quarta-feira, 30 de outubro de 2013

“Brasil: De Getúlio a Castelo” – Thomas Skidmore


Resenha Livro #81 “Brasil: De Getúlio A Castelo” – Thomas Skidmore – Ed. Paz e Terra
 
 

O historiador norte-americano Thomas Skidmore certamente é o mais conhecido e lido brasilianista no país, tendo sido considerado pelo periódico inglês The Economist como o maior contribuidor estrangeiro para os esforços de analisar e interpretar a realidade brasileira. O brasilianismo corresponde a um movimento de produção acadêmica voltado ao estudo da realidade política, social e econômica do Brasil e seu surgimento coincide mesmo com o início do esforço de historiadores brasileiros voltarem-se à mesma temática – a partir da década de 1930, tendo dentre os brasileiros os expoentes Gylberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. No caso dos brasilianistas, a esmagadora maioria era norte-americana, contava com relevante suporte financeiro provindos dos EUA e, acredita-se, tiveram mesmo mais facilidade de acesso a documentos oficiais do que seus colegas pesquisadores brasileiros.

Chega a ser assombroso o vasto conhecimento da história política brasileira acumulado por Skidmore. Quando redigiu o seu “De Getúlio à Castelo”, havia dedicado algo em torno de 10 anos de estudos sobre o Brasil e, por meio do exame das notas e da bibliografia, percebe-se como o historiador agregara um vastíssimo acervo, envolvendo livros, revistas acadêmicas, pesquisas universitárias, relatórios e documentos oficiais, de forma a poder construir uma interpretação da história política brasileira extremamente sólida e embasada.

Entretanto, como sabemos, a teoria da história evoluiu, surgindo como disciplina inicialmente com pretenções de cientificidade e imparcialidade (vide Leopold Von Ranke na Alemanha e Verhagen no Brasil) e posteriormente se consolidando como uma matéria relativamente aberta às distintas interpretações. Isto significa que mesmo reportando-se a documentos oficiais e notórios fatos históricos, o historiador necessariamente cria uma narrativa do passado. A própria seleção dos fatos históricos a serem narrados, a sua hierarquização quanto à importância dos fatos, bem como a interpretação resultante do historiador revelam escolhas deliberadas que irão delimitar tanto a metodologia de pesquisa do pesquisador quanto a sua visão social de mundo.

Nesta perspectiva, Thomas Skidmore revela-se como um historiador de orientação conservadora, ainda que não sectária, por exemplo, junto a pensadores marxistas que são citados em suas notas de rodapé, como o general comunista Nelson Weneck Sodré e o também marxista Leôncio Basbaum. Entretanto, a suas propostas de delimitação das forças políticas operantes, por exemplo, nos anos de João Goulart, certamente revelariam um pouco do seu posicionamento político contrário ao marxismo e comunismo. Segundo Thomas Skidmore, havia junto a Jango uma esquerda “positiva” e uma esquerda “negativa”. A primeira era representada por homens como o advogado e deputado Santiago Dantas ou o eminente economista Celso Furtado. Era uma esquerda “positiva” certamente porque tinha um papel muito mais moderador e conciliatório do que Skidmore chama ora de esquerda “negativa” ou de “nacionalistas radicais”. Neste último grupo surgem figuras como Brizola, pintado pelo historiador como um homem temperamental, compulsivo e demagogo. Igualmente estavam neste bloco todo o setor de esquerda, que não é analisado com rigor em suas especificidades, colocando no mesmo saco os sindicalistas do CTB, os estudantes da UNE, a Ação Popular (que era um grupo egresso da juventude universitária católica), o PCB, o PCdoB, Francisco Julião e suas Ligas Camponesas e a frente parlamentar nacionalista.

Skidmore considera basicamente este bloco como um setor que mantém a sua unidade em torno de um nacionalismo “radical”, “anti-americano” e não-democrático. Ainda que não chegue aos tons de um Carlos Lacerda, em algumas passagens é possível perceber a associação ideológica feita pelo historiador entre “esquerda negativa” e “ruptura democrática”. O que é mais importante de frisar aqui é que esta percepção segundo a qual o modelo democrático-constitucional liberal seria o regime ideal e consensual na sociedade, apesar de “radicais de esquerda” (e “de direita” também), faz como que Skidmore dê pouca importância à importante radicalização política e mobilização da esquerda nos anos do pré-64, com todas as suas dificuldades e divisões internas. O historiador faz-nos crer que João Goulart inicialmente apoiara-se na esquerda positiva, mas com o fracasso do projeto de estabilização econômica e inflacionária, o presidente voltara-se para a esquerda “negativa” o que, em si só, seria um “erro político”.

Ocorre que João Goulart também estava pressionado pela conjuntura de radicalização política, com o crescimento de ocupações no campo lideradas pelas Ligas Camponeas, ameaças de greves gerais (que, como instrumento político, fracassou para conter os golpistas) e mobilização dentre os marinheiros, ferindo o sagrado dogma militar de disciplina e respeito à hierarquia.

Mas, certamente, a passagem em que é possível uma maior percepção da parcialidade de Skidmore está no capítulo dedicado à participação dos Estados Unidos no golpe militar de 1º de Abril de 1964. Talvez, aqui, Skidmore tenha capitulado aos interesses de seu país que prontamente foi acusado de participação no golpe. Vejamos qual é a resposta dada pelo historiador norte-americano à pergunta sobre a participação dos EUA no golpe civil-militar:

“E quanto ao papel norte-americano na época da própria revolta militar? Foi o governo dos Estados Unidos um patrocinador direto dos rebeldes militares, como tinha sido na Guatemala em 1954, ou na Baía dos Porcos em 1961? A resposta é, sem dúvida, negativa. Não existe prova para apoiar a alegação de que os conspiradores militares teriam sido subsidiados ou dirigidos pelo governo dos EUA. Em princípio, a intervenção dos militares brasileiros em 1964 em nada diferiu das anteriores, de 1955 (garantia da posse de Juscelino); 1954 (deposição de Vargas seguida do suicídio do presidente) ou 1945 (deposição de Vargas)”

O que é interessante notar aqui é que talvez movido por algum sentimento de lealdade intelectual, Skidmore prossegue este capítulo sinalizando justamente o contrário, qual seja, a participação dos EUA no golpe. Se, como dizíamos, a história é uma narrativa possível do passado, isto não autoriza o historiador a brigar com os fatos. E o próprio brasilianista lembra assim da Escola Superior de Guerra, modelada a partir da National War College de Washington. Grande parte dos golpistas fora egressa daquele instituto que disseminava as teses políticas norte-americanas anti-comunistas correspondentes ao período da Guerra Fria. O próprio Skidmore, ademais, menciona o curioso fato do embaixador norte-americano ter prontamente reconhecido o poder dos golpistas, mesmo havendo indefinição da situação política e jurídica de Jango, antes deste sair do país, reconhecendo como constitucional a posse do presidente da câmara dos deputados. (Lembrando que João Goulart havia sido vice-presidente da Jânio Quadros, que renunciara. Não havendo vice-presidente, o próximo para sucessão era Ranieri Mazzilli).

De qualquer forma, uma leitura crítica do trabalho de Skidmore é importante, dada em particular as enormes transformações estruturais pelas quais o Brasil passou entre 1930 até 1964. A industrialização e urbanização do país engendraram uma nova sociedade, uma nova dinâmica eleitoral e pressionava por mudanças político-institucionais. Certamente, Skidmore tem razão quando afirma que o descompasso entre as novas exigências de um país em rápida transformação combinada com uma estrutura política e administrativa arcaicas e que mal delimitava o público do privado, bem como partidos políticos sem bases sociais acabariam resultando (como de fato resultaram) em inúmeras crises, sendo de maior importância os golpes e contra-golpes dos militares. Provavelmente, foi um momento da história do Brasil em que as forças armadas desempenhavam um papel que não mais desempenham no presente, qual seja, a posição de árbitros supremos da política nacional, prontos a intervir em casos de possibilidades de rupturas políticas, papel que o exército já exercitava desde os tempos da República Velha.

Como todo livro de história, mesmo não se concordando com a orientação política do autor, o panorama desenhado do passado serve-nos como meio de ajudar a compreender de onde viemos e para onde vamos.    

* Notas de rodapé apenas lidas do 1º e 2º capítulos

domingo, 27 de outubro de 2013

“As Ironias da História” – Isaac Deutscher

Resenha livro #80 “As Ironias da História – Ensaios sobre o Comunismo Contemporâneo” – Isaac Deutscher – Ed. Civilização Brasileira



O leitor brasileiro pode ter tido notícia da existência deste importante historiador polonês através de sua notória biografia de L. Trótsky, publicada em três volumes: o Profeta Armado, o Profeta Desarmado e o Profeta Banido. Escreveu também uma biografia de Stálin e, como jornalista, publicou diversos ensaios, sobre história, política internacional e também crítica literária.

“Ironias da História” reúne diversos ensaios publicados pelo autor entre os anos de 1950 a 1960. Como não poderia deixar de ser, sendo um grande especialista em Revolução Russa, boa parte dos ensaios de Deutscher versa sobre os dilemas e impasses da revolução, especificamente nos anos que vão do stalinismo até o processo contraditório e ambíguo da desestalinização. Este fato não teve repercussão apenas na Rússia, mas em todo o mundo.

Lança mão, nesse sentido, de uma reflexão acerca dos sentidos da destalinização na Rússia e na China: na primeira, o fenômeno expressa um certo esgotamento do regime fortemente centralizado que desenvolveu intensamente a industrialização, além da instrução de grandes contingentes de cidadãos, que, cada vez mais, olhavam com desconfiança para a burocracia partidária no poder. A desestalinização na China assume outras características, especialmente pelo fato dos chineses ainda se encontrarem num estágio eminentemente pré-capitalista em sua economia. Assim, certamente houve maior resistência dentre os chineses em recepcionar as denúncias de Nikita Kruschev dos expurgos e mortes, além do culto à personalidade de Stálin. Ainda precisavam da mística do líder para efetuar a sua respectiva modernização. Tanto o é que, inicialmente, os chineses ainda se apegam à figura de Stálin, mesmo após o XX Congresso. Os comunistas russos passam a ser observada pelos chineses como revisionistas, especialmente em função de outros desdobramentos do fim da era stalinista, como a teoria da co-existência pacífica – teoria encarada pela ortodoxia de Pequim como uma traição ao internacionalismo.

Uma pequena ironia da história, aqui, é que Stálin, ele próprio, conspirou intensamente contra a revolução socialista na China, exigindo que seus partidários chineses se centralizassem por Chiang Kai-shek, líder nacionalista burguês do Kuomitang. Mao Tsé Tung já observara e provou na prática o erro da concepção “etapista” de Stálin segundo o qual um país essencialmente agrária e atrasado como a China deveria primeiro passar pela etapa da revolução burguesa-democrática, com os comunistas apoiando e se submetendo à direção da burguesia. Em 1949, Mao Tsé Tung e seus companheiros provaram a força da tática da revolução permanente, levando a China ao socialismo, muito provavelmente a contra-gosto de Stálin.

Afinal, alerta Deutscher, tanto a teoria da “co-existência pacífica” quanto a teoria do “socialismo num só país” reflete a mudança da perspectiva internacionalista da fase leninista da revolução para a posterior política chamada pelo historiador de “grão-nacionalismo” e que buscava muito mais atuar por meio do pragmatismo e da realpolitik no campo das relações exteriores, do que exercer movimentos mais ousados, especialmente no contexto da Guerra Fria e da possibilidade iminente de um confronto entre as duas potências.

Algumas palavras merecem ser mencionadas sobre a era Nikita Kruschev, observada como momento de conjuntura para Deutscher e personagem a quem mais faz referência no conjunto de seus ensaios. Isto não se dá certamente pelas qualidades intelectuais e militantes de Kruschev. Este estava longe de ser o comunista independente e autônomo que voluntariamente partiu para o projeto da desestalinização, conforme certa propaganda feita no ocidente. Na verdade, acabar com o stalinismo foi algo feito a  contra-gosto por Kruschev e seus companheiros, já que todos eles, até por estarem nos cargos em que estavam, estiveram durante todos os anos stalinistas servindo Stálin subservientemente.

Stálin foi particularmente feroz com os seus adversários ou mesmo com lideranças que despertavam a desconfiança do georgiano. Os anos de 1936-38 foram os mais expressivos quanto aos expurgos, sendo certo que Stálin tinha como meta (e o alcançou) fazer do partido um monólito, sob sua direção suprema. Para isso, o marxismo transformou-se em dogma, qualquer oposição de pensamento a linha oficial era caçada e foi feito o culto ao líder. A desestalinização foi um fenômeno feito de cima para baixo antes que pudesse ser feito de baixo para cima, e certamente as movimentações na Hungria viriam a sinalizar o potencial explosivo que estava por baixo do fim do stalinismo.

Há um ensaio específico destinado a retratar a figura de Kruschev. Era um homem de origem muito simples e que certamente não perdera em seus modos e trejeitos os aspectos de um camponês típico. Não tinha maiores qualidades intelectuais e o seu discurso do XX Congresso que o colocou num lugar de destaque pode enganosamente engrandecer o seu significado. É preciso enfatizar, diz Deutscher, que a desestalinização é feita de forma, como diríamos,  “lenta, gradual e segura”, especialmente por ser levada a cabo por ex-stalinistas que certamente tinham também responsabilidades pelos crimes de Stálin. Especialmente por isso, seria necessário dirigir o processo sob sua direção. Entretanto, dizer que o movimento dos dirigentes era expediente oportunista é negligenciar justamente a importância histórica e o impacto da desestalinização.

Para concluir, destacamos a quarta parte do livro, “Ensaios Históricos e Literários”, correspondente a alguns textos de crítica de arte feitos pelo historiador. A leitura destes ensaios, bem como de todo o livro, aliás, revelam um historiador com um vasto repertório cultural e de informações, principalmente sobre a história, sociedade e cultura da Rússia. Os dados nos são oferecidas dentro de quadros de interpretação que têm como ponto de apoio o marxismo, ainda que os textos deste livro em particular, por se tratar de análises de conjuntura, ter maior relevo o tom jornalístico, com mais exposição e menos teorização dos fatos. Mas é certo que Deutscher teve responsabilidades como intelectual e as assume ainda mais quando reivindica em claras letras o marxismo, restando saber em que medida eventuais preferências políticas do autor, por exemplo, não subestime a importância de um Stálin e não sobretime a importância de um Trótsky.

 

terça-feira, 22 de outubro de 2013

“Coronelismo, enxada e voto” – Victor Nunes Leal


Resenha livro #79 “Coronelismo, enxada e voto” – Victor Nunes Leal - Ed. Alfa-Ômega
 
 

Publicado em 1949, este ensaio do jurista, jornalista e cientista político galgou reconhecimento acadêmico e de público já em seu tempo. O general comunista Nelson Werneck Sodré listou em seu “O que se deve ler para conhecer o Brasil” o ensaio deste pensador mineiro. Nunes Leal formou-se em Direito pela Faculdade Nacional de Direito – atualmente pertencente à UFRJ. Também ocupou importantes cargos de poder: foi ministro do Supremo Tribunal Federal entre 1960-1969; Consultor Geral da República (1960); e Chefe da Casa Civil da Presidência da República entre 1956 -1959.

O tema deste trabalho de Nunes Leal é o arranjo político-institucional denominado coronelismo e que é específico do Brasil. Certamente, tal arranjo é bastante particular dentro da evolução histórica brasileira. Aspectos do coronelismo podem ser visto desde os tempos coloniais, ainda que o apogeu do sistema seja encontrado na República Velha. A intenção do jurista, expressa na conclusão do livro, não é a de oferecer um prognóstico ou soluções para as distorções do regime representativo e do municipalismo dentro dos quadros do coronelismo. A intenção do autor é antes a de se fazer um diagnóstico, localizar na história e dentro das relações sociais e econômicas os elementos que engendraram o coronelismo no Brasil.

Nunes Leal define o coronelismo como o “resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura social inadequada”. Como ponto de partida, há de se destacar a base sócio- econômica do coronelismo. Mesmo à altura da redação do ensaio, a população brasileira de então era predominantemente rural. O poder político se apoia sobre o latifúndio, o trabalho escravo e a monocultura exportadora. Com a independência Brasileira (1822) e nossa primeira constituição de 1824, desenvolvem-se diversos arranjos institucionais que por um lado expressavam a exigência da manutenção e coesão nacional e por outro também expressavam pressões federalistas no sentido de garantia da autonomia dos estados – são estes que, ao longo do séc. XIX, nomeiam os prefeitos e por intermédio das constituições estaduais, distribuem as competências administrativas e tributárias dos municípios.

“A estrutura social inadequada” refere-se à situação do campo: o poder dos senhores de terra era bastante expressivos na medida em que, desde a colônia, era atribuído ao poder local as funções administrativas, policiais, jurisdicionais (havendo juízes de paz e posteriormente juízes de fora) e, com particular importância, a função eleitoral. O Coronel mantém como fonte de poder frente às autoridades estaduais e federais a sua base eleitoral – em geral, votantes e eleitores que estavam subordinados aos ditames do coronel cotidianamente. Ademais, há de se constatar que os custos referentes ao pleito eleitoral, no caso do transporte dos votantes até o local de votação, além do custeio de outras barganhas, ficava a cargo do coronel, que contava assim com uma vitória certa. Se a República Velha significou o apogeu do sistema federalista, isto se dá especialmente pelo advento da abolição da escravatura, implicando, diante deste novo contingente de trabalhadores rurais livres, ainda maior dependência política do coronel para trabalhar, além de solucionar desavenças, arranjar casamentos, etc.

Podemos destacar três aspectos do problema do coronelismo que são especificamente aprofundados por Vitor Nunes leal.

O primeiro problema é a questão dos municípios dentro da evolução institucional do Brasil, da constituição imperial de 1824, às constituições de 1934, 1937 e 1946, além de outras leis ordinárias citadas. Numa perspectiva de média-longa duração, é possível dizer que a evolução histórica dos municípios foi marcada pela sua gradual perda de autonomia. Na colônia, há o esforço da metrópole ocupar os vastos espaços geográficos do Brasil, concedendo grande margem de jurisdição aos poderes locais. Os mesmos não só poderiam, como deveriam articular seus exércitos de defesa, seus poderes jurisdicionais e suas atribuições administrativas. Esta autonomia local certamente fortalecia bastante o poder dos donos de terra e criaria as bases para a relação de dependência social que seguiria adiante com o desenvolvimento do coronelismo.

Entretanto, esta autonomia vai gradualmente sendo tirada dos municípios, em primeiro lugar em detrimento do fortalecimento das províncias e em segundo lugar, da união. Originalmente, os estados nomeiam os prefeitos e, na república, suas assembleias legislativas deliberam as funções administrativas e tributárias do município, conforme a constituição. Certamente, os chefes estaduais dependiam do apoio dos chefes locais, dos coronéis, já que estes últimos possuíam a base eleitoral necessária para as eleições em nível estadual. Havia sempre no coronelismo, assim, uma tendência governista muito forte. Os governos procuravam não se indispor com os chefes municipais em função do papel desempenhado pelos coronéis nas eleições. E os coronéis tendiam a serem governistas pois, diante do quadro institucional, dependiam dos governadores para o repasse de verbas, para nomeação de parentes e demais favores.

O segundo problema que acentuava ainda mais o governismo dos coronéis era a questão tributária. Nunes Leal detecta uma constante distribuição das rendas tributárias, privilegiando em primeiro lugar a União, depois os Estados e por último os municípios. Em especial as comunas mais distantes da capital mantinham um quadro decadente de recursos, muitas vezes mal sendo suficientes para o pagamento das verbas da administração. Para construir uma ponte ou um hospital, havia para os chefes municipais um longo caminho de trabalho político junto ao âmbito estadual: certamente, os poucos chefes de municípios que estavam na oposição do governo estadual sofriam ainda mais com a falta de ajuda, o que também explica a tendência governista do coronelismo.    

O terceiro problema envolve a distribuição dos trabalhos administrativos de municípios, estados e união. Houve ao longo do séc. XIX interessantes debates na câmara dos deputados acerca das atribuições administrativas, bem como do melhor arranjo institucional para atender as especificidades da realidade sócio-econômica brasileira. Dentre as polêmicas, havia por exemplo, a eletividade da administração municipal, alguns defendendo a nomeação pelos chefes de províncias, outros defendendo o pleito municipal. Importa constar que as diferentes opiniões aqui não resultavam em óbice para o grande problema dos processos eleitorais, em especial da república velha, qual seja, a corrupção. Nos mais distantes rincões do país, inicialmente as eleições eram fiscalizadas por juntas eleitorais locais, o que resultava nas maiores distorções: defuntos votavam, loucos e doentes internados também, sempre no candidato do poder local. O voto só formalmente era secreto, sendo possível aferir os votos dos eleitores e impulsionando a compra de votos. Foi apenas nos anos de Getúlio Vargas com a criação da Justiça Eleitoral que tal situação foi atenuada.

De maneira geral, pode-se dizer que o coronelismo é um quadrante necessário, particular e específico da realidade sócio- econômica brasileira. Várias tentativas de soluções institucionais para distorções do sistema foram tentadas, sem êxito, predominando no Brasil da Velha e Nova República a política apoiada no poder dos senhores de terra, voltada à troca de favores e sem vínculos ideológicos para além das aparências – os interesses e diferenças de “liberais” e “conservadores” no plano municipal nada tinha de político-ideológico, mas seguia os ditames das forças políticas (e familiares) locais.

Entretanto, Nunes Leal sinaliza alguns processos que estariam (e de fato estiveram) enfraquecendo o coronelismo, como o desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação (com ênfase para o rádio) e melhores condições de acesso à informação, além da urbanização/industrialização conjugada com a crise do modelo agroexportador (crise do café a partir de 1929). Entretanto, ainda hoje (2013), nos rincões do país ainda é possível encontrar traços do coronelismo no Brasil. Afinal, como alerta o autor, muitas vezes, viajar para o interior do país significa viajar ao passado.

“Não podemos negar que o “coronelismo” corresponde a uma quadra da evolução política do nosso povo, que deixa muito a desejar. Tivéssemos maior dose de espírito público e as coisas certamente se passariam de outra forma. Por isso, todas as medidas de moralização da vida pública nacional são indiscutivelmente úteis e merecem aplausos de quantos anseiam pela elevação do nível político do Brasil. Mas não tenhamos demasiadas ilusões. A pobreza do povo, especialmente da população rural, e, em consequência, o seu atraso cívico e intelectual constituirão sério obstáculo às intenções mais nobres”.     

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

“A Esquerda e o Golpe de 64” – Dênis de Moraes


Resenha Livro #78 “A Esquerda e o Golpe de 64” – Dênis de Moraes – Ed. Expressão Popular 2011
 
 

 

“O perigo que Jango representava para a direita não era ele, pessoalmente, e sim a impossibilidade de controlar aquele processo” Theotônio dos Santos

 

Certamente, após a leitura do rico panorama da conjuntura política do pré-64, tendo como foco o desempenho das diversas forças de esquerda daqueles anos, há de se constatar que veio em bom momento a re-edição desta importante pesquisa histórica, originalmente publicado nos anos 80 e republicado agora já em sua 3ª edição pela Expressão Popular (2011).

Como foi possível observar com o levante da juventude e as grandes mobilizações que levaram às ruas cerca de 2 milhões de pessoas no Brasil em Junho de 2013, muito do que foi construído e consolidado na Ditadura Militar continua em plena operação. Com as lutas vieram a repressão e reviveu-se o terror de um aparato repressivo cujas bases institucionais remontam à ditadura militar. Na USP, alunos que ocuparam a reitoria em 2011 foram “eliminados” da universidade com base no regimento interno da universidade feito em 1973 e que prevê o cerceamento das atividades políticas e do pensamento. A brutal repressão ao movimento passa livre em Junho de 2013 culminou não só no levante de significativas parcelas da juventude em todo país. Expôs claramente o papel da Polícia Militar (entulho da época da Ditadura) como instrumento de repressão direta por meio da violência, prisões arbitrárias e forjadas.

Assassinatos e torturas são também produto de certo esquecimento de nosso passado autoritário. Naturalizou-se muitos assassinatos até o desaparecimento de Amarildo e a posterior descoberta que o mesmo havia sido torturado e morto. Ou como um último retrato da violência do poder econômico sobre o direito de resistência dos trabalhadores e do povo, a brutal desocupação do Pinheirinho em São José dos Campos, repressão que não se mostrou sequer intimidada com as câmaras que repercutiram posteriormente na internet dirigente do movimento social e um morador do bairro sendo espancados até sangrar antes de levados à prisão, para além de denúncias de tortura e estupro cometidos por policiais da ROTA.

O fato é que o tema do livro de Dênis de Morais permanece bastante pertinente nos dias de hoje. Todas as violências perpetradas pela polícia contra os movimentos sociais nos últimos anos encontra seu amparo na história, na conformação e estruturação do poderio militar no poder. E este só foi possível com a consumação do golpe de estado de 1964.

Este livro propõe formular importantes perguntas sobre o nosso passado. Por que a esquerda foi derrotada com o Golpe de 1964? Quem foram responsáveis pela derrota? Quais foram os eventos que levaram ao desdobramento fatídico de 1º de Abril de 1964? Como a esquerda estava organizada? Qual era a sua base social e parlamentar? Como soube equacionar a co-relação de forças políticas e militares naqueles anos de forte polarização e agitação política (1963-64)? Que tipo de iniciativas poderiam ter sido tomadas para conter os golpistas?

Para responder às questões o livro serviu-se de um vasto trabalho de pesquisa de livros, jornais e periódicos da época, além de depoimentos de personagens de destaque durante aqueles anos. Este vasto esforço de sistematização de informações e opiniões políticas são confrontados abertamente na pesquisa, quando podemos perceber balanços muito distintos dos significados do Golpe, de Brizola (ex-governador do RS e RJ) a Luiz Carlos Prestes (ex-senador e dirigente do PCB) , de Julião Tavares (dirigente das Ligas Camponesas) a Miguel Arraes (este último, ex-governador de Pernambuco, que, infelizmente, não atendeu às solicitações de entrevista do historiador).

Há de se destacar em primeiro lugar que aqueles anos do pré-64 não foram marcados exclusivamente pela crise política, mas também por graves problemas na economia. Basta relatar que em 1963 o índice de custo de vida (inflação) atingia 81% e o déficit orçamentário correspondente a mais de um terço dos gastos totais, contabilizando um crescimento de 1,5%. Outro grande problema então era o problema da divida externa que então estava na escala de 3,8 bilhões de dólares. Há de se constatar que a demissão do ministro da fazenda Carvalho Pinto foi um dos elementos de desestabilização e perda de apoio parlamentar de João Goulart. Isso porque Carvalho Pinto era político da classe dominante paulista, um homem de confiança da elite – poderíamos comparar com um “Henrique Meirelles” do governo Lula, com a ressalva de que este último ocupou não a chefia da pasta da fazenda, mas do Banco Central.

O fato é que a saída de Carvalho Pinto abriu uma disputa por um ministério estratégico. Afinal, por trás das reformas de base haveria de ter um plano econômico que viabilizasse a reforma agrária, taxasse os lucros que saíssem do país (algo que Jango efetivamente alcançou por meio de projeto de lei) e enfrentasse o problema da dívida externa e da tutela do FMI. Ninguém menos do que Brizola passou a postular o cargo, um político com alguma expressão eleitoral e popular e que era e foi até a morte odiado pela classe dominante brasileira.

Certamente Brizola tinha uma política menos conciliatória do que a de João Goulart, tendo importante papel na garantia da posse do presidente em 1961, quando houve já uma tentativa de golpe buscando evitar que o vice assumisse após a renúncia de Jânio Quadros. Após o triunfo da revolução cubana, Brizola tinha expectativa de que o Brasil poderia trilhar caminho semelhante. Quanto ao cargo da fazenda, no final, prevaleceu o temperamento moderador de Goulart e assumiu a pasta da fazenda um outro político de menor importância. Entretanto, Brizola de um lado e Miguel Arraes de outra se lançariam posteriormente numa disputa interna pela sucessão nas eleições presidenciais que ocorreriam em 1965.  

Mas como dizíamos, havia nos anos anteriores ao golpe uma crise econômica e uma crise e polarização políticas. Estas estavam relacionadas fundamentalmente às tensões da Guerra Fria, que opunham dois polos antagônicos no plano nacional. De um lado, nacionalistas, reformistas, brizolistas e comunistas dentro de um Bloco Nacional-Popular dirigido por Jango e contando com importante participação dos sindicalistas da CGT, do incipiente mas combativo movimento estudantil organizado na UNE e no CPC (Centro Popular de Cultura), do ISEB, instituto de estudos da realidade brasileira então chefiado pelo general comunista Nelson Werneck Sodré, os camponeses ligados às Ligas, os “clube dos onzes” brizolistas e, no plano partidário, o PTB de Jango, o pequeno Partido Socialista, o PCB (soviético), o PCdoB (“racha” do PCB, mais esquerdista e influenciado pelo maoismo), a Ação Popular (derivada da antiga e também massiva Juventude Universitária Católica), e, mais à esquerda, o Polop e o Por (trotskysta); do outro lado da trincheira havia os golpistas, militares e civis.

É interessante notar aqui que a própria esquerda cometia erros na própria delimitação de seu adversário. Particularmente os comunistas, presos a uma estratégia etapista e com uma análise errada acerca do papel da burguesia nacional, entendiam que a reação fosse obra do “latifúndio feudal” e velhas oligarquias políticas, enquanto a burguesia nacional só poderia pender para o projeto reformista/revolucionário da frente popular. O fato é que o golpe contava com forte apoio político e militar dos estados unidos e, ademais, das elites econômicas mais modernas, incluindo o empresariado da imprensa (Roberto Marinho, Assis Chauteaubriand e Samuel Weiner). Havia o partido direitista da UDN (do ex-governador fluminense Carlos Lacerda) e o Ipes, instituto voltado à difusão das bases teóricas/políticas dos golpistas. Ou seja, foi um golpe não só militar, mas civil, apoiado pela elite do empresariado brasileiro que, contando com o apoio praticamente unânime da imprensa, soube conquistar as classes médias e as forças armadas com seus discursos de “terror”, falando do perigo comunista e ateu, da suposta “república sindicalista” de Jango. Combatendo nas ruas, inclusive, a partir de uma massiva marcha pela família em São Paulo, agregando carolas, padres e uniões cívicas de mulheres, unidos numa espécie de reação “patriótica” contra o avanço das esquerdas, em defesa da família e da religião.

O fato é que no decorrer dos anos de 1963-64, o governo João Goulart foi perdendo aquilo que poderíamos chamar de “opinião pública”, com uma importante inflexão dos setores médios dos centros industriais contra Jango, além da divisão e desarticulação do bloco popular.

Várias teorizações são feitas ao longo do livro, em especial nos depoimentos pessoais, das origens da derrota das esquerdas em 1964. Em primeiro lugar, uma opinião bastante reiterada pelos depoentes era a falta de um trabalho político mais intenso junto às forças armadas. O que havia era um falso sentimento de que, no caso de algum movimento golpista, a maior parte das forças armadas ficaria do lado dos legalistas. Certamente, João Goulart cometeu erros políticos importantes. Era assessorado por Assis Brasil, chefe da Casa Militar que não tinha a autoridade e a firmeza de um Marechal Lott, capaz de detectar a tempo as movimentações golpistas e agir com firmeza.

Ademais, praticamente todos os relatos são unânimes no sentido de apontar não só a franca participação dos EUA no golpe, mas o fato deles mesmos (a esquerda) não terem àquela noção real do tamanho do aparto militar e de inteligência montado pelo imperialismo para derrotar Jango, suas Reformas de Base e garantir os interesses dos monopólios e do empresariado nacional e internacional. A revolução cubana de 1959 e sua adesão ao bloco soviético em 1961 ainda eram eventos muito recentes ao ponto de causar enormes preocupações no sentido de que o coração da América Latina, o seu maior e mais central país aderisse ao bloco soviético.

Certamente, o reformismo de João Goulart não tinha como horizonte estratégico (ao menos na sua intencionalidade política) o marxismo-leninismo. Jango era um político progressista e nacionalista, mas com tendências moderadoras, como ficava sinalizado nos seus vai e vens políticos. Ele próprio era um latifundiário do Rio Grande do Sul e seu projeto de reforma agrária era bastante criticado pelos movimentos camponeses por sua timidez. Na verdade, o que a classe dominante mais temia era que as reformas e a agitação popular pudessem fugir de seu controle viabilizando uma ruptura revolucionária – esta era, aliás, a expectativa dos setores mais esquerdistas, como Polop.

Em síntese, a suposição de que a direita não constitua um efetivo perigo para a legalidade e as instituições foi o fator central para a vitória dos golpistas. Ao não perceber o perigo, deixava-se o campo popular ser levado pelas bravatas de Brizola ou movimentos potencialmente explosivos, como a rebelião dos marinheiros no RJ e de sargentos em Brasília, uma quebra da hierarquia militar que, como dogma que é, isolaria cada vez mais o presidente das forças armadas.

Faltaram certamente algumas perguntas que não foram formuladas então e só puderam ser pensadas à luz dos acontecimentos históricos subsequentes:

“E se por acaso nos enganássemos em nossas avaliações superotimistas, distanciadas do quadro real, em que as forças de esquerda se encontravam intrinsecamente divididas ou mergulhadas em visões de uma revolução armada tão improvável? E se nos enganássemos quando sonhávamos em marchar no dia D de braços dados com a burguesia nacional?

E se não poupássemos munição na luta anti-imperialista para enfrentar o arsenal do Ipes, dos militares não legalistas e do embaixador Gordon? E se nos enganássemos perdendo fôlego numa sangria verbal que nos empurrava para longe de um projeto estratégico de transformações sociais?

(...)

Se nos enganássemos, pelo menos não cairíamos sozinhos.

Porque até o embaixado da URRS no Brasil, André Fomin – segundo informe secreto enviado pela embaixada americana ao Departamento de Estado em 25 de setembro de 1863 -, supunha que “os direitistas não constituíam perigo para Goulart”.

O Diplomata soviético, tempos depois, foi transferido para o Paquistão Oriental, atual Bangladesh”.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

“As Ideias Políticas No Brasil” – Vários Autores

Resenha Livro #77 “As Ideias Políticas no Brasil – Volume I” – Vários Autores – Editora Convívio.
 

Resenha Livro # “As Ideias Políticas no Brasil – Volume I” – Vários Autores – Editora Convívio

Este pequeno livro publicado pela Editora Convívio reúne oito ensaios referentes à história das ideias políticas do Brasil a partir do séc. XIX quando se pode efetivamente pensar no desenvolvimento de ideias políticas de uma nação ao menos formalmente independente (1822).

Como não poderia deixar de ser, o surgimento das ideias políticas brasileiras tem como ponto de partida Portugal e o movimento intelectual europeu do séc. XIX. Pois era de lá que saíam os bacharéis que dirigiriam o novo estado independente. Tratava-se de uma sociedade escravocrata, dividida em províncias distantes entre si e sem os atuais recursos de comunicação e transporte. A elite política forjada para comandar o novo estado brasileiro saiu basicamente dos bancos universitários de Coimbra, e mesmo as fundações das novas escolas de Direito em Olinda e São Paulo (1827) não engendrariam uma nova escola de pensamento, sendo, muito ao contrário, estabelecimentos de ensino bastante influenciados pelo modelo de ensino de Coimbra.

Se fosse para especificar um marco originário do desenvolvimento das ideias políticas no Brasil, o historiador das ideias partiria do momento de reformas e modernizações promovidas pelo Império Português sob D. José e seu sinistro e poderoso ministro de Estado, Marquês de Pombal. Trata-se aqui da introdução inicial das ideias do liberalismo decorrentes do triunfo da revolução política francesa de 1789, esta por sua vez, precedida pelo pensamento liberal dos iluministas. Enquanto a Europa vivenciava a emergência de movimentos liberais e constitucionalistas (séc. XIX) e que, de forma geral, viriam a contestar de uma forma ou de outra o esquema do Antigo Regime, as elites políticas brasileiras, educadas nesse cenário de transição e embates políticos, assimilaria o liberalismo, sob diversas matrizes. Poderíamos dizê-lo melhor, sob diversas orientações políticas: do liberalismo realista e influenciado pela matriz federalista norte-americana de Rui Barbosa ao radicalismo social de Frei Caneca certamente havia uma longa distância, sendo certo, porém, que ambos remontam a sua maneira a esta reforma liberal no cenário das ideias em Portugal e no Brasil.

Marquês de Pombal tinha dois adversários políticos principais: os jesuítas que detinham poderes territoriais na ex-colônia, além de comandarem os estabelecimento de ensino; e os ingleses, diante da franca dependência econômica portuguesa à potência britânica. Interessa-nos em particular sua luta contra os jesuítas: nesta perspectiva promoveu uma grande reforma de ensino em Portugal e nos currículos da Universidade de Coimbra, o que certamente viria a influenciar a parcela da elite política brasileira que lá estudara. Para Pombal tornava-se necessária a formação de novas elites, libertas dos freios da inquisição e que trouxessem a Portugal as vantagens científicas e técnicas do Iluminismo. Seu projeto de modernizar e racionalizar a administração pública perpassaria o pensamento e obra de importantes estadistas brasileiros décadas depois como Visconde de Uruguai e o baiano Rui Barbosa.

Neste manual do itinerário das ideias políticas no Brasil, contemplou-se a diversidade dos liberalismos, da sua recepção originária no Brasil, passando pela política pombalina e servindo-se do estudo de alguns expoentes do iluminismo brasileiro do séc. XIX: Silvestre Pinheiro Ferreira, Cipriano Barata, Rui Barbosa e Visconde de Uruguai.

Cada autor representa outrossim momentos da própria evolução histórica do liberalismo no Brasil, destacando-se cada qual algumas nuanças específicas. Dentre as temáticas em pauta, o que ganha relevo é as distintas propostas de adaptações políticas, jurídicas e institucionais dos cânones do liberalismo para a realidade brasileira: os problemas principais de nossa elite era a questão da escravidão (aboli-la ou não, e como?), a questão do federalismo (como conciliar os interesses das províncias e a unidade territorial do Brasil), a questão da política externa (especialmente quando da Guerra do Paraguai), e o embate entre monarquia e república. Ainda que identificados com a república, alguns dos ilustres liberais (como o próprio Rui Barbosa, ainda que, posteriormente, aderisse à república) não viam compatibilidade entre um modelo constitucional ora baseado na “soberania”, ora na “proteção dos direitos naturais”, e o modelo monárquico. Será só mais adiante, no positivismo do final do séc. XIX, por exemplo, em Benjamin Constant, que a república será a resposta necessária para garantir a unidade nacional por um lado e o atendimento dos interesses particulares das províncias por outro.

A questão da História das Ideias

Certamente, a opção teórico-metodológica de se apresentar as ideias políticas da história pela produção e intervenção prática dos principais expoentes políticos (parlamentares que eram ao mesmo tempo os bacharéis e doutrinadores políticos, ou utilizando um termo anacrônico, a intelligentsia) é o ponto de partida mais evidente para empreender tal pesquisa. Entretanto, foi possível identificar dentre os ensaios um certo predomínio webberiano de análise, por exemplo quando privilegia as formas das instituições políticas e suas correspondentes origens teóricas sem o confronto necessário com a economia política e a sociedade brasileiras do séc. XIX: certamente as ideias políticas estavam a serviço da garantia da perpetuação do modelo latifundiário e concentrador de renda, com diferentes linhas políticas para se estabelecer os reajustes sociais com o mínimo de tensões e conflitos sociais. A própria opção teórica das mini-biografias pode estabelecer o panorama histórico a partir de determinados personagens históricos de forma ilustrativa, mas encontra limites importantes, principalmente quando provavelmente superestima o papel dos indivíduos na história e negligencia os fatores endógenos na produção das ideias (a luta de classes, o sistema de distribuição de riqueza, o modo de produção escravista.).


Conclusão

De todo modo, à guisa de conclusão, reportemo-nos rapidamente aos dados essenciais de dois ícones do liberalismo, abordados no livro, no intuito de introduzir e familiarizar melhor nosso leitor com expoentes das ideias políticas do Brasil do séc. XIX.  O estudo complementar dos demais personagens fica a cargo do leitor.

 
Silvestre Pinto ocupou cargo ministerial, além de ter vivido muitos anos na Europa. Era um jurista liberal e moderado politicamente, defendendo uma conciliação ora entre Portugal e Brasil, e quando impossível, entre D. João VI e as elites políticas brasileiras. Em termos práticos, seu liberalismo levava-o a defesa de uma monarquia constitucional, cujo “exercício da soberania, consistindo no exercício do poder legislativo, não pode residir separadamente em nenhuma das partes integrantes do governo, mas sim na reunião do monarca e deputados escolhidos pelo povo”. (Palavras do próprio Silvestre Pinto)

Cipriano Barata advém de outra espécie de liberalismo, muito distinta do perfil conciliador das elites políticas brasileiras, mais radical e identificado com a tradição iluminista francesa com sua revolução. Mesmo a luta armada nesta matriz de pensamento pode ser reivindicada, em contraponto aos liberais mais moderadores, com Rui Barbosa ou mesmo Silvestre Pinto. Outrossim, sua linha política, segundo Paulo Pereira de Castro, “toca nos ressentimentos de classe e acena com promessas de uma nova ordem social”. É precursora nesse sentido daquele incipiente socialismo que surgiria muito residualmente no Brasil a partir de fins do séc. XIX.   

    
 



    

sábado, 12 de outubro de 2013

“A Era dos Extremos: O Breve Século XX 1914-1991” – Eric Hobsbawm

Resenha livro #76 “A Era dos Extremos: O breve século XX 1914-1991” – Ed. Companhia das Letras – 2ª Edição.



Eric J. Hobsbawm é provavelmente o mais conhecido historiador da história moderna e contemporânea e certamente é o mais lido historiador marxista da contemporaneidade. A sua morte em outubro de 2012 implicou em diversos artigos não só no âmbito acadêmico, mas nas seções de cultura e política de jornais, revistas e televisão em todo mundo, incluindo meios de comunicação insuspeitos de qualquer simpatia pelo marxismo e seus pressupostos teórico-metodológicos.

O fato é que Hobsbawm é notadamente um historiador politicamente progressista, que se apropria do materialismo histórico ao buscar (e não negar) um sentido da história, conforme o desenvolvimento das forças materiais e das relações de produção engendradas por cada modo particular de produção historicamente determinado. Entretanto, não se deduz-se daqui que as obras dos historiadores marxistas estarão eternamente eivadas de critérios e pontos de vistas voltados à economia política, negligenciando a cultura, as artes, a ciência e a política oficial.

Pelo contrário.

O que torna particularmente interessante “A Era dos Extremos” é o fato de que o historiador efetivamente vivenciou boa parte dos eventos históricos narrados. Certamente, um historiador deve buscar em suas análises a impessoalidade, sem com isso criar ilusões acerca de uma suposta “neutralidade” ou “imparcialidade absoluta”. Todavia, o fato do historiador ter vivenciado e se apropriado de eventos pessoais que remetem à sua memória particular certamente enriquece o vasto panorama histórico ilustrado em “A era dos Extremos”, antes de turvar a vista do leitor com preconceitos do autor.

Ficamos sabendo, por exemplo, pela experiência pessoal do autor quais eram as expectativas, as origens sociais e os horizontes políticos daquela jovem geração de universitários que abalou o mundo, de Paris à Cidade do Mexico, no ano de 1968, movimento do qual Hobsbawm se viu também envolvido. O que queremos pontuar aqui é que as prerrogativas teórico-metodológicas do marxismo envolvem certamente a consecução de uma análise o mais objetiva e crítica possível da realidade. Mas, como demonstra Hobsbawm com particular sensibilidade, é perfeitamente possível manter este horizonte teleológico, que busca interpretar a história dotando seus movimentos de sentido e, ainda assim, contemplá-la (a história) com a vivência pessoal do autor. Primeiro por que a imagem de uma neutralidade pura remeteria à divertida paródia relatada por Michel Löwy e seu Barão de Münchhausen, que seria supostamente capaz de tirar a si mesmo do poço de lama puxando seus cabelos.

Outrossim, a memória pessoal do historiador enriquece a narrativa histórica na medida em que ilustra a percepção das pessoas envolvidas em dada circunstância histórica, àquele momento da história: da euforia engendrada pelo estado de bem estar durante a Era de Ouro  do pós guerra ao mundo marcado pelas incertezas políticas e pelo enfraquecimento dos estados nacionais na Era de Incertezas/Desmoronamentos correspondente às últimas décadas do séc. XX.

Eric J. Hobsbawm nasceu em Alexandria (Egito) em 1917, descendendo de família britânica que retornaria à Inglaterra em 1933. Tornou-se militante político e em 1936 filiou-se ao Partido Comunista da Grã Bretanha. Muitos de seus colegas marxistas com quem formou uma verdadeira escola marxista na Inglaterra (Cristopher Hill ou Edward Thompson) deixaram o partido comunista britânico (estalinista) após as denúncias do XX Congresso dos PCUS. Porém, Hobsbawm permaneceu leal ao partido até o fim da União Soviética.

A Era dos Extremos vem a ser o último volume de uma série de livros dedicados à conformação do mundo contemporâneo a partir da Revolução Francesa de 1789. Assim seguiu-se à “Era das Revoluções” (1789-1848) a “Era do Capital” (1848-1875) e a “Era dos Impérios” (1875-1814).

No caso particular do século XX, um de seus traços essenciais está contido no próprio título da obra. Certamente pode-se falar de um século “breve” em contrapartida aos longos anos de estagnação da idade média, por ex. “Era dos Extremos” são cerca de 500 folhas de uma poderosa síntese de um mundo em rápido movimento, da Era da catástrofe (passando pela Guerra Imperialista, pela Revolução Russa e pela II Guerra Mundial), passando pela Era de Ouro, correspondente ao início e declínio da Guerra Fria, com um espantoso desenvolvimento da ciência, da pesquisa tecnológica, dos meios de comunicação e transporte e de distintos ramos da indústria, para além da conformação dos estados sociais e um ciclo de crescimento que também perpassa em determinados setores o mundo soviético. E finalmente o desmoronamento, tendo como ponto de partida a crise de petróleo da OPEP em 1973, o desmoronamento do mundo de da guerra fria ( na sua fase de coexistência pacífica) com o desmoronamento da URRS em 1991. 

A impressão que dá ao ler “A Era dos Extremos” é a de estarmos à frente de uma tela de cinema em que, numa impressionante velocidade, os mais diversos fatos vão se intercalando, da revolução russa à propaganda ideológica anti-marxista nos EUA, da descolinização da África às guerrilhas na América Latina, do Arpaitheit na África do Sul aos conflitos étnicos das antigas repúblicas socialistas, do fascismo e do nazismo ao colapso da era Roosveitiana e a nova hegemonia neoliberal. A sensação é a de que a história do século XX avançava como numa corrida sucessiva de eventos pouco previsíveis (como o Crash da Bolsa de 1929 ou mesmo o advento da II Guerra Mundial no entreguerras para observadores céticos na Inglaterra e França). O mais impressionante é que, mesmo havendo-se de reconhecer que a direção do movimento histórico do período analisado diz respeito fundamentalmente no desenvolvimento da economia mundial capitalista mais os desdobramentos do mundo soviético, Hobsbawm não ouvida do assim chamado terceiro mundo e apresenta muitas informações econômicas, demográficas, sociais, políticas e etc., não só do centro, mas da periferia do sistema: América Latina, África, Oriente Médio e Sudeste Asiático. Se pudéssemos apenas apontar um debate específico que pareceu faltar neste grandioso projeto de síntese do Breve Séc. XX, diríamos que poderiam haver mais dados sobre o problema Palestino e a criação do Estado de Israel, tema realmente pouco abordado no livro.

À guisa de conclusão, reproduzimos passagem final do trabalho de Hobsbawm em que ele pontua os limites e as possibilidades da pesquisa histórica do breve século XX, bem como a exigência de uma mudança nos rumos do mundo que nasceu do breve século XX.

“Sabemos que, por trás da opaca nuvem de nossa ignorância e da incerteza de resultados detalhados, as forças históricas que moldaram o século continuam a operar. Vivemos num mundo conquistado, desenraizado e transformado pelo titânico processo econômico e tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo, que dominou os dois ou três últimos séculos. Sabemos, ou pelo menos é razoável supor, que ele não pode prosseguir ad infinitum. O futuro não pode ser uma continuação do passado, e há sinais tanto externamente quanto internamente, de que chegamos a um ponto de crise histórica. As forças geradas pela economia tecnocientífica são agora suficientemente grandes para destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações materiais da vida humana. As próprias estruturas da sociedade humana, incluindo mesmo algumas das fundações sociais da economia capitalista, estão na iminência de ser destruídas pela erosão do que herdamos do passado humano. Nosso mundo corre o risco da explosão e implosão. Tem de mudar”.