domingo, 28 de dezembro de 2014

“A Vida de Lênin” – Pierre Chasles

“A Vida de Lênin” – Pierre Chasles 

Resenha Livro #142– “A Vida de Lênin” – Pierre Chasles – Ed. Diefel Difusão Editorial AS




O ofício do historiador está muito distante das expectativas de certa escola desta disciplina há seu tempo, em fins do século XIX, quando, desde o ponto de vista do positivismo, pensavam fazer da História uma ciência positiva, neutra, imparcial. “Die geshichte wie es eigentlich gewesen hat” diria o historiador alemão Leopold Von Rank, ou seja, descrever a “História de fato como ela aconteceu”, como se houvesse uma versão verdadeira e única a ser relatada sobre o passado. 

O fato é que o historiador está sujeito a sua visão social de mundo que irá condicionar desde o seu objeto de estudo, a forma como irá pesquisar, os posicionamentos pessoais mais ou menos conscientes que irá tomar diante daquilo que não só relata, mas interpreta sobre o passado. 

A questão da subjetividade do historiador dentro de suas pesquisas encontra lugar decisivo nas biografias, especialmente quando falamos de personagens com papel de relevância decisiva na história. Não é nossa intenção aqui discutir aqui o interessante tema da filosofia da história referente à relação entre o indivíduo e a história. Mas se sabe que raramente em alguns momentos – geralmente nas conjunturas em que os ritmos históricos aceleram-se em detrimento de contextos revolucionários – lideranças pessoais projetam-se à frente dos acontecimentos. 

Se por um lado tais lideranças encarnam as inquietações latentes de uma situação pré-existente – que na Rússia de Lênin dizia respeito ao cansaço dos soldados com a Guerra, a fome no campo e o ódio diante de um regime político corrupto profundamente impopular – de outro lado estas lideranças conseguem agir como vanguarda, se adiantam perante a história e por isso acabam se projetando. Está fora de dúvida que qualidades pessoais de um Lênin ou de um Fidel Castro quanto à leitura dos acontecimentos o colocaram na crista da onda da história.

A questão para o historiador aqui é que nos casos das biografias destes personagens que em si contêm muito de controverso acerca do resultado político de sua intervenção na história, um trabalho biográfico incorre no risco não científico ora de cair na mera adoração de um ídolo, sem observar as críticas e erros, desde, utilizando um termo de Lênin, uma análise concreta da situação concreta, ou o extremo oposto, não o da apologia, mas a do franco ataque ao personagem e por conseguinte o da sua política. 

Pierre Chasles não é simpático ao pensamento político de Lênin. Considera-o,  e faz questão de repeti-lo a todo momento, um ditador. Entretanto, sua biografia pode ser localizada numa zona intermediária entre aqueles dois extremos, não deixando de ser útil a sua leitura. 

Primeiro pela informações factuais acerca da vida de Lênin – trata-se de um livro objetivo em que o leitor tem uma breve visão panorâmica de toda a trajetória do dirigente bolchevique: da sua juventude em Simbirski; do assasinato do seu irmão Alexandre em 1887, este ativista populista que por métodos terroristas desejava por fim ao czarismo influenciando decisivamente o irmão mais novo;   da entrada na Universidade de Direito de Kazan e de sua expulsão em 4 meses de curso (1887) por participação em rebeliões estudantis, sendo a partir dos 17 anos o engajamento definitivo de Lênin à causa da luta de classes, o que logo o levaria à prisão (1895), à Sibéria (1896) e aos longos anos de exílio. 

Em segundo lugar, vale a leitura desta biografia “não simpática” à Lênin pela honestidade intelectual do autor: 

Pierre Chasles não oculta o seu não alinhamento às ideias políticas de Lênin o que não significa deixar de reconhecer em diversos momentos a verdade acerca de sua importância na revolução como dirigente e imediatamente após a tomada de poder já na condição de líder supremo do Partido. A disciplina de Lênin nos estudos, a sua seriedade e o seu não oportunismo político. O que queremos dizer é: temos aqui um adversário político do leninismo honesto que reconhece as muitas virtudes pessoais de Lênin. 

E assim nos é narrada de forma sucinta os principais fatos políticos referentes à vida de Lênin, dados preciosos para se conhecer, e aqui há mesmo o reconhecimento de um biógrafo antipático à causa esposada por Lênin, um indivíduo profundamente cordial nas relações pessoais mas que acima do pessoal colocará sempre as relações políticas, que vive em função da luta e da revolução, que trabalhará exaustivamente em função de um objetivo único: destruir o capitalismo, construir o socialismo.

 Nas palavras do escritor e amigo pessoal Górki: 

“Parece-me que a pessoa humana lhe é quase indiferente: ele apenas pensa em partidos, nas massas, nos estados...”

Certamente esta passagem seria explorada pelo biógrafo para atestar algumas teses burguesas próprias do senso comum. Lênin seria um ditador “cruel” que colocaria sempre os fins acima dos meios. Em algumas passagens o autor chega ao ponto de acusar Lênin de, na sua fúria revolucionária, ser um adorador da destruição nos mesmos termos de Dostoiévisky e Bakunin. Quer dizer, é preciso deixar de lado portanto as opinião pessoais extravagantes do biógrafo– aparentemente um democrata liberal  - e, com o livro, se ater à história pessoal do dirigente soviético.

De outra forma, esta leitura deixa como reflexão os desafios criados para o historiador que se desafia a tratar de temas da biografias de homens que mudaram a história de forma decisiva: Lênin, Lutero, Napoleão, Hitler. 

Perscrutar a história sem veleidades de imparcialidade, com honestidade intelectual, sem apriorismos, desde o melhor método científico para tanto, o materialismo histórico, são o ponto de partida para a execução de uma boa biografia. 


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

“As Razões da Independência” – Nelson Werneck Sodré

“As Razões da Independência” – Nelson Werneck Sodré 


Resenha Livro # - “As Razões da Independência” – Nelson Werneck Sodré – Ed. Civilização Brasileira 

O historiador e militar Nelson Werneck Sodré (1911-1999) tem uma vasta produção historiográfica acerca da História do Brasil, tema que se relacionou com a sua trajetória de vida, como militar com atuação no Clube Militar (onde desde a Revista do Clube Militar, fez campanha pela nacionalização do Petróleo); e como Oficial de Artilharia do Exército em que em 1961 foi promovido à Coronel.

Sodré também atuou no importante ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros - que correspondia a um centro de difusão de ideias nacionalistas e desenvolvimentistas em meados do séc. XX no Brasil, fazendo uma espécie de contraponto ao pensamento entreguista pró-imperialista da Escola Superior de Guerra.  Chefiou o Departamento de História daquela instituição. 

Com o golpe militar de 1964, a ditadura cassou os direitos políticos daquele militar identificado com o pensamento crítico, nacionalista e anti-imperialista. 

Recusando-se a deixar o país, dedicou-se a escrever livros. E assim, Werneck Sodré dissertou desde antes e depois do golpe, sobre a História da Literatura Brasileira (1940) , a História da Imprensa Brasileira (1967) , a História da Burguesia Brasileira (1967), além de livros de teoria da história que revelam seu pressuposto metodológico marxista: Fundamentos do Materialismo Histórico (1968) e Fundamentos do Materialismo Dialético (idem). 

Estes são alguns exemplos de uma produção historiográfica bastante abrangente, como já dito, tendo como foco a História do Brasil, desde o ponto de vista de um marxista, qual seja, buscando explicar os processos e as estruturas econômicas que engendram os fenômenos políticos e fugindo de um modelo de história baseado nos “Grandes Eventos” que surgem deslocados de suas raízes econômico-sociais. Talvez por ser um marxista e por cometer algumas imprecisões – como a de qualificar o passado colonial brasileiro como “feudal” – Nelson Werneck Sodré é aparentemente um autor “datado” para muitos historiadores da universidade e, injustamente, seus livros não são mais publicados pelas editoras, com exceção da Ed. Expressão Popular que recentemente publicou seu livro sobre a história dos militares.

“Razões da Independência” é uma obra singular e preciosa a todos aqueles que desejam entender todo o processo de transformação por que passa o Brasil antes, durante e após a sua independência política. O livro é dividido em 4 grandes ensaios, cada um independente de si: são 4 chaves explicativas através das quais o leitor, servindo-se da leitura global, poderá desenhar um panorama geral daquelas transformações: seu sentido estrutural diz respeito à evolução histórica do capitalismo que, com a revolução industrial na Inglaterra – financiada com o ouro brasileiro – passará de sua fase comercial à sua fase industrial propriamente dita. O ponto de partida do processo histórico da independência do Brasil é a inversão das potências que dominam a colônia, de Portugal à Inglaterra. 

E assim, o primeiro ensaio é todo ele dedicado ao Tratado de Methuen.

Assinado em 17.12.1703, o tratado de Methuen é um acordo comercial entre Portugal e Espanha obrigando o primeiro a consumir os tecidos ingleses e o segundo o vinho português. Ocorre que a demanda portuguesa por tecidos era muito maior do que a demanda inglesa pelos vinhos: ademais, o tratado resultou na retração da produção agrícola portuguesa e o seu não desenvolvimento industrial, voltando-se toda ela para o vinho. Esta dupla situação gerou um quadro de endividamento dos portugueses junto aos credores ingleses – exaurindo as riquezas do ouro do Brasil junto aos cofres ingleses - desde que os primeiros dependiam em especial das manufaturas inglesas importadas.  

Outras foram os benefícios para a Inglaterra com a assinatura do tratado: a navegação britânica, a que coube, quase privativamente, pela cláusula de navegação de 1654 e pelo Ato de Navegação de 1651, o transporte das mercadorias do centro produtor ao centro consumidor; os capitais britânicos investidos na produção do vinho português e os fornecimentos britânicos de gêneros alimentícios, particularmente o bacalhau e o trigo, visto como abandonavam os lavradores lusos as culturas alimentícias e a pesca, para se dedicarem à vinicultura. 

Em suma, o Tratado de Methuen veio coroar um processo que já vinha sendo consolidado anteriormente de domínio da Inglaterra sobre a economia portuguesa – uma situação que chegaria aos limites do trágico-cômico com a fuga da família real portuguesa em 1808 escoltada por navios ingleses, aceitando não só as recomendações diplomáticas bem como as condições impostas pelos ingleses, no contexto das Guerras Napoleônicas. Há de se lembrar que a Inglaterra se interessava pela independência das colônias americanas com o objetivo de abrir novos mercados à sua indústria nascente: 

“O fundamental residia no contraste entre uma economia em pleno e ascensional desenvolvimento capitalista e outra que havia permanecido nas primeiras etapas desse desenvolvimento. A subordinação da segunda à primeira era, portanto, inevitável. No quadro desta subordinação, situava-se, como peça, o Tratado de Methuen. Não acarretava o retardo econômico do país subordinado, inclusive o de sua indústria. Sancionava aquele retardo e aquela subordinação. Era parte do amplo quadro em que elas se vinham processando – amplo quadro da Revolução Industrial, etapa de consolidação do capitalismo no ocidente”. 

Os demais ensaios que servirão como quebra cabeça para montar ao final o quadro da independência são: “O Vice Reinado do Rio da Prata – Domínio Inglês no Prata”; “Os Tratados de 1810 – Domínio Inglês no Brasil”; e “Regência – Domínio do Latifúndio no Brasil”. 

No que se refere à importância da região fronteiriça da Cisplatina, destaca-se em primeiro lugar a confluência dos rios – eminência alargada com a descoberta da navegação a vapor – e a circulação de mercadorias, do Brasil, do Vice Reino do Peru e posteriormente de Buenos Aires. O choque de interesses instala-se por um lado pela livre navegação dos rios e por outro pelo controle e tributação da circulação e tais choques só seriam levados à termo em meados do séc. XIX com a Guerra do Paraguai – ao término do qual, em benefício do imperialismo inglês. Por outro lado, destes mesmos choques já se observa a fragmentação de nações inteiras no processo de independência da América Espanhola, fato que a distingue do Brasil. 

Nesta mesma linha vão os tratados assinados em 19.02 de 1810 por D. João VI, in verbis:

“(O tratado) era um modelo de perfeição quanto às concessões, pois concedia tudo, suavizando por vezes as concessões com o mito da reciprocidade. Renovava a garantia de apoio da Inglaterra aos direitos da Casa de Bragança ao trono luso; fixava continuidade aos direitos de comércio livre para a Inglaterra, mesmo no caso de retorno da Corte a Portugal; estabelecia prazo de quinze anos para revisão e renovação do próprio tratado; reservava à Grã-Bretanha o direito de excluir os súditos e navios lusos do comércio com as suas colônias; dava aos súditos de ambas as nações direitos recíprocos de nação mais favorecida quanto ao comércio e à navegação; reduzia o volume de taxas postais e direitos de ancoragem para os navios ingleses nos portos portugueses, da metrópole e das colônias; (...)confirmava o privilégio de funcionamento do Juiz Conservador (Juiz competente para partes envolvendo ingleses). P. 152  

O último ensaio trata do que poderíamos chamar de assimilação política das mudanças engendradas pela nova etapa do capitalismo em sua fase industrial diante da independência formal brasileira. O que se observa é que não se tratou de uma acomodação pacífica, havendo por todo país uma série de levantes que, se por um lado era do ponto de vista das ideias, confusos e contraditórios, na prática, seguiram uma orientação de radicalidade política, confrontando abertamente os poderes centrais. 

Dois daqueles movimentos adquiram um caráter popular: a Cabanagem no Pará e a Balaiada no Maranhão. 

Após a abdicação de D. Pedro I, seria durante a regência que se observaria o re-alinhamento do estado, antes com uma ofensiva de setores liberais para depois concluir o processo político com os conservadores no poder já com o golpe da Maioridade. Nos dois momentos políticos o estado sempre foi essencialmente instrumento da classe senhorial (proprietários de terra e de escravos). E assim conclui Werneck Sodré:

“Foi por isso mesmo uma fase conturbada, denunciando o país a extrema fragilidade de sua estrutura. Coincidiu com a grande crise que tivera início com a decadência da mineração e que só se encerraria com o surto do café. Foi só este surto, realmente, que permitiu as condições materiais em que a centralização política se realizou, liquidada a esquerda liberal que, desde os primórdios da autonomia, pretendera dar outro destino ao país”.  

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

“Triste Fim de Policarpo Quaresma / Clara dos Anjos” – Lima Barreto

Triste Fim de Policarpo Quaresma / Clara dos Anjos” – Lima Barreto 





Resenha livro #141 - “Triste Fim de Policarpo Quaresma / Clara dos Anjos” – Lima Barreto – Ed. Scipione – Introdução e Comentários de José De Nicola 

O escritor carioca Lima Barreto (1881-1922) exerceu um papel de vanguarda na história da literatura brasileira: junto com Aluísio de Azevedo e seu “O Cortiço” e “O Mulato”, foi pioneiro ao descrever o subúrbio do Rio de Janeiro (o que hoje poderíamos dizer a sua “periferia”), bem como as classes sociais mais baixas, até então virtualmente invisíveis desde os romances românticos realistas e naturalistas  que vinham retratando a corte desde o séc. XIX.

Surgem nos romances de Lima Barreto não apenas os bacharéis, os altos funcionários de estado, as damas da alta sociedade, todos de cor branca e pertencente da classe burguesa:  dá-se atenção e centralidade aos personagens que como Lima Barreto (ele próprio um mulato, vítima do racismo e de uma sociedade bacharelesca de "diplomados") trabalham como carteiros, dentistas, funcionários de baixa importância do estado, soldados de baixa patente, ou mesmo vagabundos e boêmios, dependentes do álcool (“parati”).

Temos portanto uma visão privilegiada, tanto em “Policarpo Quaresma” e especialmente em “Clara dos Anjos”, da sociedade suburbana do Rio de Janeiro de fins do séc. XIX e dos 1900's: o estilo de Lima  Barreto, criticado à sua época, é objetivo e direto. Em certas passagens suas descrições remetem a uma verdadeira reportagem de um jornalista que vai descrevendo não só os tipos sociais, mas o abandono do subúrbio, a falta de esgoto, as casas feitas com material improvisado, as brigas entre vizinhos em geral por banalidades como sumiço de animais de criação (galinhas e porcos), ambientes, pessoas e animais amontoados num espaço já marcado pelo abandono.

Um outro elemento importante: em que pese haver de muito da própria experiência pessoal de Lima Barreto nos seus romances – particularmente nas passagens em que se explicita o racismo, como em “Clara dos Anjos” e o abandono da jovem grávida por um nhonhõ branco que a deflora e acaba sempre sendo protegido pelas autoridades policiais e judiciais – não há daquela superficialidade paternalista que poderia dar ensejo às histórias que remetem a situações de profundas injustiças.

Para ficar no mesmo exemplo de “Clara dos Anjos”, Lima Barreto busca identificar as raízes de seu triste fim não apenas pela sociedade racista, pelos privilégios desfrutados pelo homem branco diante das instituições, mas igualmente por erros na formação moral do lado dos “oprimidos”:

“A educação que recebera , de mimos e vigilância, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente... O bonde vinho cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres...Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil D. Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam”.

E aqui temos em plena evidência ideias-chave para compreender dificuldades e a superação de vida do próprio autor de Clara dos Anjos.

Neto de escravos, filho de tipógrafo e de mãe professora primária, sempre teve de enfrentar o preconceito em função da sua cor. Como muito esforço conseguiria entrar na Escola Politécnica de Engenharia do Rio de Janeiro mas não conseguiria concluir o curso diante de doença que levara seu pai à loucura.

Em 1903 consegue passar em concurso para Secretaria de Guerra e é nomeado funcionário público, um cargo burocrático inexpressivo.

Levaria uma vida depressiva em que o álcool seria um paliativo para as suas severas crises. Sua depressão tinha como origem sua rejeição social em função de sua cor e um altivo orgulho em face da inadequação diante de uma sociedade e um ambiente intelectual medíocre que ao mesmo tempo o rejeitava - consta que em duas ocasiões o escritor foi rejeitado pela Academia Brasileira de Letras.

Diz Lima Barreto em depoimento:

“Fui a bordo ver a esquadra partir. Multidão. Contato pleno com meninas aristocráticas. Na prancha, ao embarcar, a ninguém pediam convite; mas a mim pediram. Aborreci-me. 

É triste não ser branco.

(....) 

O que é verdade na raça branca, não é extensivo ao resto; eu mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser tomado por contínuo. Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia desse desgosto e ele far-me-á grande”

E como o escritor desejava superar a discriminação? Ele mesmo responde:

“Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a única coisa que me enchia de satisfação, ser inteligente, muito e muito! A humanidade vive da inteligência, pela inteligência e para a inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade, isto é, na grande Humanidade de que quero fazer parte”. 

Enquanto “Clara dos Anjos” centraliza sua crítica social na questão do racismo, no problema da educação familiar e no abandono das família suburbanas pelas instituições, “Policarpo Quaresma” é antes uma crítica bem humorada da República Velha, dos militares no poder e da política nacional.

O Major Policarpo Quaresma foi acometido desde jovem por um amor quixotesco pelo Brasil e dedicaria toda a sua vida a estudar tudo o que se refere à pátria: sua história, suas riquezas minerais, sua botânica, a língua tupi. Tamanho amor o levaria a ação extravagante de propor a alteração do idioma do país para a língua aborígene o que lhe renderia a ridicularização e o escracho público – posteriormente, ao protocolizar no seu departamento (era funcionário público) papeis em língua tupi, chega a ser internado como louco.

O fato é que o amor de Policarpo pode parecer extravagante, mas é nobre e altruísta: tanto o é, que após a internação toma rumo a um sítio onde se dedica à agricultura, com a enxada no braço, no intuito de, pelo exemplo, fazer progredir as terras do país.

O que é interessante é que pela ingenuidade pueril do major em contraponto à política real – e o período histórico é o do segundo governo da República com a Revolta da Armada em curso – o leitor pode observar, pelo contraste, a larga, a vasta distância entre o ideal de uma política desinteressada e o que ela representa de fato: literalmente o triste fim de Policarpo Quaresma, o triste fim de um idealista, abandonado por todos (cada um exclusivamente interessado em sua promoção, em seu cargo, em seus interesses pecuniários) demonstrando uma crítica corrosiva e radical à política de seu tempo. Alguns vêm uma crítica ao regime republicano o que por consequencia faria de Lima Barreto um saudoso defensor da Monarquia. Nada mais equivocado. Sua literatura é prospectiva e politicamente foi um cético - em termos filosóficos, tinha influência com o princípio da dúvida de Descartes.

Balanço Lima Barreto

Hoje Lima Barreto deve ser reconhecido como um escritor pioneiro e renovador da literatura nacional. Ele estava à frente de seu tempo e situa-se dentro do contexto histórico do pré-modernismo (1900's literário), já prenunciando questões como a denúncia social, a experimentação com o uso da linguagem (utilização da linguagem popular, algo muito caro ao movimento modernista posterior) e um nacionalismo literário geral, tanto na forma quanto no conteúdo – o que também prenuncia o movimento de 1922.

De forma que chega a ser irônico o fato de Lima Barreto não ter aceitado muito bem aquele Movimento Modernista– na prática podemos dizer que ele foi um de seus precursores mais originais e a ele somos todos devedores para além das inovações literárias, também como um excelente narrador das classes populares do Brasil da República Velha.


sábado, 13 de dezembro de 2014

“Contos Fluminenses” – Machado de Assis

“Contos Fluminenses” – Machado de Assis

Resenha Livro #140 – “Contos Fluminenses” – Machado de Assis – Ed. LPM Pocket




Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 1839 na cidade do Rio de Janeiro: pobre, quase sem educação formal, mulato e gago, conseguiu a proeza de obter instrução para em vida ser reconhecido como grande expoente literário, fato concretizado em 1896 quando se torna presidente-fundador da Academia Brasileira de Letras.

O autor nasceu no Morro do Livramento, subúrbio carioca, era neto de escravos alforriados, filho de pintor e mãe lavadeira. Inicia sua intervenção intelectual desde baixo, como funcionário da Tipografia Nacional onde entraria em contato com os intelectuais da época. Seria a partir de 1861, aos 20 anos, que passaria a publicar os seus primeiros escritos.

Sabe-se que Machado de Assis tem produção em todos os gêneros literários: poesia, teatro, romances, contos, crônicas.  Destes, não se projetou nos versos e nos textos cênicos, mas escreveu textos de alto relevo artístico no romance e nos seus contos.

Dentre a poesia destacamos “Crisálidas” (1864) e “Falenas” (1870); dentre os Romances os mais conhecidos são “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), “Dom Casmurro “(1889) e “Quincas Borbas” (1891), e muitos outros; dentre os contos destacamos além dos “Contos Fluminenses” (1870) e “Várias Histórias” (1996); e no teatro “Queda que as mulheres têm para os tolos” (1861) e “Desencantos” (1861)

A crítica costuma dividir a obra de Machado de Assis em duas grandes fases. O ponto de referência que separa a fase madura da fase romântica de Machado de Assis dá-se com a publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), que de outra forma significa um marco na história da literatura nacional, correspondendo à introdução do realismo literário plenamente livre de qualquer resquício romântico na literatura brasileira e mesmo já introduzindo inovações formais fazendo daquela uma verdadeira obra de vanguarda.

“Contos Fluminenses” é de 1870, correspondendo à primeira fase literária de Machado de Assis. Diz respeito ao contexto literário do romantismo, e mais especificamente à terceira geração do romantismo. Tinha como contexto a emergência de ideias forças como o abolicionismo, o republicanismo, o positivismo e na verdade se tratava de uma espécie de transição entre o romantismo e o realismo: a geração condoreira (ave Condor, que voa alto, pois deseja mudanças sociais) passa a se voltar menos para o subjetivismo e mais para a descrição da realidade social, menos idealismo e mais objetividade quando da descrição das relações do amor, em especial, ganhando espaço a questão do erotismo e dos impulsos e desejos sexuais.

Não há em Machado de Assis como em Castro Alves e outros autores daquela geração uma orientação proselitista/ufanista. O que os aproxima daquela geração é antes o seu foco e sua atenção nas relações sociais da cidade e os tipos burgueses e pequeno-burgueses, bem como a descrição psicológica já anunciada em seus contos que se antecedem (ainda que de forma superficial) ao romance realista que virá no futuro, plenamente arranjado para destituir de ilusões o amor burguês idealizado pela escola romântica.

Há algo de arbitrário naquela divisão entre o Machado de Assis maduro e romântico desde que em alguns lances dos “Contos Fluminenses” é possível observar algumas sacadas que marcariam o romancista adulto.

O expediente de dialogar diretamente com o leitor, que é uma técnica sintomaticamente machadiana e que poucos escritores conseguem reproduzir, já aparece no conto “Miss Dollar”, por ex:

“Algum leitor grave achará pueril esta circunstância dos olhos verdes e esta controvérsia sobre a qualidade provável deles. Provará com isso que tem pouca prática no mundo. Os almanaques pitorescos citam até a saciedade mil excentricidade e senões dos grandes varões que a humanidade admira, já por instruídos nas letras, já por valentes nas armas; e nem por isso deixamos de admirar esses mesmos varões. Não queira o leitor abrir uma exceção só para encaixar nela o nosso doutor. Aceitemo-lo com os seus ridículos; quem os não tem? O ridículo é uma espécie de lastro da alma quando ela entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegação sem outra espécie de carregamento”.

Aqui observamos todas as características machadianas em sua plenitude: a descrição psicológica, a técnica do diálogo com os leitores, a ironia mordaz, as tiradas filosóficas. Isto num conto escrito 11 anos antes de seu Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Na opinião deste leitor, o melhor conto dos 7 reunidos em “Contos Fluminenses” é “Luís Soares”. O conto narra a história de um singelo personagem oportunista, sempre dado a viver como Calígula, sem laborar e usufruindo de uma riqueza herdada que um dia chega ao fim. Deseja então reaproximar-se de seu Tio com interesses meramente pecuniários. O enredo com suas idas e vindas e o triste destino de Luís Soares – que dão certamente ao Conto um tom um tanto moralista – expressam as características românticas do texto. Mas o seu ponto alto corresponde à forma literária, superior ao comum: e já observamos que o gênio Machado de Assis, mesmo em sua “imaturidade” literária, já fazia arte muito acima da média. 

Veja sua descrição de Luís Soares:

“Graças a uma boa fortuna que lhe deixara o pai, Soares podia gozar a vida que levava, esquivando-se a todo gênero de trabalho e entregue somente aos institutos da sua natureza e aos caprichos do seu coração. Coração é talvez demais. Era duvidoso que Soares o tivesse. Ele mesmo o dizia. Quando alguma dama lhe pedia que ele a amasse Soares respondia

- Minha rica pequena, eu nasci com a grande vantagem de não ter coisa nenhuma dentro do peito nem dentro da cabeça. Isso que chamam juízo e sentimentos são para mim verdadeiros mistérios. Não os compreendo porque os não sinto.” 

Machado de Assis escreveu cerca de 200 contos. São pequenos retratos de cenas do Brasil do Segundo Império, mas que interessam muito mais do que excelentes fontes históricas, mas como base de reflexão atual sobre amor, traição, casamento, família e outros diversos temas tratados pelo autor.  

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

“Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana” – Florestan Fernandes

“Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana” – Florestan Fernandes



Resenha Livro # 139 - “Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana” – Florestan Fernandes – Ed. Expressão Popular

Uma das características das análises do prof. e sociólogo marxista Florestan Fernandes é a alta densidade teórica de seus textos, um olhar acurado e profundo desde o ponto de vista da história e das relações sociais dos objetos de estudos, o que exige permanente atenção do leitor. O que é curioso é observar a alta capacidade do intelectual combinada com sua humildade e generosidade como pessoa - este último um dado de sua biografia.

Diz a “Nota Explicativa” deste livro de Florestan Fernandes sobre a Revolução Cubana que o material surgiu a partir de sugestão de editar anotações feitas para curso ministrado na pós graduação da PUC-SP em 1979 e posteriormente aos alunos da FFLCH-USP por meio do seu Centro Acadêmico:

“Depois de ouvir diversos tipos de razões e de convencer-me, mas ainda muito relutante, pedi a Antônio Candido de Mello e Souza, Heloisa Rodrigues Fernandes e Atsuko Haga que fizessem uma leitura das anotações e considerassem se seria realmente oportuno dar lume a um trabalho que fora projetado para fim restrito (introduzir os estudantes ao estudo da revolução cubana). A opiniões foram favoráveis à publicação e acatei-as”.

E assim saiu ganhando leitores que hoje a partir de edição da Expressão Popular têm acesso a uma história da revolução bem como uma descrição de sua evolução político-social entre os anos de 1960-70 privilegiada: como socialista e marxista, Florestan não incorre em qualquer ilusão de neutralidade desde seu ponto de vista e encara seu trabalho como um sociólogo mas também como um apoiador da revolução (o que não significa deixar de indicar as dificuldades políticas da construção do poder popular, os riscos de burocratização, posicionar-se contra a ideia da reprodução do modelo de guerrilhas desde os demais países latino-americanos como defendido por Che, e em certa medida por Carlos Marighella, etc).

É preciso esclarecer bem este ponto. Florestan Fernandes em primeiro lugar tem como objeto de estudo Cuba, um caso específico de país colonial cuja luta por libertação e emancipação, dada as suas especificidades, foi resultar em última instância numa luta anticapitalista e socialista – de onde vem a especificidade de Cuba? Como ignorar uma país que impõe um novo padrão de desenvolvimento histórico para todo um continente? O que representa aquela revolução diante das experiências de emancipação meramente formal e de continuidade da relação de dependência econômica (revolução “dentro da ordem”) que marcam os demais países latino-americanos? Apenas estas perguntas em si já atrairiam o olhar e a preocupação do sociólogo.

Todavia, e aqui ressalta-se a honestidade intelectual do pesquisador marxista, Florestan é um defensor da Revolução Cubana e sua produção é uma contribuição intelectual para a construção do socialismo naquele país, refletindo vivamente sobre o passado colonial, a economia e a sociedade sob o socialismo e o problema do estado revolucionário e do poder popular. Cada um dos tópicos sempre buscando desvendar criticamente as informações disponíveis e apresentando perspectivas para o futuro. Não existe neutralidade possível quando se trata da seleção de fatos, da forma como se descreve eventos e evidentemente quando se extrai conclusões sociológicas. O pressuposto teórico metodológico marxista tem como ponto de chegada o pressuposto político socialista em Florestan: ele é um aliado da revolução.

As especificidades de Cuba

Talvez os capítulos mais interessantes para o leitor brasileiro, especialmente diante da ausência de fontes históricas disponíveis, referem-se ao passado colonial e neocolonial de Cuba.

Colonial diz respeito à dominação espanhola que perdura até meados do séc. XIX quando a partir de 1868 com a Guerra de 10 anos observa-se o primeiro movimento de libertação nacional. Ainda que não lograsse o êxito, lançaria as bases para a efetiva Guerra de Independência de 1895.

Cuba durante a maior parte do período colonial correspondia a uma base militar sem grandes ocupações econômicas. Devido à sua posição estratégica, os espanhóis ocupavam a ilha e de lá buscavam ouro e diamantes e viviam da agricultura e pecuária. Seria após o levante dos escravos do Haiti (1791-1804), com a interdição da produção de açúcar naquela colônia que os Espanhóis a partir do início do XIX iniciariam uma efetiva promoção da colonização da ilha cubana.

Os dois principais produtos de exportação de Cuba seriam a Cana de Açúcar – produzidas nos engenhos sob a forma dos latifúndios e o Tabaco, já com a constituição diferente, produzido em unidades de produção menores e em maior proximidade com os centros urbanos.

A partir do séc. XIX muda-se radicalmente a composição social da ilha com larga introdução do trabalho escravo. E paulatinamente o capital norte-americano iria operar na indústria do açúcar até efetuar o completo domínio desta economia, complementando o domínio por via indireta da vida política cubana – colonização indireta após a Guerra de Independência Hispano-Americana (1895-1898).

Esta colonização tardia dentre outros traria especificidades que seriam como elementos detonadores da revolução:

“Primeiro, Cuba é o único país na América Latina no qual a descolonização foi apreendida como realidade total e no qual a prática política se organizou para extinguir todos os fatores, efeitos e resíduos do colonialismo e do neocolonialismo. Os revolucionários cubanos – com Fidel Castro à frente – fizeram uma crítica implacável da dominação colonial e da dominação neocolonial, embora observando a máxima de José Martí de conter a explicação da denúncia e de não precipitar os embates decisivos. A crítica foi feita com igual profundidade com relação aos fatores daquela dominação que organizava a partir de dentro e a partir de fora da sociedade cubana” (P. 33)

Ressalta-se que a partir de dentro havia uma elite política extremamente subserviente aos EUA que tinha como ponto de apoio a economia do açúcar – e portanto a dependência e vulnerabilidade econômica criaram na realidade uma situação em que Cuba era cinicamente administrada indiretamente de acordo com os interesses dos EUA.

A Emenda Platt seria o elemento jurídico que mais simbolizava aquela subserviência e transformava na prática Cuba num protetorado norte-americano. Firmada após a Guerra De Independência (1895-98), a norma jurídica consagrada na constituição cubana estabelecia que os EUA poderiam  intervir naquele país a qualquer momento em que interesses recíprocos de ambos os países fossem ameaçados. A situação seria agravada com a denominada política do “Big Stick” (Grande Porrete) nos primeiros anos do Séc. XX segundo a qual a América deveria ser área de influência exclusiva dos americanos – leia-se de dominação imperialista norte-americana.

Para além do Florestan historiador do passado colonial Cubano – e aqui há uma chave explicativa decisiva para entender a especificidade daquela experiência história mesmo para entender porque da sua não repetição em outros países da América Latina – as aulas do professor trataram de temas relacionados às relações sociais e políticas na Ilha. Temas como a participação dos trabalhadores na vida política,  a forma como se dava as tomadas da decisão, organogramas da estrutura de poder, formas de eleição para o PCC e dirigentes sindicais, e sondagens de opinião sobre a nova vida sob o socialismo são relatadas a partir de fontes secundárias.

Concordamos em suma com Florestan Fernandes quando fala a respeito do fascínio de seu objeto de estudo:


“O fascínio do estudo de Cuba está em que ela desmente todos os dogmatismos possíveis, tanto os “especificamente científicos” quanto os “puramente socialistas”. O dogmatismo, é certo, não passa de uma simplificação, feita em nome do pensamento sobre a “essência”, a “verdade”, o “modo de ser” da realidade pensada. Feito em termos científicos, o dogmatismo desloca a crítica das teorias em favor da verdade absoluta; feito em termos socialistas, ele desloca a crítica dos fatos em favor da única escolha possível. Ora, nenhum cientista social e nenhum socialista revolucionário poderia prever, ante eventu, a revolução cubana. Precisamos evocar isso em nosso ponto de partida para não caminharmos do recente para trás, como se a clareza que possuímos sobre muitos acontecimentos e processos históricos fosse dada de antemão e não construída ex post facto. Havia uma razão ideológica e política que iluminou a visão prospectiva de alguns revolucionários e ela se mostrou sob muitos aspectos correta. Ainda assim, só um homem, Fidel Castro, chegou ao fundo dessa razão e hoje são evidentes as aproximações e as incertezas que impregnaram suas lutas políticas. Diante de algo tão grande e valioso como essa revolução, recomenda-se, pois, que se evitem as simplificações, para apanhá-la o mais possível em seu fluir, em sua totalidade e em sua beleza intrínseca.”

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

“Menino de Engenho” – José Lins do Rego

“Menino de Engenho” – José Lins do Rego

Resenha Livro #138 - “Menino de Engenho” – José Lins do Rego – Ed. José Olympio



O escritor paraibano José Lins do Rego teve a sorte distinta da maior parte dos escritores brasileiros. Não só foi reconhecido em vida como teve o seu devido talento já noticiado desde o seu romance de estreia, “Menino de Engenho”, publicado em 1932.

Este romance desponta junto com “O Quinze” de Rachel de Queirós e “A Bagaceira” de José  Américo de Almeida como os principais representantes do chamado romance regionalista e mais especificamente do “ciclo nordestino” dos anos de 1930.

Trata-se aqui da segunda etapa do Modernismo inaugurado com a Semana da Arte de 1922 e que tinha como precursores, na literatura, autores como Mário de Andrade e Oswaldo de Andrade.

O Movimento Modernista pavimentou um caminho para a construção de uma arte propriamente nacional – até então a produção artística brasileira sempre tinha como denominador comum a importação dos modelos europeus, destacadamente do francês, desde o realismo, o naturalismo, o parnasianismo, o simbolismo.  A vanguarda modernista vinha a romper com esta lógica buscando criar não só temas, mas formas poéticas especificamente nacionais – e a obra "Macunaíma" de Mário de Andrade, uma história fantástica de um índio, “herói de nossa gente”, cujo vivência na cidade e no mato expressa  a todo momento e por todos os meios as especificidades brasileiras, seria um belo ponto de partida.

A 2ª fase do Modernismo tem como contexto histórico a era Vargas e seu autoritarismo ensejando obras de crítica social. Neste contexto, o regionalismo abordaria de perto o problema dos despojados da terra, sendo estes temas de escritores como Jorge Amado (em seus primeiros livros) e Amado Fontes. Os romances abordaram outros temas como a seca e a migração, sendo de se lembrar uma das mais destacadas obras do autor alagoano Graciliano Ramos, “Vidas Secas”.  

As obras do “ciclo nordestino”, do qual “Menino do Engenho” é um belíssimo exemplar são uma decorrência lógica daquele ponto de partida do modernismo de 22: aqui não se trata da nacionalidade, ou do todo, mas do regional, do particular, e a história refere-se à vida cotidiana no Engenho de Santa Rosa: tem-se que o engenho já vive um momento de decadência, não em função de algum problema específico, mas decorrente do esgotamento de uma era histórica, a transição entre o Brasil dos coronéis e a modernização da qual a Revolução de 1930 significa um primeiro marco.

Tem-se ainda todos os elementos do velho coronelismo: o velho coronel José Paulino comanda o Engenho, dita as normas de direito e resolve os conflitos, impõe o trabalho aos cabras (que se dá através de relações aparentemente "feudais", com os posseiros laborando para o coronel e em parte plantando em suas pequenas glebas) e ditando a política do cabresto.  Mas o que há de mais interessante em Menino de Engenho é que todo este panorama rico de experiências e histórias é relatado pelos olhos de um Menino, do Menino de Engenho.  

A maestria de José Lins do Rego consiste em saber traduzir em palavras a  forma como se dá a  percepção de mundo da criança.  Sua linguagem é simples e a todo momento o leitor depara-se com passagens profundas: é o homem adulto que consegue fielmente traduzir o sentimento da criança. Daí se extrai uma bela poesia.

E nesta narrativa entram não só as duras condições de vida dos trabalhadores – a crítica social – mas toda sensibilidade que envolve a relação de descoberta do menino com o mundo. A descoberta com a sexualidade que na verdade, no Engenho, se praticava junto aos animais sempre às escondidas e, posteriormente, confirmando o que já afirmava Gilberto Freire em “Casa Grande e Senzala”, por volta dos 12 anos, junto às negras – ex escravas que se deixavam ficar no engenho – e que iniciavam os meninos no amor sexual nem sempre às escondidas. A descoberta do sentimento amoroso, no caso envolvendo uma prima e a sensação de perda quando a mesma retornava para a cidade grande (Recife). A festa de casamento, todo o preparativo da noiva, a matança de bois e carneiros para uma festa que perdurava mais de um dia, quando o engenho recepcionava gente de todas as bandas.

Em 130 páginas o leitor faz uma viagem a um mundo colonial em desagregação que ainda resiste sob a liderança do velho coronel José Paulino – que previam que quando morresse levaria consigo a ruína do Engenho de Santa Rosa.   

Todo brasileiro com interesse em conhecer e entender o nosso passado colonial deve conhecer algo sobre aqueles escritores modernistas do “ciclo nordestino”, como José Lins do Rego, Graciliano Ramos ou Rachel de Queirós. Mesmo porque, conforme nos mostra Caio Prado Júnior, o sentido da nossa colonização – nossa vocação de servir e conformar nossa economia periférica aos centros do mundo – perpassa o Brasil moderno, ainda é vigente.

Diz o Menino do Engenho sobre si.

“Era um menino triste. Gostava de saltar com os meus primos e fazer tudo o que eles faziam. Metia-me com os moleques por toda parte. Mas, no fundo, era um menino triste. Às vezes dava para pensar comigo mesmo, e solitário andava por debaixo das árvores da horta, ouvindo sozinho a cantoria dos pássaros.

O meu esporte favorito concorria para estes isolamento melancólico”.  

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

“A História Me Absolverá” – Fidel Castro

“A História Me Absolverá” – Fidel Castro

Resenha Livro #137 -  “A História Me Absolverá” – Fidel Castro – Ed. Alpha-Ômega




Em 26 de Julho de 1953, 165 homens, liderados pelo jovem advogado Fidel Castro, atacaram o Quartel de Moncada, fortaleza militar localizada em Santiago de Cuba, província ao oriente da Ilha.

A ação corresponderia à primeira etapa da vitoriosa revolução cubana que teria como desfecho final o 31 de Dezembro de 1958 com a fuga do sanguinário ditador Batista da Ilha e a efetiva tomada do poder político pelas forças revolucionárias em 1º de Janeiro de 1959.

“A História Me Absolverá” por sua vez é a defesa de Fidel Castro dentro do processo crime instaurado após a ação do 26 de Julho. Não se tratava evidentemente de uma mera peça jurídica: desde 10 de Março de 1952 com o Golpe Militar de Batista, Cuba vivia sob um estado de exceção, com todas as garantias constitucionais suspensas, sendo aquele processo e especialmente o tratamento bárbaro dado pelos militares tanto à população civil de Santiago de Cuba quanto aos homens do movimento do 26 de Julho o maior testemunho de que não havia em Cuba nada semelhante a uma situação de normalidade democrática.

Sabe-se que o exército de Batista conseguiu apenas reprimir a ação dos revolucionários diante de sua enorme maioria em homens e armas – ainda assim a vantagem moral dos revolucionários fizeram com que o exército tivesse 3 vezes mais baixas nos conflitos do assalto de Moncada. Diante disso, nos três dias subsequentes à ação dos homens de Fidel, ordens superiores deram instruções para que, após o conflito e da forma mais covarde, se executasse dentro da prisão e mesmo nos hospitais, arrancando das camas os feridos, pelo menos 70 deles combatentes do Moncada – tudo para não macular a “imagem” do exército. A população de Santiago de Cuba igualmente sofreu dos abusos do exército, com muitos presos e mortos confundidos com revolucionários.

Quanto ao processo judicial, tentaram de todas as formas calar Fidel Castro, inclusive manobrando para que ele não comparecesse à audiência sob suposta existência de enfermidade inexistente.

Observa-se pelo pronunciamento que àquele momento a revolução cubana tinha um caráter anti-latifundiário, lutava contra a corrupção na política e buscava maior justiça social, ainda não possuindo caráter socialista – este apenas decorre de momento posterior à tomada do poder com as contradições frente ao imperialismo norte-americano em 1961.

São basicamente as seguintes tarefas colocadas pelos revolucionários de Moncada: (i) restituir a soberania ao povo e proclamar a constituição de 1940 como a verdadeira lei suprema de Cuba – e aqui vale ressaltar que Batista editou leis que se sobrepunham a esta constituição dando poderes a conselho de ministros que a qualquer momento podiam modificar cláusulas consideradas pétreas num estado democrático como regime de governo (monarquia, república), separação de poderes, etc. , revelando o mais absoluto arbítrio; (ii) concessão da propriedade da terra desimpedida e intransferível a todos os colonos, subcolonos, arrendatários, parceiros e posseiros que ocupassem cinco ou menos caballerias ( 5 x 13 430 m) de terra, indenizando o estado a seus antigos proprietários à base da renda média das referias parcelas no curso de dez anos; (iii) concessão aos operário e empregados de direito à participação de trinta por cento dos lucros de todas as grandes empresas industriais, mercantis e mineiras, inclusive açucareiras, exceto exclusivamente agrícolas; (iv) todos os colonos teriam direito de participar de 55% do rendimento da cana e a cota mínima de 40 mil arrobas a todos pequenos colonos; (v) confisco total de todos os bens dos corruptos, coniventes e herdeiros.

Ademais aqui o movimento já sinalizava sua vocação internacionalista, nas palavras de Fidel:

“Além disso, a política cubana na América seria de estreita solidariedade com os povos democráticos do continente, e os perseguidos políticos pelas tiranias sangrentas que oprimem as nações irmãs não encontrariam, como hoje, na pátria de Martí, perseguição fome e traição, mas sim asilo generoso, fraternidade e pão. Cuba deveria transformar-se em baluarte da liberdade e não símbolo vergonhoso de despotismo”.

A defesa de Fidel Castro como se observa é antes um julgamento histórico da recente trajetória política de Cuba que teve como ponto de partida as lutas de resistência, em particular a partir do 10 de Março de 1952 e que culminariam posteriormente na vitória do 1º de Janeiro de 1959.

Outrossim, o discurso não deixa de fazer referência ao histórico de lutas de Cuba, a José Martí, herói cubano de independência Nacional, aos dois movimentos de libertação nacional cubanos, à resistência dos estudantes que sempre tiveram um papel importante na história de Cuba, já desde o período colonial espanhol. E se é certo que a história absolveu Fidel Castro, deu-se o fato não pela lógica meramente instrumental de argumentos jurídicos, mas pela prática na história que, consoante Lênin, sempre será o critério da verdade.


“Senhores Juízes, ao julgardes um acusado por roubo, não lhes perguntais quanto tempo está sem trabalho, quantos filhos tem, em que dias da semana comeu; não vos preocupais em absoluto, pelas condições sociais do meio em que vive; o enviais ao cárcere sem maiores contemplações. Para lá não vão os ricos que queimam armazéns e lojas para cobrar as apólices de seguros, ainda que também sejam queimados alguns seres humanos. Eles têm  dinheiro de sobra para pagar advogados e subornar magistrados. Enviais ao cárcere o infeliz que rouba de fome, mas nenhum das centenas de ladrões que roubarão milhões ao Estado jamais dormiu uma noite no xadrez. Ides cear com eles no fim do ano em restaurantes aristocráticos. Merecem vosso respeito. Em Cuba, quando um funcionário se torna milionário da noite para o dia e entra para a sociedade dos ricos, pode ser recebido com as mesmas palavras daquele opulento personagem da Balzac, Taillefer, quando brindou em honra do jovem que acabava de herdar imensa fortuna: “Senhores, bebamos ao poder do ouro! O Senhor Valentim, seis vezes milionário, acaba atualmente de ascender ao trono. É rei, pode tudo, está por cima de tudo, como acontece com os ricos. Daqui por diante, a igualdade diante da lei, consignada no frontispício da Constituição, será um mito para ele. Não estará sujeito às leis, ao contrário, as leis se submeterão a ele. Para os milionários não existem tribunais nem sanções”. Fidel Castro 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

“O Quilombo dos Palmares” – Edison Carneiro

Resenha Livro #136 - “O Quilombo dos Palmares” – Edison Carneiro – Ed. Brasiliana Volume 302
               
           


         O Quilombo dos Palmares foi um evento histórico que marcou a história do Brasil Colonial e assombrou as classes dominantes do país no século XVII, correspondendo à forma de resistência dos negros cativos que fugiam da senzala, refugiavam-se nas densas matas da região da então comarca de Alagoas pertencente à capitania de Pernambuco e construíam verdadeiras cidades fortaleza.
Pelos relatos históricos, na verdade “o” quilombo não correspondeu a uma cidade-sede, mas a um conjunto de agrupamentos que deveriam totalizar o incrível número de 20 000 almas, tendo durado quase todo o século XVII,  resistindo a pelo menos 17-24 entradas (expedições militares) das quais duas foram holandesas: lembramos que nos anos de 1580 e 1640 houve a União Ibérica, a união política entre Portugal e Espanha resultando nas invasões holandesas nos territórios coloniais portugueses, em especial na capitania de Pernambuco.
Neste momento de fragilidade militar da coroa portuguesa, observou-se um recrudescimento das fugas de escravos com correspondente aumento e fortalecimento do Quilombo dos Palmares. O que poucos sabem é que quando os holandeses cá estiveram, os próprios também moveram duas expedições militares com o objetivo de destruir Palmares. As entradas resultaram em algumas escaramuças mas os ex- escravos conseguiram bater em retirada. Destas entradas ficou para história um documento histórico precioso que está no anexo deste livro de Edison Carneiro:  o diário de viagem do capitão holandês João Blaer aos Palmares datado de 1645.   
Edison Carneiro é historiador baiano e seu “Quilombo dos Palmares” tem grande relevo histórico pelo seu pioneirismo. Publicado em 1946, foi o primeiro estudo histórico específico sobre o Quilombo dos Palmares, sendo um dado curioso o fato do livro ter sido publicado primeiro no México desde que o autor também se colocava como intelectual engajado na luta contra o Estado Novo de Getúlio Vargas. Só em 1947, com o apoio de Caio Prado Jr., o livro seria publicado no Brasil pela editora Brasiliense.
Uma das dificuldades do historiador que busca reconstruir Palmares é a falta de fontes históricas que não fossem aquelas “oficiais”, ou seja, os documentos dos expedicionários, os editais das entradas, os diários de viagem dos bandeirantes, ou seja, as fontes que expressam o ponto de vista dos “vencedores”, e não dos “vencidos”. Toda a reconstrução de como eram os quilombos, sua divisão social, os usos e costumes dos quilombolas de alguma forma ficam prejudicados. Mas ainda assim muitas informações são seguras e o livro desmistifica algumas informações falsas e que até hoje são repercutidas sobre o quilombo.
Uma delas é a de que havia uma espécie de “república” ou regime democrático dentro dos Quilombos. Seria difícil imaginar como ideias republicanas dos pensadores iluministas franceses como Voltaire e Diderot poderiam estar disseminadas por meio daquelas matas fechadas dentre os quilombolas.... Na verdade, diz Edison Carneiro, “(os quilombos) reconhecem-se todos obedientes a um que se chama o Ganga-Zumba, que quer dizer Senhor Grande; a este têm por seu rei e senhor todos os mais, assim naturais dos Palmares como vindos de fora; tem palácio, casas da sua família, é assistido de guardas e oficiais que costumam ter as casas reais. É tratado com todos os respeitos de rei e com todas as honras de senhor. Os que chegam a sua presença põem os joelhos no chão e batem as palmas das mãos  em sinal de reconhecimento e prostração de sua excelência; falam-lhe por Majestade, obedecem-lhe por admiração”.
Havia um sistema parecido com uma monarquia com uma família real: Zumbi dos Palmares foi sobrinho de Ganga Zumba. Zumbi costuma ser lembrado e mais reivindicado como exemplo de lutador desde que ao contrário do tio, que foi capturado e capitulou, Zumbi e seus homens permaneceram foragidos, recusaram-se a capitular, resistiram e lutaram até a morte.
No primeiro quartel do séc. XVII as entradas foram feitas a partir de expedições com homens da região. Em geral os brancos contavam com a ajuda de índios que conheciam melhor a densa mata fechada, coberta de rios, lama, espinhos, despenhadeiros. A alimentação da tropa era a base de farinha e peixe, e quando faltavam, comiam raízes de plantas, sempre orientados pelos aborígenes. Eram tantas as dificuldades que era muito comum a fuga de soldados.
Estas primeiras expedições não lograram resultados sendo posteriormente as autoridades forçadas a recorrer à experiência dos bandeirantes, os “Paulistas”. Destes, certamente destacava-se a figura bárbara de Fernão Carrilho e seus homens. A brutalidade dos paulistas era não só temida pelos negros foragidos mas pelos moradores da região que temiam a presença dos mesmo após a queda de Palmares. Na verdade, o que estava em jogo com a destruição do Quilombo era também a socialização de riqueza e terras: tanto dos muitos negros capturados quanto das férteis terras palmarinas que realmente foram distribuídas tanto entre os expedicionários, quanto entre a Coroa e a Igreja.  
Pela sua magnitude e por sua duração (quase 100 anos), o Quilombo dos Palmares representa a primeira grande manifestação de resistência e luta contra as classes dominantes em território Brasileiro – nas palavras de Edison Carneiro, “o movimento de fuga era, em si mesmo, uma negação da sociedade oficial, que oprimia os negros escravos, eliminando sua língua, a sua religião, os seus estilos de vida. O quilombo, por sua vez, era uma reafirmação da cultura e do estilo de vida africanos”. Portanto torna-se necessário guardar esta história como parte do patrimônio das lutas sociais brasileiras.  


Fernão Carrilho - Expedicionário Paulista 

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

“Teoria da Organização Política V. II” – Ademar Bogo (org.)

“Teoria da Organização Política V. II” – Ademar Bogo (org.)
Resenha Livro #135 - “Teoria da Organização Política V. II” – Ademar Bogo (org.) – Ed. Expressão Popular




                
Este segundo volume de textos tem como matéria o problema da organização política dos movimentos revolucionários ao longo do século XX perpassando experiências revolucionárias em praticamente todo o globo. 

Neste segundo volume, foram dados destaques a escritos de ativistas e intelectuais marxistas que intervieram especificamente em contextos da periferia do sistema capitalista, sendo recorrentes os temas da luta anti-imperialista e o problema da relação entre o proletariado e as respectivas burguesias nacionais. 

Assim, temos aqui textos de J. C. Mariátegui (Peru), Gramsci (Itália), Luiz Carlos Prestes (Brasil), Che (Argentino, mas com atuação principal na Revolução Cubana), Marighella (Brasil), Álvaro Cunhal (Portugal), Agostinho Neto (Angola) e Florestan Fernandes (Brasil).  

Dentre os autores supracitados, destacaremos aqueles menos conhecidos ou comentados dentre o público Brasileiro.  

É o caso de José Carlos Mariátegui que tem como obra traduzida em português “Sete Ensaios de Interpretação Sobre a Realidade Peruana” e mais recentemente uma coletânea de artigos sobre a Revolução Russa (decorrente de uma viagem do jornalista peruano à Itália), ambos também publicados pela Ed. Expressão Popular.  

Mariátegui é um caso raro de ativista e intelectual latino-americano que soube se apropriar de uma forma singular do marxismo e aplicá-lo efetivamente como um método de interpretação da realidade, sabendo adequá-lo às especificidades da realidade nacional e latino-americana, identificando de forma pioneira a importância do elemento indígena dentro do contexto da luta revolucionária no Peru e sinalizando, igualmente de forma pioneira, as diferenças entre a situação de países da América do Sul e os países asiáticos em que as classes médias e a burguesia nacional teriam mais chances de fazer bloco político com os de baixo do que com os de cima – ora no Peru e demais sociedades da América Latina, observa Mariátegui criticando a linha Aprista que recomendava uma política semelhante ao koummitang chinês – o elemento de classe média, desde a tradição colonial, passando por elementos econômicos, políticos e culturais, desprezava os debaixo e buscava sempre ascender junto aos de cima.  

É interessante que mais à frente no texto de Carlos Marighella denominado “A Crise Brasileira”, este mesmo assunto é retomado a título de auto crítica pelos comunistas brasileiros. No caso, a “Crise Brasileira” foi escrita alguns anos após o Golpe de 1964 e tem como escopo justamente identificar as razões pelas quais a esquerda saiu derrotada naquele evento. São inúmeros os motivos elencados por Marighella: falta de trabalho de base junto ao movimento camponês, confiança no dispositivo militar do estado burguês, confiança nos acordos de cúpula sem correspondente disseminação de agitação e propaganda nas massas (especialmente para além das empresas estatais). Mas outro ponto tocado por Marighella e já prenunciado por José Carlos Mariátegui em 1929 (!) é justamente as incompatibilidades políticas entre burguesia nacional e proletariado e as demais forças revolucionárias em países como Brasil e Peru.  

No caso brasileiro, as esquerdas cometeram o erro de deixar o movimento de massa ser hegemonizado e dirigido pela fração da burguesia nacional liderada por João Goulart desconsiderando que, apesar da retórica nacionalista, ela tende à vacilação e à capitulação: e de fato, foi o que houve em 1º de Abril, qual seja, um golpe de estado sem qualquer reação, a não ser uma tentativa frustrada de greve geral.   Diz Marighella, “A grande falha desse caminho era a crença na capacidade de direção da burguesia, a dependência da liderança proletária e política efetuada pelo governo de então. A liderança da burguesia nacional é sempre débil e vacilante. Ela é destinada a entrar em colapso e a capitular sempre que do confronto com os inimigos da nação surja a possibilidade do poder ao controle direto ou imediato das massas”.  

“Continua sendo exato que a aliança com a burguesia nacional é uma necessidade na conjuntura histórica brasileira. Seja como for, porém, torna-se imprescindível travar a batalha pela conquista da hegemonia, sem o que o futuro do movimento de massas estará comprometido”.

Outro autor eventualmente desconhecido do leitor brasileiro é Antônio Agostinho Neto. Nascido em Luanda (Angola) em 1922, filho de pastor de igreja protestante e mãe professora, veio de família muito humilde: seu país, uma colônia portuguesa desde 1482. Decidido a cursar Medicina, conseguiu reunir recursos e matriculou-se na Faculdade de Medicina de Coimbra se tornando médico em 1958.

Em Lisboa inicia sua atividade política sendo eleito representante da Juventude das Colônias Portuguesas, o que lhe valeu a prisão quando participava de ato público. Em 1959, Agostinho Neto retorna a Luanda e integra o Movimento Popular para a Libertação da Angola (MPLA), fundado em 10 de Dezembro de 1956. A repressão na colônia era intensa e 6 meses depois de sua chegada já foi preso.

O MPLA persistiu com uma atuação importante organizando assaltos em prisões para libertar presos políticos e representando a luta pela libertação da Angola, contando com apoio da União Soviética e de Cuba. Seria apenas com a Revolução dos Cravos em Portugal em 1974 que o panorama político mudaria de forma favorável às colônias Portuguesas: em menos de um ano, em 11 de Novembro de 1975, após 14 anos de luta contra o colonialismo, Agostinho Neto, já então reconhecido dirigente do MPLA, instituiu a República Popular de Angola, da qual foi aclamado presidente.

O texto selecionado pela Expressão Popular é na verdade um discurso sem muitas referências quanto à data e local onde foi pronunciado. Seu título: “Quem é o Inimigo? Qual é o nosso objetivo”.  

A linguagem é simples, objetiva e um pouco diferente dos demais textos por não referir-se aos conceitos marxistas: a verdade é que os movimentos de libertação nacional da África e Ásia do pós-guerra, ainda que muitos apoiados pela União Soviética, passaram para a história com a denominação de países “não alinhados”, considerando o contexto de bipolarização da Guerra Fria. O próprio Agostinho faz menção ao não alinhamento bem como à crise do campo socialista que àquela altura encontrava, no campo das relações internacionais, importantes fricções internas.  

De toda a forma, mesmo não havendo um alinhamento formal, do ponto de vista material, coincidem os pontos de vista da luta anti-colonialista na África com as lutas anti-imperialista na América Latina (Mariátegui, Che, Prestes, etc) e Ásia (Ho-Chi Mih).  

O objetivo do texto é listar quem é o inimigo e ainda que o autor identifique a presença do racismo como elemento estrutural do colonialismo, o que está por detrás dele é...o imperialismo e este é identificado como o inimigo principal. Nesse sentido, dá um salto de qualidade em sua análise, identificando como irmãos os povos oprimidos tanto de Angola, quanto de Portugal.  

Por outro lado, quando responde a pergunta “o que queremos?”, Agostinho fala sobre socialismo e luta contra o capitalismo.   

“E no fundo, o que é que nós queremos? Não penso que a luta de libertação se dirija no sentido da inversão dos sistemas de opressão de modo que o senhor de hoje seja o escravo de amanhã. Pensar assim, será querer caminhar contra o sentido da história. As atitudes de vingança social não são as que poderão trazer aquilo que desejamos, ou seja, a liberdade do homem. É que as lutas de libertação, desejo sublinha-lo de novo, não se destinam só a corrigir violentamente as relações entre os homens e especialmente as relações de produção, dentro do país – elas constituem um fator importante para a transformação positiva de todo o nosso continente e do mundo inteiro. A luta de libertação nacional é também um meio de quebrar todo um sistema injusto existente no mundo”.

Buscar os pontos em comum e eventuais diferenças de perspectiva dos autores dentre as ricas experiências revolucionárias vivenciadas por todo globo ao longo do século XX é o que de mais positivo se pode extrair deste volume de textos organizados pela Ed. Expressão Popular.