terça-feira, 26 de agosto de 2014

“A Revolução Soviética (1905-1945) – O Socialismo Num Só País” – Paulo F. Vizentini (org.)



Resenha Livro# 121 “A Revolução Soviética (1905-1945) – O Socialismo Num Só País” – Paulo F. Vizentini (org.) – Ed. Mercado Aberto – Série Revisão 36
 
 

A história da revolução russa bem como os sentidos políticos e a forma como aquele grandioso evento impactou o mundo ao longo do século XX pode ser contada de diversas formas, a depender não só dos pressupostos teóricos metodológicos do historiador (quais são suas fontes, os livros utilizados, os documentos pesquisados, a forma como se interpretou tais documentos), mas especificamente a orientação política daquele narrador do passado.

Tal fato ganha evidência quando falamos da história da Revolução Soviética na medida em que a evolução histórica que passa do ensaio geral da revolução com as mobilizações contra o czarismo em 1905, a participação da Rússia na 1ª Guerra Mundial incrementando o descontentamento popular, a queda, afinal, do Czar em fevereiro e a tomada do poder pelos bolcheviques em outubro de 1917, todos estes fatos, criariam tamanha repercussão no mundo que criariam mitos, falsificações mais ou menos intencionais, narrativas que expressem visões sociais de mundo distintas, em que pese arvorarem-se frequentemente estarem expressando uma versão efetivamente verdadeira ou objetiva daquela história.

Uma revolução envolve um conflito ou um acirramento entre as classes sociais, que também vão reproduzir a disputa no âmbito da historiografia.

Este volume de ensaios corresponde a uma reunião de textos decorrentes de palestras proferidas por ocasião da Semana de Estudos Sobre a Revolução Soviética em novembro de 1987 na UFRGS, coordenada pelo professor Paulo Vizentini e os professores Luiz Dário Teixeira Ribeiro, Luiz Roberto Lopez e Vera Regina Cohen. Os textos vão da Rússia pré-revolucionária de 1905 até os aspectos culturais (literatura, arte e música) da Rússia imediatamente antes e após a revolução, até o stalinismo.

Como se trata de um trabalho com fins acadêmico, não se nota, ao contrário de certa literatura baseada em manuais trotskystas, uma velha tendência em reiterar velhos mitos, como o de demonizar Stalin ou o Stalinismo, por exemplo.

As relações históricas – vistas sob um ângulo mais profundo, a partir de quem busca realmente entender e explicar fenômenos aparentemente singulares como o que foi os movimentos de política internacional de Stálin no contexto imediatamente anterior à II Guerra – não uma “mera traição pessoal” consoante o fácil receituário trotskysta – mas como a expressão (vitoriosa ao final) de uma orientação política baseada na linha do “socialismo num só país”.

Assim preleciona Paulo V.

“O Stalinismo não se explica pelo socialismo, mas pelas características russas, pela dureza das condições histórico-sociais em que a coletividade e a industrialização tiveram de ser realizadas, e também, em grande medida, pela conjuntura internacional, tanto pela hostilidade externa como pelo isolamento e falta de apoio para vencer o atraso do país (historicamente, a URRS foi o único país que empreendeu uma modernização revolucionária em condições tão difíceis). Visões puramente intelectuais do fenômeno stalinista provocam irônicas distorções, em que mesmo marxistas situam suas análises apenas no plano ideológico, transformando-se em personalistas e produzindo uma espécie de história das elites (abordando apenas lutas dentro da cúpula partidária). Infelizmente, o povo raramente escreve, e obras intelectuais como memórias de Victor Serge, por mais honestas que sejam, dão apenas uma visão parcial da realidade.”

Como dizíamos, muito dos interesses políticos que perpassam a historiografia da história da revolução contribuem para o maniqueísmo supracitado, particularmente quando se referem especificamente à figura de Stalin e ao legado do stalinismo.

O problema da coletivização forçada, por exemplo, costuma ser relatado pelos historiadores da burguesia como um episódio equivalente ao holocausto nazista, o que consiste num absurdo e numa falácia.

O que pode-se colocar é que o enfrentamento aos Kulags (grandes proprietários rurais) foi decorrente do fim da política da NEP concomitante a uma política dura e de vida ou morte para o estado soviético que sucumbia à fome, que os historiadores sérios claramente colocam de uma luta entre socialismo contra capitalistas e especuladores do campo – em contraponto aos Kulags, as cooperativas estatais, o controle e o monopólio estatal das máquinas agrícolas, para além do fato da cidade (meios de produção) estar sob domínio do estado. Stálin derrotou os grandes camponeses e este fato corroborou para fortalecer a URRS para os futuros embates da II Guerra Mundial:

Ainda Paulo V.

“A Revolução Pelo Alto feita a ferro e fogo pelo stalinismo permitiu à União Soviética sobreviver à invasão do melhor exército do mundo. Não se deve esquecer que uma guerra desta magnitude exigia uma organização industrial, bélica, tecnológica e alimentar complexas, bem como a mobilização popular total e a politização do Exército, e o Estado socialista demonstrou mais capacidade para realizar estas tarefas do que muitos esperavam, caso contrário teria sido derrotado”.

O que há de se destacar diante destes artigos é que a história da Revolução Russa, bem como a de qualquer evento que envolva o conflito de classes antagônicas especialmente considerando a sua recente projeção na história, é suscetível de muitos desenganos, inclusive com muitos discursos errados sendo reproduzidos dentro da esquerda.

São os próprios historiadores gaúchos que dão conta disto ao explicarem pacientemente como a III Internacional não foi “enterrada” por Stálin como um ato de traição ao internacionalismo (argumento propalado comumente pelos trotskystas), mas como uma ação geopolítica do pós-guerra num contexto em o Comitern na prática não tinha qualquer eficácia – e mais importante, relevando-se fatos comumente esquecidos - como a situação da própria URRS depois da II Guerra, completamente devastada em seus campos abandonados e 26 milhões de mortos – impotente frente aos EUA que saiam da Guerra depois de Hiroshima (mais de 200 .000 mortos) e Nagasaki (mais de 100. 000) mortos. Diante de circunstâncias internas tão graves não era Stálin, mas o povo soviético que não estava mobilizado para impulsionar a revolução na Europa e na Ásia.

É tempo de parar de replicar frases feitas seja pela historiografia burguesa seja pelos seus papagaios trotskystas. É tempo de olhar a história da Revolução Russa efetivamente com os olhos de um historiador, considerando as condições objetivas, qual seja, as relações de classe, as lutas entre as classes sociais e sua expressão política na história sem apriorismos e sem determinismos, mas de forma dialética e compromissado com a verdade.  Livros escritos por historiadores profissionais com este tipo de compromisso ajudam, neste sentido.

 

 

sábado, 23 de agosto de 2014

“Le Trotskisme Cet Antiléninisme” – Léo Figuères

Resenha Livro #120 “Le Trotskisme Cet Antiléninisme” – Léo Figuères – Ed. Praxis – Lisboa 1971




Sobre autor e obra

Léo Figuère publicou este livro na condição de membro do Partido Comunista Francês. Tivemos acesso à uma tradução portuguesa de 1971 que não contém a data da publicação do original em francês. Não se sabe porque, mas a tradução do português é “O Trotskysmo”.

Certamente, consoante os últimos capítulos que tratam do maio de 1968 Francês, a brochura deve ter sido escrita entre 1969-1971. A própria orientação política, que perpassa todo o texto e que certamente iria de acordo com a linha oficial do Partido Comunista Francês, sinalizava não só a linha oficial do partido francês mas a do movimento comunista internacional. Já estamos em processo de desestalinização pós XX Congresso. Todavia as críticas a Stálin são parciais e tem-se em vista à preservação da imagem da URRS diante do contexto geopolítico da Guerra Fria.  

Figuère integrou o comitê central do PCF entre 1945-1976, além de dirigir o secretariado do partido entre 1959-1964. Ademais, foi diretor da revista teórica do PCF “Cadernos do Comunismo”.

Como dirigente do Partido Comunista Francês, pode observar, particularmente diante das experiências das lutas das frentes populares anti-fascistas e dos levantes do maio de 1968 a influência do trotskysmo, particularmente diante da juventude daquele país. Talvez estes elementos devam ter motivado os dirigentes do PCF a escrever a brochura.

Neste seu material, Figuères buscará (i) fazer um resgate histórico do papel de Leon Trótsky antes, durante e depois da Revolução Russa, com o escopo final de demonstrar como o trotskysmo esteve historicamente a maior parte do tempo contra o bolchevismo, Lênin e seus ensinamentos; (ii) neste último ponto, dará uma atenção especial ao problema da revolução permanente e a tática leninista da revolução e, a partir de uma exposição de fontes primárias do próprio Lênin, demonstrará como a construção teórica do dirigente bolchevique em nada se assemelha à tese da teoria da revolução permanente, em que pese os argumentos de Trótsky correspondentes aos textos após 1924; (iii) ainda quanto às diferenças táticas fundamentais que opuseram na história Trótsky e Lênin, a célebre polêmica entre ambos acerca dos tratados de paz a serem assinados em separado com a Alemanha em Brest-Litoviski na I Guerra, na qual a história demonstrou cabalmente a justeza do ponto de vista leninista; (iv) o problema da criação das opoisições partidárias que surgiram desde pequenas escaramuças em manifestações de ruas até atividades ilegais que culminaram com a exclusão do partido de Trótsky; e (v) o trotskysmo na França

Como se sabe, o embate de Trótsky e trotskystas e os partidos comunistas ligados à URSS perpassou todo o século XX e não poderia estar livre de toda forma de falsificações e deformações, a depender dos narradores, percepção dos fatos conforme interesses políticos bem delimitados.

Evidentemente, quando se trata de um conflito muito agudo (como trotskystas contra estalinistas) o mais provável é que as falsificações estejam presentes nos dois lados e mesmo  nos demais lados que irão tentar relatar tal intricada história – liberais, social-democratas, etc.

 

Trotskysmo e Divisão no movimento operário

A burguesia e o imperialismo também se serviam das correntes trotskystas e suas seitas nos diversos países – o que é relatado em todo caso por Figuères – sempre como forma de dividir o seu inimigo, o movimento comunista internacional, o que explica a forte atração de setores burgueses no contexto do maio de 1968 pelo trotskysmo e grupos anarquizantes.

O mesmo se deu durante a Guerra Civil Espanhola em nível ainda mais dramático: a Frente Popular se viu dividida por grupos anarquizantes e trotskystas (POUM) que chegaram a combater em armas entre si, fortalecendo o inimigo fascista.

Na verdade, o trotskysmo, e isto é demonstrado fartamente no livro de Figuères, endossava após a vitória da revolução russa uma política criminosa segundo a qual o triunfo da revolução estava condicionado pela vitória subsequente dó socialismo nos demais países, particularmente nos países do ocidente - Lênin chegou a acreditar nestas ideias mas diante da urgência da defesa das conquistas da revolução, e contra tal política criminosa e derrotista, advogava a vitória do socialismo num país só como um meio para se fortalecer e avançar na luta pelo socialismo internacional[i].

De outro lado, Trótsky e sua Teoria da Revolução Permanente na prática colocariam toda a sorte da revolução em jogo, abandonando a fórmula da revolução por etapas e a construção socialismo num só país por meio da aliança com o campesinato – setor social burguês negligenciado na teoria de Trotsky. Esta política, em termos práticos, significaria transformar a experiência soviética numa Comuna de Paris (duração de menos de 3 meses): e portanto, não é a toa que a burguesia incitava e abria seus jornais para as seitas trotskystas, onde o próprio Trótsky podia publicar artigos.

Destaques

“Embora em teoria proclame a unidade dum partido centralizado e disciplinado, o trotskysmo, na prática insurge-se contra as necessidades dum partido do tipo leninista e tem, como todas as seitas, uma tendência permanente para o fraccionismo, quer atue no exterior ou no interior de qualquer organização. Ele não deixou de cultivar a desconfiança em relação à organização do Partido Comunista, o quadro de revolucionários profissionais sem os quais não há partido revolucionário, opondo-os ao conjunto dos membros do Partido ou simplesmente à massa. Há que ver nisso uma das razões pelas quais os trotskystas nunca puderam erguer organizações, mesmo que pouco importantes e duradouras”

E   se estas linhas tratam de um passado que remete à uma corrente política que já existe há quase 100 anos, não deixa de ser nada atual, ou seja, o prognóstico se mantêm. Nestes marcos, o trotskysmo enquanto corrente política interessa aos inimigos do proletariado como meio de divisão e tensionamento constante da classe. Obviamente o trotskysmo não é produto de uma intervenção direta da burguesia na classe operária, mas pode e já foi em determinadas circunstâncias instrumentalizado em eleições, por ex., neste sentido – em outros momento, a divisão em si favoreceu o inimigo comum, como os fascistas diante da derrota das Frentes Populares da Espanha. A explicação mais essencial para esta caracterização do trotskysmo encontra-se tanto em Marx e Engels quando analisam o blanquismo quanto em Lênin em seu “o esquerdismo”: é um fenômeno esquerdista pequeno-burguês que tem um tom anticapitalista mas não se centraliza ou se coloca sob a direção da classe operária ou, em outros termos, é vacilante e na política revela-se oportunista. Isto explica porque Trótsky antes encarniçado inimigo político de Kamanev ou Bukharin, amanhã será deles aliados, surpreendendo seus mais radicais aliados.

 

O próximo destaque refere-se à uma intervenção de Lênin de 1914 denunciando Trótsky como “representante dos piores vestígios do fracionismo” (A DESAGREGAÇÃO DO BLOCO DE AGOSTO)

“Quando falamos de corrente liquidacionista, designamos uma certa corrente ideológica formada durante anos e cujas raízes se prendem ao “menchevismo” e ao “economismo” tais como se manifestaram durante os vinte anos da história do marxismo, e que está ligada à política e à ideologia duma classe determinada, a burguesia liberal.

Os “Transfugas de Touchino” declaram-se acima das facções , pela única razão de que “retiram” as suas ideias hoje a uma facção, amanhã a outra. Trotsky foi um furioso Iskrysta e Riazanov disse, a seu respeito, que tinha desempenhado no Congresso de 1903, o papel de “matraca de Lênin”.

No final de 1903, Trótsky é um furioso menchevista, quer dizer, passou dos iskristas aos “economistas”: proclama que há um abismo entre a velha e a nova Iskra. Em 1904-1905 deixa os menchevistas e ocupa uma posição indecisa: tanto colabora com Martynov (um “economista”) como proclama a teoria absurda da revolução permanente. Em 1906-1907, aproxima-se dos bolchevistas e, na Primavera de 1907, declara-se solidário com Rosa Luxemburgo”.

Na época da Desagregação, após longas flutuações “não fraccionistas”, guina para a direita e forma bloco, em Agosto de 1912, com os liquidacionistas. Agora afasta-se de novo, mas no fundo retoma suas miseráveis ideiazinha”

Como explicar esta flutuações de posições que explicam tão bem a instabilidade e a pouca vida dos agrupamentos das correntes trotskystas, bem como a sua profusão, consoante a própria instabilidade de seu mentor, tão bem delineado por Lênin?

O aspecto pequeno burguês desta orientação política e especialmente daqueles que se filiam a estas correntes (estudantes, intelectuais, etc.) é um bom ponto de partida para uma explicação. Há de se considerar alguns traços da personalidade do próprio Trótsky que, no que tange aos comunistas mais diretamente ligados ao movimento russo, contribuíram para criar uma aversão que, via reversa, fortaleceriam o stalinismo e o culto à sua personalidade (esta pelo menos é a opinião de Léo Figuères).

Aqui concluímos nossa resenha:

“Dissemos já quanto os seus próprios partidários ficaram desconcertados pela conciliação que aqueles que eram tidos por seus inimigos  mas encarniçados no Partido, Zinoviev e Kamenev.

Em 1928, não teria hesitado tão pouco em se aliar com o grupo de Bukharin que no entanto apontara, nos anos anteriores, como sendo o principal coveiro do socialismo.

Se acrescentarmos a isso que, após cada uma das suas derrotas, tomava diante do Partido e o país todos os compromissos possíveis de respeitar as decisões para, imediatamente depois, as infrigir cada vez mais, compreende-se que tenha voltado contra si a massa dos comunistas e dos cidadão soviéticos.    




[i] Adesigualdade do desenvolvimento econômico e político é uma lei absoluta do capitalismo. Segue-se que a vitória do socialismo é possível inicialmente num pequeno número de países capitalistas ou mesmo num só país capitalista considerado à parte. O proletariado vitorioso deste país, depois de ter expropriado os capitalistas e organizado aí a produção socialista, erguer-se-ia contra o resto do mundo capitalista atraindo atrás de si as classes oprimidas dos outros países e levando-as a insurgir-se contra os capitalistas, empregando mesmo, em caso de necessidade, a força militar a força militar contra as forças exploradores e seus estados.  (ACERCA DA PALAVRA DE ORDEM DOS ESTATOS UNIDOS DA EUROPA)

sábado, 16 de agosto de 2014

“Stálin” – Paulo Mendonça (org)


Resenha Livro #119 “Stalin” – Paulo Mendonça – Biblioteca de História – Grandes Personagens de todos os tempos – Editora Três (2)




Biografias de grandes personagens da história sempre estarão fortemente condicionadas pela linha editorial, pelos pressupostos teórico-metodológicos e pela orientação política do autor e dos criadores da obra. Não poderia ser diferente com uma biografia de Stálin, personagem tão controvertido e que tanto impactou a história do séc. XX.

A quantidade de biografias dedicadas a determinado personagem da história é um bom sinal das distintas perspectivas em jogo e, sendo aqui, um personagem diferente de um Nero dos tempos do Império Romano, desde que historicamente muito mais recente, há uma relativa disputa em jogo em torno do que significou o legado de Stálin para a história mundial recente.

É importante destacar aqui três faixas de interpretação, que em todo caso coincidem também com linhas interpretativas da história política da União Soviética: há as versões pró-imperialistas, que são as mais numerosas no âmbito editorial no Brasil; há as versões trotskystas que sintomaticamente em muito se assemelham em sua narrativa às versões do imperialismo sendo importante apontar as mesmas fontes primárias, no caso, os estudos do trotskystas polonês Isaac Deutscher, além dos próprios textos de Trótsky sobre Stálin; e o que poderíamos genericamente chamar de fontes residuais correspondentes às fontes independentes e em menor escala às fontes oficiais, estas sim muito menos acessíveis aos estudiosos críticos da história da revolução russa e da vida de Joseph Stálin, em particular.

Esta biografia foi escrita 20 anos após a morte de Stálin, no final da década de 1967, em pleno vigor da era Brezhnev. No Brasil, estávamos a um ano de imposição do Ato Institucional nº 5, o recrudescimento de uma ditadura militar pró-imperialista profundamente anti-comunista cujo slogan era entre outros “Brasil, ame-o ou deixo-o”. Nestes marcos, como não poderia deixar de ser, esta biografia de Stálin é permeada de falsificações tanto no que se refere à vida pessoal dele – e que são facilmente perceptíveis numa leitura atenta ao se observar a insistência (e neste ponto a falta de verossimilhança) com que o biografado é pintado (como um alguém sem nenhum escrúpulo, vingativo, extremamente desumano, assassino cruel etc).

 As falsificações vão ao extremo quando o historiador busca equiparar as atrocidades cometidas pelos nazistas com as mortes decorrentes dos expurgos e da coletivização, o que obviamente não tem o menor cabimento e não pode ser tomado como algo sério. Adolf Hitler assassinou 6 milhões de judeus. Stálin jamais chegou a perseguir e matar um número próximo deste, em que pese alguns analistas de direita delirantes falarem em 20 milhões (!) de mortos por Stálin, uma falsificação grotesca, que deve ser prontamente combatida por todos os comunistas (incluindo os adversários de Stalin na esquerda)!

De outra monta, a biografia dos liberais nos servem para extrair algumas informações filtradas. Algumas dados sempre acabam servindo-nos como fonte de conhecimento e aqui há um interessante relato da infância e juventude de Stálin – pseudônimo que significa “aço”. Ao contrário da maior parte dos dirigentes bolcheviques, como Lênin que era filho de um inspetor escolar – Stálin veio de uma família bastante pobre da Geórgia. Seu pai era um sapateiro, era alcoólatra e frequentemente agredia brutalmente o filho. Depois abandonou a família e mãe e filho se sustentaram sozinhos, a primeira costurando para fora. Posteriormente Stálin ingressou num seminário religioso, onde também vivia sob um forte regime opressivo –era proibido aos seminaristas a leitura de textos estranhos determinados, além de haver uma imposição cultural russa via igreja ortodoxa sobre os usos e costumes do caucásio. E foi desde o seminário que Stálin iniciou sua militância política clandestina – desde muito jovem Stálin foi um militante revolucionário profissional, muito pouco afeito à teoria e muito associado à prática revolucionária. Consta que apenas posteriormente enquanto colaborador do Pravda escreveu, com o apoio do Lênin, um trabalho mais aprofundado sobre a questão das nacionalidades, o que lhe valeu o posto correspondente no primeiro governo soviético.

Sempre foi um homem de confiança de Lênin pela sua dureza e disciplina e, fato narrado de forma errada na biografia, no testamento de Lênin, seria criticado quanto ao seu temperamento – que como podemos observar remete às suas origens em nada cosmopolitas e assim muito diferentes das de um Plekhanov ou de um Trótsky.  

A quem interessa a total desmoralização do stalinismo, não só 20 anos depois de sua morte, consoante esta biografia escrita sob as penas do imperialismo, mas conforme os seus papagaios da esquerda (trotskystas) e mesmo hoje em tempos de neoliberalismo, com o fim formal da URSS? Por que se teme tanto uma revisão crítica do stalinismo? Certamente se Stálin e o stalinismo é um ciclo encerrado na história não haveria tanta insistência em evocar o seu nome como forma de supostamente “atacar” adversários com a pecha de “stalinista”. Outro ponto que talvez mereça maior reflexão decorrente da leitura desta biografia: por que coincidem em tantos aspectos as interpretações extraídas da direita/imperialismo tanto da história da revolução russa quanto de Stálin e do stalinismo em particular com a narrativa propagandeada pelos trotskystas? Que militantes trotskystas são acusados de colaboração com o imperialismo já há indícios e em outros casos provas concretas (ver caso do PSTU na Ucrânia, mais recentemente) fazem-nos pensar que haja de fato uma matriz comum entre imperialismo e trotskysmo. Não há fatos gratuitos na história. O papel dos comunistas aqui envolve reunir todo o material disponível, todas as fontes e em especial buscar aquelas elencadas como as fontes de terceiro tipo (as mais raras): fontes independentes e as fontes oficiais da história da revolução russa de forma a esclarecer os engodos criados pelo imperialismo. Afinal, longe de se interessar pela verdade histórica referente a quem foi e o que significou na história Joseph Stálin, o imperialismo, como inimigo encarniçado da revolução, o deseja semear confusão e desmoralização dentre as fileiras comunistas. Se o imperialismo e os trotskystas gritam histericamente que Stálin é nosso inimigo, temos boas razões para pensar que Stálin foi um grande camarada da causa comunista.

sábado, 9 de agosto de 2014

“Bom Crioulo” – Adolfo Caminha


Resenha Livro #118 “Bom Crioulo” – Adolfo Caminha – Ed. Atica – (1)

O escritor cearense Adolfo Caminha foi pouco conhecido em seu tempo (fins do século XIX) e persiste tão pouco conhecido hoje. Em parte explica-se tal fato pelo pouco tempo de vida do escritor naturalista: Caminha morreu com apenas 30 anos de idade, vítima de Tuberculose.

Nascido em 1867 na então denominada província de Aracati, perdeu a mãe logo cedo e teve uma infância difícil: sabe-se que nos anos de 1877 uma seca assolou o nordeste e com o pai doente, foi mandado ao Rio de Janeiro em 1883, onde se matriculou na Escola Naval. Tal informação torna-se relevante já que em “O Bom Crioulo” boa parte do cenário dá-se justamente em embarcações de marinheiros aportados na então capital do Brasil. Outro dado importante: em 1883 o Brasil ainda era uma Monarquia em que vigorava as relações de trabalho escravo. Em 1884, numa solenidade escolar, enfrentando um ambiente conservador, Caminha durante solenidade na escola, fez discurso em que se declarava “contra o anacronismo da escravidão e do Império”.

De volta a Fortaleza, Caminha envolve-se com grupos literários tendo como influência artística o naturalismo. O naturalismo no romance tem como características a descrição objetiva tanto dos personagens quanto da paisagem, uma objetividade tão marcante que equipara muitas vezes as penas do escritor à lupa de um cientista que observa os fenômenos desde o seu laboratório. Trata-se aqui de uma reação ao subjetivismo da escola romântica, tendo como expoentes Émile Zola, na França, Eça de Queirós em Portugal e, no Brasil, o mais conhecido representante Aluísio de Azevedo, autor de “Casa de Pensão” e “O Mulato”.

Importante destacar, outrossim, que o naturalismo tem como marca a influência de uma série de correntes de pensamento que estão em voga no final do século XIX – como não poderia deixar de ser, arte e filosofia se interpenetram num dado período da história criando o que podemos chamar genericamente de uma cultura dominante correspondente àquele período histórico.

O final do séc. XIX é marcado pela expansão imperialista do capitalismo na África, na Ásia e em menor medida na América Latina o que, no plano ideológico, vinha sendo justificada por teorias como a do determinismo  (a partir da qual se legitimava a missão re-colonizadora do europeu) e a do darwinismo social (mais uma vez dentro de uma lógica em que as ciências humanas e as ciências biológicas se equiparam, o que se observa na narrativa naturalista).

No que se refere ao romance naturalista, há de se destacar sempre a primazia do interesse egoístico e dos instintos animais sobre os valores e a moral. O homem, dentro dos parâmetros do determinismo, é antes de tudo escravo de seus instintos: este ponto de vista estará vivamente presente na trama de “O Bom Criolo”.

“O Bom Criolo” foi escrito em 1895. O que chama a atenção do leitor de 2014 é a temática da história, que está certamente à frente de seu tempo – e que eventualmente contribuiu para deixar a obra no ostracismo.

Trata-se de um triângulo amoroso envolvendo o amor homossexual de dois marujos – Bom Criolo, um ex-escravo e marinheiro, e Aleixo, um jovem marinheiro e branco – e uma portuguesa. Caminha trabalhou na imprensa e, segundo nos é relatado, compôs sua história baseado em fatos reais. O amor homossexual entre os marujos teve origem naquele contexto traçado com detalhes pelo autor, qual seja, a vida à bordo dos marinheiros no Brasil de fins do séc. XIX, talvez um dos elementos mais interessantes do romance. São pintados vivamente episódios de castigos corporais com as respectivas explicações de todas as formalidades e os motivos para as aplicações das penalidades, fato importante dentro do contexto das lutas sociais no Brasil já que dentro de poucos anos rebentaria a revolta da chibata; logo no início destaca-se o fato de Bom Mulato ter fugido de uma fazenda de escravos com 18 anos de idade e de ter encontrado na Marinha uma primeira forma de experimentar a liberdade – elemento essencial da história do país desde que as forças armadas tiveram papel político decisivo no movimento da abolição da escravatura; são narrados finalmente o dia a dia dos marujos, as conversas de corredor, as pilhérias, as saudades da terra, as folgas e os passeios, e finalmente o relacionamento amoroso homossexual entre dois marujos.

Um elemento a se destacar no relacionamento é como se interpenetra a antiga condição de escravo do Bom Crioulo e a forma como os seu sentimento de amor transformado em ciúmes doentio e finalmente em violenta vingança. Em outros termos a relação de propriedade que perpassou os seus primeiros 18 anos como escravo se expressa nos últimos momentos da trama, quando assassina Aleixo, o marinheiro, branco, por quem estava apaixonado, furioso após ter descoberto a traição.

Observa-se como o mesmo tipo de relação de domínio que se perpetua ao longo do tempo toma conta do Bom Criolo, quem, como o nome sugere, aparecia para todos como alguém justo e supostamente incapaz de cometer crimes maiores do que a embriaguez eventual.

“Era um misto de ódio, de amor e de ciúme, o que ele experimentava nesses momentos. Longe de apagar-se o desejo de tornar a possuir o grumete (Aleixo), esse desejo aumentava em seu coração ferido pelo desprezo do rapazinho. Aleixo era uma terra perdida que ele devia reconquistar fosse como fosse; ninguém tinha o direito de lhe roubar aquela amizade, aquele tesouro de gozos, aquela torre de marfim construída pelas suas próprias mãos. Aleixo era seu, pertencia-lhe de direito, como uma coisa inviolável. Daí também o ódio ao grumete, um ódio surdo, mastigado, brutal como as cóleras de Otelo”

Percebe-se como o Bom Crioulo curiosamente reproduz junto a Aleixo (homem mais jovem e branco) uma desejo relacionado a uma noção de propriedade (erga omnes) que em muito poderia remeter a do seu antigo proprietário – lembrando que Bom Crioulo antes de ser marujo, é escravo fugido. De todo modo, pela linha dada por Adolfo Caminha, o coração de Bom Crioulo é nobre. Se ele comete um crime, é antes de tudo um crime passional e irracional. A equiparação entre a manifestação de amor homossexual e decadente relação de trabalho escravista ficam para o intérprete do texto.  

domingo, 3 de agosto de 2014

“As Três Fontes” – Vladimir Lênin



Resenha Livro #117 “As Três Fontes” – Vladimir Lênin – Cadernos de Expressão Popular – Ed. Expressão Popular
 
Esta pequena brochura organizada pela editora Expressão Popular reúne diferentes textos do dirigente da revolução russa V. Lênin que irão tratar dos elementos biográficos e da contribuição teórica dos pais do socialismo científico, a saber Karl Marx e Friederich Engels; uma análise panorâmica e resumida dos elementos constitutivos do marxismo, qual seja a sua filosofia, a economia política e a tradição socialista; e por fim um texto de 1902 que enuncia parte do que seria uma das principais contribuições do pensamento de Lênin para a tradição marxista, qual seja, a teoria da organização partidária.

Respectivamente, os textos supracitados são “Karl Marx”; “Friederich Engels”; “As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo”; e “ Carta a um camarada”.

Uma característica que perpassa toda a brochura é a preocupação didática que aliás singulariza todo trabalho intelectual de Lênin, com algumas exceções eventuais, como quando aborda temas mais abstratos, como filosofia hegeliana. Mas a marca característica da narrativa de Lênin é um esforço em se fazer entender não só pelo intelectual, mas pelo operário e pelo mais simples camponês, traço que fica de todo modo bastante evidente não só nas brochuras sobre a vida de Marx e Engels, mas na correspondência referente à crítica ao projeto de organização do Partido Revolucionário de São Petersburgo.

A leitura da carta – que data de 1902 – evidencia em primeiro lugar o senso prático do agitador e organizador político que 15 anos antes da revolução socialista já pautava questões de máxima importância como a distribuição massiva de jornais nos bairros e nas fábricas – de forma não só a fazer circular informações mas a preparar deste modo a insurreição; a extrema preocupação com o trabalho clandestino e a preservação dos melhores quadros frente a espiões e provocadores, sempre levando em consideração que o regime absolutista do Czar só iria ruir em fevereiro de 1917; os trabalhos de maior e menor clandestinidade referentes a distribuidores, propagandistas, estudiosos das condições de trabalho, etc.

Sabe-se que a teoria geral do partido em Lênin encontra-se no seu renomado “O que Fazer” que também é de 1902. Mas elementos daquela teoria são encontradas na Carta a um Camarada. Lênin advoga a construção de um partido de vanguarda que organize e dirija a classe operária – sem o partido de vanguarda não há organização e consciência de classe sem as quais não há força para derrotar o estado capitalista e a burguesia.

Lênin entende o partido sendo ao mesmo tempo um dirigente teórico e um dirigente prático. No plano teórico caberia ao “Iskra”, ou seja, ao jornal do partido dirigir o trabalho ideológico, mover o partido no sentido de dar a linha mestra de sua política – daí a grande importância da imprensa e do jornal dentro da tradição leninista. Já do ponto de vista prático, o partido teria como dirigente o Comitê Central, qual seja um órgão com as melhores forças revolucionárias. Não custa frisar que tal modelo de partido, altamente centralizado e disciplinado, dizia respeito àquela conjuntura política da Rússia czarista em que o crescimento do proletariado nas cidades e suas precárias condições de vida engendravam uma situação explosiva que seria de fato observada em 1905-6 com a série de greves que abalou o estado russo – o assim chamado “Ensaio Geral da Revolução de 1917”.

É interessante que a centralização preconizada por Lênin é muitas vezes (ora de forma oportunista pela direita ora por desengano pelos anarquistas) confundida com autoritarismo. O que fica claro é que existe uma dialética entre centralização e descentralização no modelo partidário leninista de forma que a existência de um pequeno núcleo de revolucionários num órgão restrito como o Comitê Central (algo em todo caso necessário numa luta em condições de clandestinidade) é balanceada pela dinâmica de comunicação do partido – segundo Lênin um elemento muito mais relevante do que cláusulas estatutárias do partido.  Assim afirma:

“O Movimento deve ser dirigido por um pequeno número de grupos, os mais homogêneos possíveis, e de revolucionários profissionais respaldados pela experiência. Mas no movimento deverá participar o maior número de grupos, os mais diversos e heterogêneos possíveis, recrutados nas mais diferentes camadas do proletariado (e de outras camadas do povo) . E com relação a cada um desses grupos, o centro do partido deverá sempre ter em vista não somente dados exatos sobre sua atividade, mas também “os mais completos possíveis a respeito de sua composição”. Devemos centralizar a direção do movimento. Mas devemos também (e precisamente “para isso”, pois sem  a informação é impossível a centralização) “descentralizar” o quanto possível a responsabilidade ante o partido de cada um de seus membros individualmente, de cada participante no trabalho, de cada um dos círculos do partido ou próximo dele”.

Em determinado momento, Lênin faz uma analogia entre o partido político e uma orquestra dentro da qual temos sempre a figura de um maestro, equivalendo a uma liderança que deve estar a par de todos os detalhes da banda, desde a afinação dos instrumentos, sua organização, os músicos, sua escolha, definição do repertório, etc. A analogia parece ser interessante desde que enquanto o partido político leninista produz a revolução, a orquestra produz música ou arte: em ambos os casos é necessária, de acordo com o pensamento político de Lênin, organização, direção unipessoal ou relativamente centralizada e uma articulação entre todos os membros, tal qual numa banda. A questão que se coloca é: a teoria do partido de Lênin forjada num contexto político de clandestinidade se aplica e em que medida se aplica no capitalismo em tempos de crise, com sua “democracia” cada vez revelando ser um engodo? O que parece é que Lênin por vias tortuosas atravessou o deserto neoliberal: sua mensagem, que se refere aos tempos do czarismo russo, tem aplicação atual, na opinião deste observador.     

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

“Estado e Forma Política” – Alysson Leandro Mascaro


 
Resenha livro # 116“Estado e Forma Política” – Alysson Leandro Mascaro – Ed. Boitempo



Advertimos o eventual leitor desta resenha que o objetivo deste estudo não envolve qualquer preocupação de tipo acadêmico: não encontrará aqui um resumo geral desta obra do professor Mascaro desde que o objetivo deste blog não diz respeito aos trabalhos da universidade: o objetivo deste blog é o de servir como uma pequena trincheira virtual da luta de classes, discutindo livros e incentivando sua leitura, e não o contrário.

Faremos aqui um breve relato geral do “Estado e Forma Política” e destacaremos uma passagem a partir da qual proporemos algumas reflexões.

Considerações Gerais

Alysson Mascaro é filósofo e jurista, professor da Faculdade de Direito da USP e da Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Publicou os livros “Filosofia do Direito” e “Introdução ao estudo do direito”(resenhado por este blog) pela Atlas e “Utopia e direito: Ernt Bloch” pela Quartier Latin. Prefaciou, finalmente, “Em defesa das Causas Perdidas” do renomado filósofo esloveno Slavoj Zizec.

Neste livro o tema abordado é a relação entre o Estado e a sua conformação na história diante das distintas fases do modo de produção capitalista.

Mascaro parte de um ponto de vista original e que, aqui, se distingue de um certo senso comum no âmbito da esquerda segundo o qual o estado seria o mero “órgão ou aparelho gestor” das classes dominantes que o utilizam como mera forma de dominação sobre as classes dominadas.

Avançando sobre tal perspectiva rudimentar, Mascaro irá detalhadamente analisar as relações entre Estado e reprodução capitalista, a forma política e as instituições políticas, a relação entre a forma política e a forma jurídica, o problema da autonomia do estado (fenômeno que ocorre apenas nas sociedades capitalistas com a efetiva separação entre economia e política), o estado e sua especificidade histórica e o estado e a luta de classes; enfim, Mascaro irá destrinchar de maneira pormenorizada o tema da forma política estatal tanto na história como na sua concretização no capitalismo na sua forma jurídica. Há o objetivo de demonstrar como o estado tal qual o conhecemos é um fenômeno típico da sociedade capitalista, uma tese que não é consensual, mesmo dentro do marxismo.

Obviamente existia estado em sociedades pré-capitalistas. Mas, alerta Mascaro, a forma política estatal tal qual conhecemos hoje com as figuras do sujeito de direito (que permite pela primeira vez capitalistas e trabalhadores transacionarem as forças de trabalho), a separação do estado em relação às classes possuidoras e sua relativa autonomia como momento necessário para o regular funcionamento do capitalismo, proteção da propriedade, delimitação de fronteiras, etc., esta forma política é necessariamente capitalista: e, outra conclusão importante aqui, dentro desta forma ou dentro deste estado, não é possível pensar alternativas societárias distintas em que pesem todas as ilusões dos setores reformistas da esquerda que alimentam esperanças em construir o socialismo por meio do estado.

Os dois últimos capítulos do trabalho de Mascaro tratarão de temas mais específicos ao universo dos operadores do direito: o penúltimo “pluralidade de estados” discutirá a questão das relações internacionais e introduzirá a noção de imperialismo dentro do sistema de estados. E aqui temos uma analogia entre como a forma política se materializa e como ela se dá em sua aparência. Formalmente os estados tem sua soberania reconhecida e são supostamente iguais, com direitos garantidos perante as organizações internacionais. Materialmente é o poder econômico internacional (imperialismo) que determina as relações de dominação e subordinação. Já o último capítulo aborda um tema novo e pouco discutido na esquerda que é o da regulação e estado, qual seja, a busca dos ciclos de crise e dos elementos comuns dentro das distintas fases do capitalismo.

A regulação também é estudada no âmbito da economia, mais comumente pelas escolas não marxistas, que buscam soluções para as crises cíclicas do capital. No âmbito do marxismo, o estudo dos fenômenos cíclicos da crise são importante para se identificar os impactos ou efeitos dos problemas econômicos nas instituições políticas: identificar relações entre o desemprego em massa e o ascenso de partidos de direita, como ocorre neste momento na Europa, por exemplo. Temos aqui um recorte de estudos que aparenta ser mais estudado por aqueles que se colocam do lado do mundo do trabalho.

Destaques

“Não é porque determinado instituto político já tenha existido antes do capitalismo que ele seja o embrião causal do Estado. A forma estatal nasce da produção capitalista, da exploração do trabalho assalariado, da conversão de todas as coisas e pessoas em mercadorias. Os institutos sociais e políticos do capitalismo são criados ou transmudados num processo de convergência à forma. É possível que se vejam vestígios históricos dos atuais corpos de magistrados e promotores de justiça em antigos inquisitores da igreja. É possível que até mesmo os ritos, as nomeclaturas, as vestimentas, os locais e as práticas simbólicas dos administradores do Poder Judiciário moderno sejam transplantados de instituições de julgamentos religiosos medievais. Mas a forma moderna de tais instituições se constitui  a partir de específicas modalidades de reprodução social, que se valem dos ritos e das nomeclaturas para objetividades de prática social próprias e específicas. Não é porque os romanos chamam a uma instituição política sua por Senado que a moderna instituição do Senado nos Poderes Legislativo seja, material, estrutural e funcionalmente, igual à do passado. As instituições são reconfiguradas pelas formas sociais, num entrelaçamento estrutural”

E esta forma social ou forma política dará ao termo o conteúdo do tipo de relação social que se estabelece na infra-estrutura. Pode-se ter como exemplo dois sujeitos. O primeiro ordena que o segundo corte o capim do primeiro. Apenas com estas informações não temos como descobrir qual o tipo de relação social ou qual o modo de produção perpassa a relação entre os dois sujeitos. Mas com a forma política ou a sua expressão jurídica contratual, podemos decifrar a infra-estrutura (modo de produção). Assim, se o primeiro ordena que o segundo corte o capim caso contrário será o segundo morto, temos o modo de produção escravagista. Se o primeiro ordena que o segundo corte o capim caso contrário o segundo será expulso de suas terras e não terá direito aos benefícios de proteção temos uma relação do tipo feudal. Se o primeiro ordena que o segundo corte o capim por que o segundo assim o quis (consoante um contrato de trabalho) temos uma relação do tipo capitalista. Daqui vemos claramente a importância da forma política como elemento que irá talhar e determinar a relação de exploração. Daí a centralidade do direito, visto aqui numa nova perspectiva, que vai muito além do mero “gestor dos interesses imediatos da classe dominantes”.