sexta-feira, 19 de setembro de 2014

“Stálin – História crítica de uma lenda negra” – Domenico Losurdo



Resenha livro #125 “Stálin – História crítica  de uma lenda negra” – Domenico Losurdo – Ed. Revan

                Certos personagens da história, quando são biografados, resultam em debates historiográficos que tendem a interpretações bastante parciais o que em si já revela algum significado do legado e da eventual utilização política pelos intérpretes, seja para demonizar, seja para vangloriar. Tal fato pode ser explicado talvez pelo curto espaço de tempo entre o período de vida do personagem e de sua história. Mas não só: no que se refere ao papel do indivíduo na história, há momentos em que alguns indivíduos projetam-se de tal forma que acabam assinalando (ainda que de forma simbólica) ora um regime político, ora uma etapa de um desenvolvimento histórico. Julgar o personagem significa fazer um juízo de valor sobre os pressupostos políticos por de trás daquela liderança. Tal vem a ser o caso de J. Stalin e o assim chamado “socialismo real” na URSS.

Nas biografias de Stálin observa-se dois enfoques: desde o ponto de vista da historiografia liberal burguesa que parte da percepção segundo a qual o stalinismo – ou mais acertadamente o marxismo-leninismo – engendram necessariamente regimes totalitários;  e mesmo dentro da esquerda as correntes políticas associadas ao trotskysmo irão reproduzir a demonização daquele personagem com algumas nuanças na crítica: o que há de comum aqui é sempre a crítica sem critérios do indivíduo Stálin e sua responsabilização pelos descaminhos do socialismo na URSS.

A crítica sob estes dois enfoques aparece como ponto de partida nesta valorosa análise biográfica do historiador italiano Dominico Losurdo. É a excessiva (e pouco verossímil) a redução daquele dirigente a um tipo como  “obsessivo”, “neurótico”, “sem escrúpulos”, etc. Não explica por exemplo como não só os bustos de Lênin mas os de Joseph Stálin estão em pé desde os Metrôs de Moscou e pelas ruas da Capital e São Petersburgo, na Rússia de hoje, mesmo após a restauração capitalista.

Mas não só. Este conjunto de ensaios sobre Stálin e "stalinismo" é na verdade um grande contraponto àquelas grandes tendências observadas na historiografia tradicional. Losurdo busca analisar as origens do esforço em se demonizar o personagem histórico e confrontar tal movimento com a percepção da Stálin em diversos momentos, o que surpreende bastante um leitor habituado apenas a recepcionar as versões derivadas do stalinismo do XX Congresso do PCUS quando foram feitas as denúncias dos "crimes" de Stálin e o “culto à personalidade”. O fato é que até dois anos antes do congresso, na morte de Stálin, em 1954, o mesmo era tipo como um deus, não só para o povo soviético, mas para a maior parte do movimento comunista do mundo. A Guerra Patriótica, assim chamada a mobilização do exército vermelho que esmagou e destruiu as pretensões de colonização nazi-fascista na Europa oriental a partir da operação Barbarrossa, obteve reconhecimento inclusive das lideranças políticas do ocidente liberal, incluindo a capacidade de Stálin enquanto estrategista militar.

Afinal, ao contrário de uma calúnia posteriormente propagada, Stálin transferiu sua indústria de armamentos já antes da guerra para o oriente e recusou-se de maneira intencional a mover todo o seu aparelho militar para as fronteiras do oeste como parte de uma estratégia militar vitoriosa, enquanto o tratado militar junto à Alemanha de 1939 teria como escopo ganhar tempo para a URSS estar à altura diante de uma invasão que de fato concretizou-se. Outra parcela de reconhecimento pela vitória do exército vermelho deve-se ao Marechal Zhukov - ver resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2016/08/zhukov-frederico-branco.html

Chegou-se ao cúmulo da calúnia de se dizer que Stálin esteve tão despreparado com a invasão alemã que se abateu e abandonou o poder por alguns dias, o que é uma falsificação da história, segundo Losurdo.  Stálin muito menos haveria de dirigir a guerra de forma indiferente à opinião de seus assessores, conforme a mitologia antistalinista:

“Durante a II Guerra, Stálin convida os seus interlocutores a se exprimires sem rodeios de palavras, discute animadamente  e alterca até com Molotov, que por sua vez, embora evitando pôr em discussão a hierarquia, continua a manter a sua opinão. A julgar pelo testemunho do almirante Nikolai Kusnezov, o líder supremo “apreciava de modo particular aqueles camaradas que raciocinavam com a sua cabeça e não hesitavam em exprimir o seu ponto de vista sem concessões”  

Mas como dizíamos, provavelmente no século XX apenas Hitler foi posteriormente tão amaldiçoado e combatido quanto Stálin por historiadores, jornalistas e pensadores, tanto pela direita liberal quanto por setores da esquerda, e é válido aqui refletir sobre a intencionalidade de tais ataques.

Arendt dedica em seu  “Origens do Totalitarismo” toda uma tese segundo a qual Hitler e Stálin poderiam ser equiparados o que é muito bem desconstruído por Losurdo por motivos bastante evidentes (revelando mais uma vez o esforço ideológico daquela equiparação): não há dentro do movimento comunista e no "stalinismo" qualquer ranço ou aspecto associado a uma luta pela eliminação de uma “raça inferior” mas muito pelo contrário, o movimento se lança pela emancipação dos povos, tendo sido aliás a única nação que ajuda diretamente a Espanha em sua luta nas brigadas internacionais contra Franco. Ademais, a URSS propagandeia a liberação dos povos coloniais e mesmo a luta da emancipação dos negros, ao contrários dos EUA que mesmo no pós-guerra ainda escorraça negros nos estados sulistas e promove guerras raciais no Comboja e Vietnã, o mesmo podendo ser dito em relação a Grã-Bretanha e Índia, com números assombrosos de mortos. Neste ponto, o “ocidente liberal” em nada deve de lição de moral ao "stalinismo".

Ademais, nos gulags, os presos políticos recebem tratamento ora de “camaradas” ora de “cidadãos” pelos soldados, podiam trocar cartas, ler jornais, acessar bibliotecas, se comunicar e não são tidos como seres humanos de segunda categoria ou muito menos do que isso. Ora nada disse existe nas prisões nazistas ou nos campos de concentração colonial da Grã-Bretanha na África, onde a noção de raça superior engendra nada mais do que o holocausto, os presos são mortos indiscriminadamente e sequer são tidos como entes humanos (jamais como “camaradas” e cidadãos”, como no caso da URSS).  Nada comparado com genocídios e crimes contra humanidades positivamos pelo Direito Internacional desde Nuremberg até Ruanda. 

Outra questão comumente negligenciada é o vasto desenvolvimento econômico e cultural da URSS num curto espaço de tempo que assombrou o mundo durante o período de Stálin e que teria sido decisivo também para criar o entusiasmo em torno de sua figura – há se constatar que o “culto à personalidade”  antes de ser um fenômeno meramente vertical ou de cima para baixo é uma relação dialética que teria sido impensável sem aquele desenvolvimento assombroso. 

Assim afirma o historiador Losurdo sobre a URSS stalinista de 1936:

“Não é apenas a elevação do padrão de vida que motiva este “entusiasmo”. Há muito mais: o “real desenvolvimento” das nações até aquele momento marginalizadas; a conquista por parte das mulheres da igualdade jurídica com os homens, acompanhada de uma melhoria do estatus social; o surgimento de um “sólido sistema de proteção social” que inclui pensões, assistência médica, proteção das grávidas, abonos familiares”; “o considerável desenvolvimento da educação e da esfera intelectual no seu conjunto” com a extensão da rede de bibliotecas e das salas de leituras e a difusão do gosto das artes e da poesia; é o advento tumultuado e exaltante da modernidade (urbanização, família nuclear, mobilidade social). Trata-se de processos que caracterizam a história da Rússia soviética no seu conjunto mas que começam a decolar exatamente nos anos de Stálin”

É certo que todo este desenvolvimento num curto espaço de tempo teria como preço a pagar uma revolução que se perdura no tempo – para além de outubro, houve a NEP, houve a coletivização forçada nos campos, houve o enfrentamento dos Koulags e houve repressão aos especuladores. Houve endurecimento político do regime sem o qual um país então camponês não poderia passar pelo processo de modernização supracitado naquele curto período de tempo – e já vimos como aquele desenvolvimento foi decisivo diante da grande Guerra Patriótica que ainda assim levou à morte cerca de 20 milhões de Russos.

Por mais que a Guerra Fria tenha formalmente tipo o seu fim com o a queda do muro de Berlim e a dissolução da URSS em 1989 e 1991 respectivamente, ainda faltam fontes para um estudo historiográfico mais objetivo e menos parcial da história da Rússia nos anos Stálin e mesmo estudos mais objetivos sobre a vida de Stálin, ao menos para o público Brasileiro. É sintomática a persistência ainda nos dias de hoje da manutenção deste personagem histórico na penumbra e no esquecimento conquanto, conforme as muitas informações trazidas pela pesquisa de Domenico Losurdo, o que se trata, até o presente momento, é da construção de uma lenda, ou de uma lenda negra. Para os comunistas e para os historiadores comprometidos com a objetividade e a crítica, deve-se partir de uma crítica radical desta “lenda” já se buscando inicialmente responder a pergunta: quem tem medo de Joseph Stálin hoje, em 2014? A notícia positiva é que cresce em igual proporção um real interesse pelo marxismo-leninismo (e particularmente pela real história de Stálin e do dito "stalinismo") acompanhada de um ascendente sentimento de desconfiança e repúdio em face da herança legada por Leon Trótsky. 




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