. E a Nacionalização do Marxismo no Brasil” – Bernardo Ricupero

“Caio Prado Jr. E a Nacionalização do Marxismo no Brasil” – Bernardo Ricupero



Resenha Livro #133 - “Caio Prado Jr. E a Nacionalização do Marxismo no Brasil” – Bernardo Ricupero – Editora 34

Caio Prado Jr. pertence a uma pioneira geração de pensadores que voltaram seus estudos para as origens do Brasil dentro de um esforço comum de se apontar para uma identidade nacional. De forma semelhante ao que na arte ocorrera com os pioneiros da Semana da Arte Moderna de 1922 que pela primeira vez pleiteavam criar uma forma artística não importada da Europa, aquela “Geração de 1930” buscava traçar as especificidades do Brasil num contexto histórico onde estava se forjando ao Brasil a sua nacionalidade – este seria um dos sentidos de longa duração da Revolução de 1930. 

São três os grandes expoentes da “Geração de 1930”, cada um dissertando sobre o Brasil através de pressupostos teóricos distintos. Gilberto Freire e seu “Casa Grande e Senzala” partia de uma interpretação culturalista do Brasil, podendo-se afirmar que o seu ponto de vista partia desde a Casa Grande, recolhendo os traços da língua, da música popular, da culinária, dos jogos e cantigas infantis, enfim, dos elementos mais cotidianos e miúdos da vida do Brasil colonial. Sérgio Buarque de Hollanda e seu “Raízes do Brasil” já oferecia uma visão sociológica desde um ponto de vista weberiano sobre o passado colonial, consagrando algumas categorias que ficariam para a posterioridade, como a do “Homem Cordial”.

E finalmente Caio Prado Jr. com seu "Formação do Brasil Contemporâneo", um estudo sobre o Brasil colônia desde um ponto de vista marxista que irá se diferenciar por sua originalidade na aplicação daquela corrente metodológica respeitando as especificidades e as características particulares em que se deram a colonização do Brasil – o sentido da nossa colonização correspondendo a atender às exigências econômicas da metrópole colonial, o escopo da colonização sendo uma vasta empresa comercial voltada à exploração dos recursos naturais de um território virgem, tudo sempre em proveito do comércio europeu.

 “Caio Prado Jr. e a Nacionalização do Marxismo no Brasil” é uma bela pesquisa do Departamento de Ciência Política da USP de autoria de Bernardo Ricupero. Seu objeto de estudo são o texto e o contexto da produção política do autor paulista, o que remete invariavelmente para sua produção não só como acadêmico mas como militante, papel eventualmente menos conhecido de Caio Prado.

De fato, Caio Prado Jr. foi militante do PCB , ainda que nunca tenha de fato exercido um papel de liderança no partido. Seu texto de característica mais notadamente político “A Revolução Brasileira”(1966) é um grande balanço acerca das razões da derrota da esquerda no processo que culminou no golpe militar de 1964, além de reiteração de críticas a interpretações equivocadas da esquerda sobre a realidade brasileira e a questão agrária.

Aliás, seria justamente as diferenças quanto às análises da realidade e do nosso passado o ponto que colocaria o intelectual na marginalidade do partido.

“Apesar de reconhecer que ‘o regime de capitanias foi em princípio caracteristicamente feudal’, Caio Prado Jr. Nota que ‘este ensaio de feudalismo não vingou’, não deixando ‘traço algum de relevo na formação histórica do Brasil”.

“É inclusive esse questionamento do pretenso passado feudal do Brasil um dos fatores que mais contribuiu para o isolamento de Caio Prado no partido ao qual dedicou os melhores anos de sua vida: o PCB. Caio, em compensação, deu provas, assim, de independência intelectual, além de mostrar que, diferentemente da maior parte de nossos comunistas, possuía a rara capacidade de saber ir além das aparências, captando realmente o que foi a essência da Colônia brasileira” (P.150)

Esta essência diz respeito ao empreendimento comercial do qual a colônia é inteiramente dependente e que desde início se vê montado enquanto um ente do tipo comercial, diferentemente de um regime feudal que, na sua origem medieval, relaciona-se às relações de suserania e vassalagem, à relação de dependência jurídico-política pessoal perante o senhor feudal, que detém o controle jurídico, militar e mesmo espiritual de suas dependências e daqueles que para ele laboram.

As nossas capitanias hereditárias remetiam ao feudalismo mais sua origem jurídica do que na realidade cotidiana: o sentido geral da colonização permanecia sendo um empreendimento comercial a serviço da metrópole. Esta caracterização colocava Caio Prado Jr. numa posição distinta de historiadores renomados do PCB como Nelson Werneck Sodré e Leôncio Basbaum que reconheciam um passado feudal no Brasil.  

Esta é uma de outras discussões abertas “no texto” e no “contexto” da obra de Caio Prado Jr. – sendo o texto a discussão de suas próprias ideias e o contexto reflexões sobre o pensamento marxista na América Latina (de onde emergem especialmente as figuras de Caio Prado Jr. e do peruano J. C. Mariátegui) e o itinerário marxista no Brasil. No que tange o texto, tem-se em vista a preocupação do pensador paulista – bem como de muitos que o sucederam – quanto ao desenvolvimento do Brasil, qual seja, a sua conformação de Colônia em Nação.  Finalmente, a pesquisa encerra-se com uma reflexão sobre a atualidade do pensamento de Caio Prado Jr. – e aqui, infelizmente, diante da inconclusa consolidação de um projeto de desenvolvimento nacional – que seria em particular desenvolvido por Caio em sua revista Civilização Brasileira - permanece inteiramente em aberto num país onde não há reforma agrária, não há reforma urbana e persiste um nível de desigualdade social assombroso.



De um certa maneira, o sentido da colonização nos assombra desde os tempos coloniais, pois se a independência política deu ao país a autonomia formal ou diversas constituições, sua economia segue dependente e periférica dentro do sistema mundial. 

sábado, 1 de novembro de 2014

“Helena” – Machado de Assis


Resenha Livro #132 “Helena” – Machado de Assis – Ed. Ática



                Helena corresponde ao terceiro romance publicado por Machado de Assis figurando dentre as obras reconhecidas como parte do conjunto de sua primeira fase como escritor.
Como se sabe, a crítica literária é praticamente consensual em dividir o conjunto da obra de Machado de Assis (romances e contos) em dois grandes períodos: a primeira fase de juventude em que a sua prosa tende à escola romântica, ou mais especificamente, à terceira fase do romantismo, a qual delinearemos a seguir, e a segunda fase, que tem como ruptura o marco inovador de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, inaugurando a fase propriamente realista do autor.
                Tal divisão, na verdade, tem algo de arbitrário desde que os romances da fase romântica de Machado de Assis podem ser considerados na verdade como obras em que o processo que o configurariam como a mais perspicaz escritor realista quanto à capacidade de análise crítica dos costumes da sociedade fluminense do segundo reinado bem como de uma profunda análise psicológica, jamais vista até então na literatura brasileira, estas qualidades das obras maduras já se vislumbram de forma embrionária nos romances da 1ª fase.
Em “Helena” (1876), o leitor entra em contato efetivamente com a realidade de uma família que se vê abalada pelo desenlace de uma série de fatalidades que tem como ponto de partida a morte do Conselheiro Vale e o seu testamento reconhecendo e indicando uma filha até então desconhecida pelos seus familiares, que deveria a partir de então ser agregada à família como se fosse legítima irmã do filho Estácio e da irmã do Conselheiro, D. Úrsula.
A história de “Helena” remete tipicamente ao que hoje seriam as novelas da televisão mas que antigamente eram os romances escritos nos jornais e lidos igualmente pelo público feminino. Com a diferença de que já em “Helena”, ainda que não se vislumbra ora as sacadas filosóficas e todos os arranjos experimentais de um romance revolucionário que foi“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, nem tão pouco se constata ainda os traços da escola realista, como uma aguda e profunda análise psicológica dos personagens, o esforço em desmascarar os “interesses” que estão por de trás das relações sociais – aqui, sendo um romance ainda com os pés dentro do romantismo, o amor ainda é reconhecido como elemento legítimo e não como um interesse associado a questões de ordem pecuniária, por ex.
O Romantismo no Brasil pode ser dividido em três fases – a primeira fase nacionalista da qual José de Alencar e seu“O Guarani” são uma expressão comumente lembrada. A segunda fase byronista da qual Álvares de Azevedo e seu “Lyra dos Vinte Anos” costuma ser mais comentado e finalmente a terceira fase que seria propriamente uma transição entre o romantismo e o realismo, da qual “Helena” é um típico exemplo, bem como todos os demais romances da fase jovem de Machado de Assis: “Ressurreição” (1872); “A Mão e a Luva” (1874) e “Iaiá Garcia” (1878). Trata-se de um período em que o idealismo romântico vai se convertendo em objetividade e falta de envolvimento sentimental, o que já se constata de uma certa forma no estilo da narrativa de Helena, feita em terceira pessoa.
Já na terceira fase do romantismo constata-se uma representação mais fiel da realidade com um esforço de se descrever os ambientes e uma narrativa mais minuciosa e detalhista das paisagens de forma a situar o leitor de forma mais objetiva onde se dão as cenas, o que mais uma vez remete à ideia de objetividade, em contraponto ao subjetivismo romântico.
Importante contextualizar que do ponto de vista histórico a escola realista e depois o naturalismo de fins do séc. XIX estão articulados com uma série de ideias em voga na Europa relacionadas ao determinismo social – segundo o qual o homem é fruto e depende de maneira incondicional de seu meio, para além de teorias racistas que justificariam a intervenção imperialista tardia dos estados europeus em África e Ásia – darwinismo social, determinismo, conceito de direito penal do autor a partir de Lombroso, positivismo. Era um tempo em que se podia falar em “apogeu da razão”, havendo por toda a parte defensores da ideia de que através da ciência, do conhecimento e da razão fosse possível promover o progresso sem qualquer impeditivos.
Do ponto de vista literário a terceira fase do romantismo, sua transição para o realismo correspondendo à era de expansão do capital em nível mundial. Dava conta de um momento de otimismo da burguesia que expressava a sua visão social de mundo em seus romances desde aqueles gêneros literários.

Machado de Assis que curiosamente foi neto de escravos, vendedor de doces e, numa rara exceção para o Brasil do 2º Império, ascendeu socialmente em vida, tornou-se reconhecido como grande escritor e foi fundador da Academia Brasileira de Letras. Apresenta na sua literatura documentos valiosos acerca da visão social de mundo da burguesia social nascente do Brasil. Mais do que o mero prazer de se desfrutar a arte, sua literatura é importante para se realmente conhecer e entrar em contato com fontes históricas preciosas, particularmente quanto à historia citadina fluminense do II Império.