segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

“Taurus” – Dir. Alexander Sukurov


 
Resenha Filme #3 - “Taurus” – (Dir. Alexander Sukurov)

“Taurus” é o segundo filme de uma trilogia do cineasta russo A. Sukurov acerca de líderes políticos influentes do séc. XX. Não se trata de obras biográficas com um sentido de análise histórica, mas antes peças de arte que narram momentos singulares e específicos da vida daquelas lideranças. Em Taurus, há uma bela e poética descrição dos últimos momentos de vida de V. I. Lênin.

Como se sabe, Lênin morreu em 1924: passara por derrame cerebral estando sua saúde agravada pelo atentado a bala que sofrera alguns anos antes. O tiro de uma contra-revolucionária esserista cravaria uma bala que não seria (não poderia ter sido) retirada do corpo de Lênin. Sua morte em parte também deveu-se aquele atentado. O que é certo é que Lênin passou os últimos instantes de sua vida em uma casa no campo de propriedade do estado; esteve a todo tempo cercado de cuidados por sua companheira de toda vida Krupskaia e por sua irmã, além de membros do partido.

Pode-se dizer de qualquer forma que os dados biográficos são secundários, mas não de todo ausentes no filme. A película contempla a visita de Stálin a Lênin, bem como o posterior comentário deste último acerca do temperamento “duro” daquele que viria a ser seu sucessor – esta informação está no chamado testamento de Lênin. O conflito entre Krupskaia e Stálin, que de fato ocorreu e repercutiu dentro do partido comunista russo, também é ilustrado, de passagem, no filme – ainda que seja válido pontuar que Krupskaia posteriormente aliou-se a Stálin contra Trótsky.

A disputa pela sucessão da direção do partido e dos rumos do estado soviético teria como ponto de partida a morte de Lênin. Assim, naquela chácara, somos levados a observar espiões, militantes do partido apurando o teor das conversas pessoais de Lênin, bisbilhotando portas, lendo correspondências, telefone cortado – tudo sob o argumento de que os temas políticos que preocupavam Lênin até a sua morte poderiam prejudicar o seu restabelecimento.

Entretanto, o filme não se reduz aos elementos históricos e se propõe a fazer uma descrição poética dos últimos momentos de vida de Lênin. A fotografia do filme certamente merece um destaque especial: a priorização das cores cinzas e imagens opacas, combinadas com o frio russo criam um ambiente que se relaciona diretamente com o objeto do filme: os últimos momentos da vida de um grande homem e, principalmente, os dilemas e as dúvidas que se projetavam para o futuro diante da morte de Lênin. Dilemas e dúvidas sombrios como aquela paisagem russa.

Aos poucos, Lênin vai perdendo sua consciência – inicialmente paralisado em um lado do corpo, vai gradualmente definhando até o fim.

Certamente, num debate historiográfico, não há espaço para a história contra factual, qual seja, a história que se remete a condicionante “se”: E se o ponto de vista leninista não tivesse prevalecido nos tratados de paz junto a Alemanha (Brest-Litoviski)? E se o ponto de vista leninista de instauração da disciplina e do sistema Taylor nas fábricas não tivesse prevalecido? E, talvez a pergunta mais instigante, qual teria sido o rumo da URSS se Lênin tivesse vivido 5, 10, 15 anos a mais do que viveu?

Definitivamente, é impossível dar uma resposta segura a qualquer uma destas perguntas. Há muitas variáveis e possibilidades de desdobramentos, mais ou menos imprevisíveis. Mas aqui não se trata de um debate historiográfico, mas de uma resenha com vocação para análises da tradição política do marxismo-leninismo. Assim, talvez seja possível especular.

Quanto a Brest-Litoviski, Lênin foi o primeiro a ter a justa percepção do problema dentro do partido bolchevique. Defendeu a imediata assinatura do tratado: referir-se-ia àquela paz forçada com a Alemanha dos Junkers como uma situação equivalente a de um homem desarmado rendido por outro que o ameaça mirando-lhe o revolver. Nada mais anti-leninista do que não saber recuar na hora certa. O que parece ser plausível é que, se o ponto de vista de Lênin tivesse sido adotado desde o início pelos bolcheviques (contra o posicionamento de León Trótsky e outros), a paz em separado com a Alemanha não teria ocorrido em condições tão catastróficas e humilhantes. Quanto ao sistema de organização do trabalho taylorista, a direção unipessoal das fábricas e a obrigatoriedade do trabalho para todos (a começar pelos ricos), caso o ponto de vista dos “comunistas de esquerda” tivesse prevalecido sobre a justa orientação leninista, o mais plausível seria a não ocorrência da brutal modernização e desenvolvimento das forças produtivas num curto espaço de tempo que assombrou até os mais céticos críticos burgueses. E, mais importante, sem o desenvolvimento da indústria, a Rússia não estaria preparada como esteve para esmagar o nazi-fascismo a partir da batalha de Stalingrado.

Agora a terceira questão parece ser a mais difícil de se especular. Qual teria sido o desdobramento do estado operário soviético e do movimento comunista mundial se Lênin tivesse vivido 5, 10, 15 anos a mais do que viveu?

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

“Como Mudar o Mundo - Marx e o Marxismo” – Eric Hobsbawm

Resenha Livro #94 “Como Mudar o Mundo - Marx e o Marxismo” – Ed. Companhia das Letras



Esta coletânea de ensaios do historiador britânico e marxista Eric Hobsbawm abrange basicamente toda a evolução do pensamento de Marx e dos seus mais distintos seguidores, partindo-se das críticas contemporâneas ao autor e seu colega F. Engels, até as perspectivas oferecidas a esta corente de pensamento a partir da crise capitalista de 2008. São ao todo 16 ensaios e há sequência cronológica na exposição.

Assim, a Parte I aborda a produção intelectual e a atividade política de Marx e Engels, partindo das elaborações teóricas de socialistas anteriores aos fundadores do socialismo científico. O socialismo pré-marxiano, ou utópico, foi não só combatido mas também de uma certa forma agregado às teorias de Marx/Engels. Basta lembrar que algumas ideias que ganhariam contorno decisivo em ambos já eram, todavia, discutidas nos círculos socialistas ou mesmos jacobinos decorrentes da revolução francesa: luta de classes e comunismo não são termos criados por Marx. Os socialistas utópicos, em especial os franceses, eram interlocutores importantes e serviam como fontes.

Ainda na parte 1 há um ensaio destinado a apresentar o livro de Engels – “A Situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, uma obra pioneira tanto em seu objeto de estudo quanto em seu método de análise. Engels escreveu este livro com 26 anos: a eventual pouca experiência de vida tinha como contrapartida a experiência prática de Engels como empresário de uma das filias de empresa de seu pai na Inglaterra. Hobsbawm destaca que Marx serviria se posteriormente dos conhecimentos de Engels com relação à situação dos trabalhadores para as suas obras de crítica ao capital. A chamada acumulação primitiva promovera alterações sociais radicais na Inglaterra, a partir dos “cercamentos”, a expulsão e migração dos camponeses para as cidades. Havia perseguição oficial e leis de combate à “vadiagem”, restando como alternativa aos proletários empregarem-se na nova indústria, em condições de super-exploração. Marx de forma pioneira destacou o chamado exército de reserva, uma quantidade de força de trabalho excedente como um dado essencial do capitalismo – uma pressão no sentido de manter a super-exploração e conter inclusive reivindicações frente ao temor do desemprego. Outros capítulos da parte 1 tratarão da importância do Manifesto Comunista de 1848, a descoberta dos textos inéditos conhecidos como “Grundrisse”, o debate sobre as formações pré-capitalistas, destacando-se os elementos de especificidade histórica do capitalismo bem como discutindo e buscando responder à pergunta: como e porque o feudalismo transformou-se na Europa em capitalismo?

A parte 2 dos ensaios de Hobsbawm refere-se ao marxismo, às distintas correntes políticas que de uma forma ou de outra poderiam ser caracterizadas como “marxistas” e a sua evolução na história, o que, diga-se de passagem, varia muito em função do lugar, havendo, via de regra, tendências distintas nos centros capitalistas mais avançados, nos países do bloco soviético e no chamado “terceiro mundo”.

Há aqui uma diferenciação importante: uma coisa é a corrente marxista e outra é a história do movimento operário. Nem sempre estas duas histórias coincidiam, bastando lembrar-se do caso brasileiro, em que, dos primeiros anos do séc. XX até 1922, os sindicatos eram hegemonizados pelos anarquistas. Pois destacando a diferença entre o marxismo enquanto corrente de pensamento e ação política e o movimento operário, Hobsbawm irá abordar os dois momentos, o da formulação teórica, da disseminação do marxismo nas universidades europeias, da influência da ortodoxia oficial e outros aspectos ligados à tradição teórica do marxismo, e ao mesmo tempo buscando fazer o diálogo entre as distintas fases do pensamento com o contexto sócio-político-econômico. Um momento onde estas duas trajetórias possuem muitas interfaces corresponde ao conhecido “Maio de 1968”. Trata-se de um movimento de contestação às ortodoxias teóricas – acentuadas após as denúncias do stalinismo no XX Congresso do PCU - e se apoia num momento de revisão do marxismo, como Marcuse, um autor que marcaria especificamente aquela geração.

Dentre as distintas frações do marxismo que se desenvolveram formalmente na história, como o leninismo, o stalinismo, o trotskysmo, Hobsbawm dedicará um capítulo a um autor particularmente importante e que ele (Hobsbawm) julga ser leninista: A. Gramsci. Em linhas gerais a importância fundamental de Gramsci reside na teorização política. Ainda que Marx tivesse escrito muito sobre política, não há uma sistematização mais ou menos ordenada em Marx em torno de uma teoria política que responda: o que é o estado? O que é o direito? Qual a relação entre estado e classe (ou sociedade civil e sociedade política)? Qual são os meios de manutenção de poder do estado? Dentro desta teorização, alguns conceitos chave passariam a integrar o linguajar comum das ciências sociais – inclusive em não marxistas – como ideias de hegemonia, intelectual orgânico, guerra de movimentos e guerra de posição.


Quanto a Hobsbawm, seus ensaios são bastante embasados e expressam vasto conhecimento, notório por não se reduzir ao mundo Anglo-Saxão. O Brasil aparece em dois momentos no livro: Carlos Nelson Coutinho é citado no artigo sobre Gramsci e Hobsbawm destaca a emergência do PT nos anos 1980 como exceção à tendência de refluxo do marxismo que marca o período de 1983-2000. A leitura, poderíamos concluir, é de um nível médio ou mesmo difícil para quem não conhece os textos principais de Marx e Engels ou os episódios mais importantes da história do movimento comunista. Para quem está iniciando seus estudos sobre Marx e o marxismo, recomenda-se a leitura desta profunda e vasta obra num momento posterior.        

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

“História Sincera da República” – Leôncio Basbaum


Resenha Livro #93 “História Sincera da República: das origens a 1989” – Leôncio Basbaum  – Edições LB


Tivemos acesso ao primeiro volume da “História Sincera da República”, correspondendo ao período que vai da nossa colonização até a queda do Império e proclamação da República em 1889. O segundo volume abrange todo o período da República Velha (1889-1930) e o último tombo vai da revolução de 1930 ao ano de 1960. O primeiro tombo foi redigido por Basbaum em 1954.

Leôncio Basbaum nasceu no Recife em 1907, formou-se médico e também se dedicou ao estudo da realidade brasileira. Foi membro do Partido Comunista Brasileiro e deve ser reconhecido com um dos precursores intérpretes da história do Brasil desde o ponto de vista marxista.

Segundo o autor, dois são os seus objetivos de estudo no primeiro tombo da “História”: (i) encontrar os fundamentos históricos – econômicos, políticos e sociais – da república brasileira e, com eles, a origem do nosso atraso histórico; (ii) a história da implantação da república partindo-se de suas causas.

Ao adjetivar sua história como “sincera”, o autor revela buscar essencialmente a superação de alguns mitos que vinham sendo mantidos pela historiografia tradicional. Mitos relacionados ao engrandecimento de figuras medíocres da elite política ou esquecimento injusto de movimentos de resistência, a começar pelos quilombos.

Tratava-se assim de uma crítica avançada a seu tempo, feita por um estudioso que se colocava pioneiramente na função de buscar analisar os fundamentos sócio-econômicos que delinearam a evolução histórica brasileira, para além dos assim denominados “grandes eventos”. O fato político correspondente à proclamação da república, por exemplo, não pode, isoladamente, explicar as razões do fim do Império, as transformações necessárias engendradas por mudanças de fundo, relacionadas às relações de produção, que geraram a queda da monarquia. Além das chamadas questões religiosas e militares, certamente foi a questão da emancipação do escravo a questão de fundo da proclamação da república.

O 15 de novembro não contou com participação popular, se é que é possível falar em “povo brasileiro” quando a abolição da escravatura mal completava um ano. O que queremos chamara atenção aqui é que a metodologia materialista-dialética esposada pelo autor criará condições para buscar o sentido dos eventos históricos para além das suas manifestações aparentes, o que vinha sendo a regra dos nossos historiadores que, conforme Basbaum, faziam de sua história oficial nada mais do que a história da nossa classe dominante.

Entretanto, é necessário apontar também algumas limitações neste vasto panorama da história do Brasil. Ao analisar nossa estrutura econômico-social, Basbaum ainda mostra-se preso a certo esquematismo teórico, tão bem criticados por Caio Prado Jr. em seu “Revolução Brasileira”. Este esquematismo se revela mesma na dificuldade de justa caracterização das relações sociais da colônia justamente por estar ainda muito vinculado a um modelo teorizado pelos marxistas para a realidade europeia, distinta do Brasil. Falamos aqui da caracterização das relações de produção no campo como de tipo feudal, ainda que Basbaum reconheça tratar de um feudalismo associado ao capitalismo comercial. De outro modo, os senhores de engenho não deveriam ser equiparados aos senhores feudais europeus, mesmo porque a nossa mão de obra foi durante quase 400 anos de tipo escravocrata.

O que faltou a Basbaum e que seria na verdade remediado com Caio Prado Jr. na obra supracitada e em “Formação do Brasil Contemporâneo” foi justamente captar as especificidades do modelo brasileiro, em todo inadequado ao conceito de feudalismo.

Esta dificuldade em captar a nossa especificidade se revela logo no início do ensaio de Basbaum, quando este se pergunta: o que ocorreu de diferente entre o povoamento e colonização na América do Norte e no Brasil para que a primeira se lançasse a partir do fim da 1ª Guerra Mundial como potência econômica enquanto o Brasil ainda era um país agrário, pouco industrializado e pobre, mesmo em meados do séc. XX. A resposta dada por Basbaum é: a presença nos EUA e ausência no Brasil de um mercado interno. Ainda que Basbaum delineie alguns elementos que implicaram nesta diferenciação, dentre eles se destacando os meios empregados e a forma como se deu a colonização nos dois países, parece-nos que a resposta ainda é insatisfatória. Afinal, dizer que há ou não um mercado interno deve dar lugar aos fatores que engendraram tal situação. E aqui, mais uma vez, vem a tese de Caio Prado Jr. e o seu “sentido da colonização”: no norte, tratava-se predominantemente de um sentido de povoamento, criando maior espaço para a pequena propriedade a partir da qual se cria paulatinamente um mercado interno; no sul, tratava-se predominantemente de um sentido de colonização voltada ao fornecimento de insumos para o mercado europeu, inicialmente o pau-brasil, depois o açúcar, o algodão, o ouro e o café. Tratou-se de uma economia que se apoia no trabalho escravo, na grande propriedade rural, na monocultura e, até pelo menos a vinda da família imperial em 1808, no exclusivismo comercial, todos estes elementos conspirando contra a criação de um mercado interno de consumo e industrialização.

Em que pese alguns esquematismos e algumas considerações de validade discutível (como quando Basbaum alega não terem havido dentre os escritores brasileiros do séc. XIX maiores preocupações com a escravidão, mesmo com Castro Alves e também Machado de Assis) a “História Sincera da República” certamente tem mais elementos favoráveis a sua leitura do que contrários, no sentido de mantê-la esquecida sob as prateleiras das bibliotecas. Trata-se, como falamos, de uma proposta de análise marxista do nosso passado, o que compreende o estudo não apenas dos grandes eventos do calendário nacional, mas os elementos que sustentam e fundam nossa história, as classes sociais e as suas interações, as relações de produção e de propriedade predominantes e o aparato superestrutural (instituições políticas, judiciárias, administrativas, a cultura, as artes, a religião, etc.) que é criado durante os anos que vão do descobrimento à proclamação da república.

Tivemos acesso a uma edição comemorativa do cinquentenário da morte de Quitino Bocayuva de 1962. Não temos notícias de edições mais recentes deste interessantíssimo relato de nossa história social, econômica e política.

domingo, 15 de dezembro de 2013

“A Greve” – Sergei Eisenstein

Resenha Filme #2 – “A Greve” – Sergei Eisenstein (1924)



Como ponto de partida, torna-se necessário situar historicamente “A Greve” sob duas perspectivas: em primeiro lugar no que se refere ao contexto histórico em que esta produção foi realizada e em segundo lugar quanto ao contexto histórico do filme em si, desde que “A Greve” baseia-se em fatos da história Russa, do movimento grevista ocorrido naquele país sob o czarismo em 1914.
Este filme foi filmado em 1924, trata-se do primeiro longa-metragem de Eisenstein, que, então, contava com apenas 26 anos. 1924 é a data da morte de Lênin: a revolução bolchevique de outubro de 1917 e a guerra civil subsequente, que duraria até 1921, certamente eram eventos ainda marcantes naquela conjuntura. Aliás, o cineasta russo comumente convidava operários, homens e mulheres que participaram diretamente da revolução russa a fazer parte do elenco de seus filmes.

Esta produção conta ainda com a participação do Proletakutur, uma organização soviética destinada justamente a promover a educação e a cultura na nova nação que estava sendo construída. A participação daquele órgão sinaliza de qualquer forma certo caráter pedagógico por de trás da produção. Como não podia deixar de ser num contexto de construção do estado operário, há no filme nítida pretensão de não só relatar um episódio da história da Rússia, mas também conscientizar politicamente os telespectadores. Neste enredo, há um corte nítido entre patrões, polícia e setores operários comprados de um lado, e de outro os operários que se levantam em luta. Os primeiros são os vilões do filme e os últimos os seus heróis.
No que se refere à trama, trata-se de uma história comovente de uma greve operária num pequeno distrito russo. Antes da eclosão do movimento, percebe-se que os patrões de então já contavam  com espiões dentro das fábricas, responsáveis por denunciar qualquer atividade política no local de trabalho e, posteriormente, encarregados de entregar os líderes do movimento. A situação de trabalho não era diferente da situação da classe operária da Inglaterra muitos anos antes, de quando sua revolução industrial. Mulheres e crianças somavam-se aos homens no trabalho na fábrica. Os trabalhadores dependem dos patrões para comprar em seus armazéns alimentos e outros produtos básicos.

Os bolcheviques igualmente atuavam clandestinamente fazendo agitação política. Entretanto, o estopim do movimento ocorreria de maneira espontânea. Um aparelho de produção denominado "micrômetro" foi furtado. Um operário é injustamente acusado do delito pelos capatazes e, sem ter meios de defender sua honra, suicida-se dentro da fábrica. Os colegas que já o encontram morto descobrem a história por meio de sua carta de suicídio. E diante de uma revolta já acumulada frente aos capatazes que tratavam brutalmente os operários, decidem parar a produção. Reivindicavam jornada de 8 horas de trabalho; tratamento humano dos capatazes; aumento salarial de 30% e plano de carreira.
Um aspecto muito interessante neste momento é observar como os trabalhadores aparecem no filme como uma espécie de coletividade capaz de adquirir consciência e agir politicamente coordenadamente. Isso se revela, no filme, em momentos em que o impulso do movimento espontâneo não reduz a capacidade daquela coletividade saber identificar em todos os momentos quem são os adversários, o que é uma provocação e como reagir diante da repressão. Ao final, a medida que aquela coletividade é brutalmente reprimida e morta pela polícia, Eisenstein combina poeticamente imagens da policia baleando os operários e imagens de um touro forte e robusto sendo abatido, enquanto resiste até a morte. Naquele momento, a classe operária mostrava a sua força (equivalente a de um touro), mesmo que ao final daquele movimento tivesse sido a derrota.
A história daquela greve, ainda que derrotada, certamente interessava naquele momento de afirmação do estado operário. Ainda longe da etapa do culto à personalidade (algo que certamente não teria sido tolerado por Lênin), a Greve torna-se ainda mais bela na medida em que valoriza menos as lideranças e mais a atuação conjunta dos operários. Fazer com que os trabalhadores e o povo confiassem nas suas próprias forças pode ter sido um dos objetivos de Eisenstein ao filmar esta obra.      

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

“A Revolução Brasileira” – Caio Prado Jr.

Resenha Livro # 92 “A Revolução Brasileira” – Caio Prado Jr. – Editora Brasiliense



Este ensaio do historiador marxista Caio Prado Júnior foi escrito em 1966, cerca de dois anos após, portanto, o golpe militar de abril de 1964. A recente e importante derrota política das esquerdas brasileiras certamente deve ter sido um dos elementos que levou Caio Prado a escrever este ensaio. Trata-se acima de tudo de uma grande polêmica contra a ortodoxia marxista nacional que, servindo-se de forma dogmática do marxismo, levou-nos a erros políticos decisivos, que vão da errada caracterização das classes sociais no campo até as ilusões em torno de uma suposta “burguesia nacional” que estaria em antinomia com o imperialismo.

Foram muitos os erros políticos da esquerda oficial brasileira decorrentes de uma forma inadequada da aplicação do marxismo. Neste sentido, é muito interessante notar como Caio Prado Jr. diferencia-se daquela tradição desde um ponto de vista eminentemente leninista, ainda que Lênin seja muito pouco citado no seu estudo. É certo que um dos traços essenciais do pensamento de Lênin diz respeito à necessidade da “análise concreta da situação concreta”, ou seja, do esforço voltado à análise concreta dos elementos econômicos, sociais e políticos de uma dada realidade para, num momento posterior, extrair dos fatos observados as interpretações, o momento teórico da análise. Ora vai em sentido estritamente oposto a linha ortodoxa combatida por Caio Prado. Esta parte da teoria como elemento apriorístico a partir do qual os fatos históricos devem se enquadrar, necessariamente. Não se parte do concreto ao abstrato, mas das abstrações decorrentes da análises de realidades inteiramente distintas da brasileira, de forma a “forçar a mão” ou a “torturar os fatos” para que eles correspondam aos enunciados marxistas, seja identificando um elemento camponês do tipo russo, praticamente inexistente no Brasil, seja constatando supostos traços “feudais” ou “semi-feudais” na realidade sócio-econômica do campo brasileiro, seja encarando a intervenção do imperialismo de forma equivalente em realidades inteiramente distintas, como a latino-americana em confronto com a asiática.

No que se refere ao problema camponês, Caio Prado, sempre partindo da perspectiva leninista da análise concreta, evidencia como a formação histórica brasileira resultou num campesinato com perspectivas e interesses de classe inteiramente distintos do camponês europeu medieval. No Brasil, primeiro com a escravidão e depois com o trabalho assalariado, o trabalhador rural se via muito mais num liame empregatício do que sob o domínio pessoal dos grandes proprietários de terra. O trabalhador rural brasileiro, ao contrário do camponês europeu, cedia sua força de trabalho a uma empresa dirigida pelos latifundiários enquanto, no esquema europeu, o papel empresarial cai menos na figura do proprietário e mais na própria pessoa do camponês, que explora da forma como lhe interessa a terra, sendo os proprietários antigos nobres que apenas surgem como proprietários e arrendatários da terra. Na Europa, o camponês remete mais à pequeno-burguesia enquanto no Brasil remete mais ao proletariado.  

O que é importante destacar aqui são as graves implicações políticas decorrentes de uma análise errônea da realidade brasileira, quando se busca simplesmente adequá-la a esquemas teóricos prontos derivados de outra realidade nacional. No que se refere ao camponês europeu, a reivindicação mais importante, mais sentida por aquela classe social era a distribuição da terra – a entrega da terra aos camponeses, como foi feito na Rússia pelos revolucionários bolcheviques. Ora, coisa inteiramente distinta é a situação do trabalhador rural brasileiro. Enquanto a esquerda ortodoxa replicava a consigna da “Terra ao Camponês!”, o que Caio Prado evidencia é que as relações de trabalho no campo engendram reivindicações eminentemente salariais e trabalhistas, apresentando aspecto meramente secundário a luta “pela terra”. Este descompasso entre a teoria e a prática, entre a análise concreta da situação concreta e a ação política daí decorrente, esta dissonância contribuiria significativamente para manter a esquerda no isolamento – o que foi de fato evidenciado pela derrota de abril de 1964.

A questão da suposta existência do feudalismo no Brasil também passa a ser bastante reveladora da forma esquemática e dogmática com que a esquerda tradicional analisava o problema do campo no Brasil. Partindo de uma sucessão de modos de produção correspondentes à experiência europeia – qual seja, escravismo, feudalismo e capitalismo – houve aqueles que se esforçaram em encontrar uma evolução histórica idêntica no Brasil.

Segundo Caio Prado não há sob qualquer hipótese qualquer elemento feudal ou semi-feudal na evolução histórica brasileira. Nosso ponto de partida na história refere-se à integração do território brasileiro e sua povoação nos quadrantes do capitalismo em sua fase comercial. Vigorou aqui o sistema da plantation, baseado no latifúndio, na monocultura exportadora e na mão de obra escrava. O que é importante assinalar é que, após o fim da escravidão, certamente resquícios da velha e brutal forma de exploração do trabalho seriam assimilados dentro de uma perspectiva de super-explorar o trabalho e empreender a acumulação capitalista.

Ou seja, onde os marxistas dogmáticos viam resquícios de “feudalismo” que seria incompatíveis com o desenvolvimento do capitalismo, muito pelo contrário, tratar-se-iam de reminiscências de todo modo muito bem adequadas ao capitalismo. Mais uma vez, a errônea análise na teoria significaria erros políticos que contribuiriam para o isolamento da esquerda.

O sistema de parceria e a forma de pagamento in natura dos salários eram identificados como aspectos de um “resquício feudal” que deveria ser eliminado. A esquerda apresentava como bandeira para os trabalhadores no campo o fim do salário in natura e a forma assalariada sendo que os próprios trabalhadores pensavam de outra forma: sentindo-se menos como camponeses num regime “semi-feudal” e mais como trabalhadores rurais que não se prendem à terra e que desejam melhor condição de trabalho e remuneração, a maior parte daqueles trabalhadores na verdade preferia o pagamento do salário in natura, na medida em que a inflação crônica implicava na corrosão salarial.

O fato é que o feudalismo é uma relação social, econômica e política particular da evolução histórica europeia. A ligação do camponês com a terra, lá, possuía caráter milenar, houve a consolidação de uma nobreza proprietária da terra a que pouco se dedicava à atividade empresarial. Coisa inteiramente distinta ocorreu no Brasil. Nas nossas terras, não havia antes dos Portugueses significativas parcelas populacionais sedentárias, que trabalhassem no campo e que tivessem de ser desmobilizadas para a formação do empreendimento colonial. A nossa colonização foi desde sua origem uma empresa capitalista comercial e mercantil, e assim foi povoado nosso território, tendo como base o trabalho escravo africano. Aquilo que a ortodoxia via como “feudalismo”, como os sistemas de parceria, quando muito apresentavam semelhanças com aquele modo de produção em todo secundários, sempre predominando no país o grande empreendimento rural agro-exportador.  

“A Revolução Brasileira” é um interessantíssimo ensaio crítico sobre os limites programáticos das forças de esquerda no Brasil, bem como uma bela contribuição, baseada no método leninista da “análise concreta”, para a interpretação de nossa realidade social, econômica e política.

Há algumas passagens em que Caio Prado refere-se ao nosso “Capitalismo Burocrático” que curiosamente antecipariam mesmo a experiência do Partido dos Trabalhadores no poder: onde falsamente as esquerdas viam uma “burguesia nacional progressista e anti-imperialista”, Caio Prado Jr. revela uma fração importante da nossa burguesia que se apoia na apropriação privada dos recursos públicos, muitas vezes passando-se ainda assim como aliados dos movimentos populares. Se já então a esquerda se via cheia de ilusões em torno de políticos demagogos ligados ao nosso capitalismo burocrático, ainda hoje se pode dizer, frente à terceira gestão consecutiva do PT no poder, governando sempre para os ricos, como aquela ilusão – também decorrente de uma má teorização – tem nos afastado da perspectiva revolucionária.

O fato é que a Revolução Brasileira (cujo programa é inteiramente revisto por Caio Prado Jr.) ainda é uma tarefa que está para ser realizada. Do ponto de vista metodológico, a lição do historiador paulista ainda permanece viva e atual: nunca partir de definições apriorísticas mas antes dos fatos e dados da realidade para deles procurar os rumos possíveis para a Revolução Brasileira.
       

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

“O Pensamento de Lênin” – Luciano Gruppi

Resenha Livro #91 “O Pensamento de Lênin” – Luciano Gruppi – Ed. Graal Biblioteca de Ciências Sociais


 
Sobre o Autor

Luciano Gruppi nasceu em 1920, foi dirigente do Partido Comunista Italiano e autor de alguns livros traduzidos no português e lançados no Brasil. Dentro do partido comunista, atuou na revista “Crítica Marxista” e promoveu estudos sobre Antônio Gramsci e Palmiro Togliatti. Gruppi faleceu em 2009. Este seu “O Pensamento de Lênin” foi traduzido por Carlos Nelson Coutinho.

O Pensamento de Lênin

Como o nome do ensaio sugere, a preocupação de Gruppi não é a de traçar uma biografia de Lênin, de sua intervenção política durante 30 anos de atividade, interrompida pela doença e pela morte em 1924. Na verdade, os dados biográficos de Lênin são secundários e apenas aparecem para delimitar a evolução singular de seu pensamento.

Este aspecto da obra é particularmente  importante por se tratar de uma obra sobre o pensamento de Lênin.

Se há uma característica mais marcante, mais essencial no pensamento de Lênin, esta se revela pelo esforço em fazer uma “análise concreta, da situação concreta”. Nos escritos de Vladimir Ilich há sempre subjacente, de forma mais ou menos explícita, uma orientação política voltada para ação. A preocupação de adequar o marxismos às peculiaridades e especificidades da realidade Russa foi certamente o traço mais elevado do pensamento de Lênin: sem esta capacidade de mediação entre a teoria revolucionária e a ação revolucionária, não só Lênin não teria sido o grande teórico do marxismo na era do imperialismo e da revolução proletária, mas, o mais provável, é que mesmo a revolução russa não tivesse logrado êxito. Não teria sobrevivido a Revolução Russo sem o aporte e a liderança do partido bolchevique, sob a liderança de Lênin, tendo, o mais provável, sucumbido a um dos dois polos antagônicos e constantemente combatidos por Lênin: o polo oportunista, as vacilações, perceptíveis mesmo no interior da direção do partido bolchevique, quando, por ex., Lênin afirma a necessidade imediata da insurreição;  e o polo esquerdista, combatido em diversos escritos, sendo o mais destacado deles, o “Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo” escrito em 1920.

“O Pensamento de Lênin”, segundo as palavras do autor, “pretende ser uma tentativa de esboçar, em seus traços essenciais, o desenvolvimento de seu pensamento (de Lênin), naturalmente em relação com aquelas situações e fatos históricos fora dos quais ele seria incompreensível”.

E será mediante este esforço de confrontar as teses de Lênin com as exigências mais imediatas do movimento revolucionário russo o traço que será olvidado pelo assim denominado “marxismo-leninismo”, qual seja, a interpretação stalinista do legado de Lênin. Gruppi faz a crítica em seu último capítulo ao autor de “Fundamentos do Leninismo”. Stálin, ao contrário de Lênin, busca sempre o esquematismo, as definições concisas, que importam no sentido de tornar didático e acessível um pensamento, comprometendo, contudo, a captação dos fenômenos em sua totalidade – o próprio Lênin se reporta, em seus textos, a este exato problema das simplificações teóricas. O fato é que em Stálin, vai se extraindo ideias distintas de Lênin sem a devida confrontação com aquela evolução política, aqueles fatos a partir dos quais o dirigente bolchevique vinculava sua teoria. Tal expediente implica na dogmatização do leninismo e, em certo sentido, na sua total deformação. É o caso por exemplo da significação que Stálin atribui a Lênin sobre a II Internacional. Gruppi demonstra como a atitude de Lênin muda radicalmente com a capitulação da social democracia alemã (a mais importante e influente no âmbito da II Internacional) ao imperialismo e à guerra mundial. Esta capitulação implica na necessidade de rompimento imediato dos comunistas com os oportunistas social-democratas – tese que, ao estilo leninista “não dogmático”, seria mitigada posteriormente a partir do IV Congresso da III Internacional Comunista com a sua política de frente única, dada uma nova conjuntura e uma nova avaliação da situação fática. Gramsci seria um dos poucos a identificar corretamente o fenômeno, colocando que, enquanto no oriente, predominava a tática da guerra de posição, no ocidente havia de se lançar à “guerra de movimento”. O fato é que Stalin elimina momentos em que Lênin ainda estava sob influência da II Internacional, momentos em que Lênin ainda não identificava Kautsky como um renegado, mesmo quando este já demonstrava manter maior simpatia política junto aos mencheviques.  

Nessa perspectiva, uma coisa é certa, para aqueles que queiram realmente conhecer as vicissitudes e toda a complexidade do pensamento lenineano. Não é possível fazê-lo ao modo stalinista, por meio de definições e esquematismos gerais. Por exemplo, não é possível captar toda a teoria do imperialismo em Lênin apenas se reduzindo à leitura, todavia essencial, de sua obra “O Imperialismo, fase superior do capitalismo”, olvidando as análises posteriores de Lênin acerca do capitalismo de estado como “degrau necessário” ao socialismo, a partir de seus escritos posteriores a 1918. Da mesma forma, não é possível captar toda a teoria do partido de Lênin em seu importante “O que Fazer”, ainda que lá estejam traços essenciais da teoria do partido, que seria posteriormente aprofundada com o conceito de centralismo democrático. Na nossa opinião, a situação é ainda mais dramática no que se refere ao problema da teoria do estado e da transição. Está muito longe de contemplar a rica e vasta contribuição de Lênin sobre o assunto se basear exclusivamente na leitura de “O Estado e a Revolução”. Trata-se de uma das obras de caráter mais teórico de Lênin e houve quem, por não realizar as mediações devidas, viria, nas teses adotadas por Lênin após a tomada do poder, um oportunismo frente a linha “libertária” de o Estado e Revolução – esta é a opinião do anarquista norte-americano Noam Chomsky.

Contra a dogmatização stalinista e esquerdista/anarquista, vale concluir esta pequena resenha com a conclusão fundamental de Gruppi acerca da essência fundamental do pensamento de Lênin: a relação indissolúvel/inseparável entre teoria e prática revolucionárias.

“Do estudo do pensamento de Lênin, fica-nos a persuasão de que a característica mais profunda de seu método, de sua mentalidade, é o sentido da concreticidade histórica, a consciência da historicidade. ‘A análise concreta da situação concreta é a alma viva, a essência do marxismo’. Essa advertência, que reaparece mais de uma vez, parece-nos caracterizar o modo pelo qual ele se situa diante do marxismo”.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

“Socialismo e Sindicalismo no Brasil” – Edgar Rodrigues

Resenha Livro #90 “Socialismo e Sindicalismo no Brasil” (1675/1913) – Edgar Rodrigues - Ed. Laemmert


 
Acerca do Autor

Edgar Rodrigues é o pseudômino do escritor e ativista anarquista Antônio Francisco Correia, nascido em Portugal em 1921 e morto no Rio de Janeiro em 2009. Edgar Rodrigues foi filho de militante anarco-sindicalista ligado à CGT e a AIT (conhecida como 1ª Internacional). Seu pai foi preso em 1936 pela polícia política salazarista e assim o jovem escritor já observava pessoalmente o que era a repressão aos militantes libertários. Edgar Rodrigues passaria a militar no movimento anarquista português até 1951, quando, fugindo da repressão, embarcou rumo ao Brasil. Foi em terras brasileiras que se dedicou à pesquisa de jornais e periódicos libertários, entrevistou militantes da nossa primeira geração de sindicalistas, recolheu atas de reuniões e assembleias, e trabalhou no sentido da preservação da memória do movimento anarco-sindicalista e, de maneira mais geral, da história das lutas sociais no Brasil. O seu “Socialismo e Sindicalismo no Brasil” data de 1969.

As origens dos movimentos de resistência popular no Brasil

De maneira pioneira, Edgar Rodrigues destaca em sua história do movimento social brasileiro a importância da resistência quilombola. Ressaltamos o pioneirismo pois ainda hoje faltam na nossa historiografia maiores esforços no sentido de resgatar a história da resistência dos escravos africanos no Brasil, não só por meio dos Quilombos – comunidades auto-organizadas e de caráter igualitário – mas por outras formas de resistência, como a sabotagem do trabalho organizada coletivamente, a resistência cultural e religiosa em que pese as proibições oficiais dos jogos de capoeira e qualquer modo de reunião dos negros, além de ações diretas, como a destruição de engenhos, dos instrumentos de trabalho e assassinatos dos capatazes mais cruéis.

Edgar Rodrigues é muito minucioso quando expõe as formas de controle e opressão tanto dos senhores de escravo, quanto, posteriormente, dos senhores de terra em relação aos colonos estrangeiros e aos burgueses em relação aos seus assalariados. No que se refere ao trabalhador africano escravizado, além da má alimentação e dos espancamentos gratuitos, havia punições bárbaras para os rebeldes e, denominados, “fujões”.

“Os castigos no ‘Tronco’ de pés e mãos amarradas e o pescoço imobilizado entre dois pedaços de madeira, o suplício do ‘Viramundo’, um pequeno instrumento de ferro, que prendia pés e mãos do escravo, forçando-o a terríveis posições por muitos dias, o Cêpo, um grande toro de madeira que obrigava a carregar à cabeça e o mesmo preso ao tornozelo por grossas correntes de ferro”. Havia ainda o “Limbambo” que era uma argola de ferro em volta do pescoço cheia de chocalhos. A “Golinha” que eram placas de ferro pesadas com palavras humilhantes, os “Anginhos” que eram anéis de ferro com parafusos que apertavam até esmagar qualquer parte do corpo e o velho “Chicote”.

O que é importante ressaltar é que todo o período histórico abordado por Edgar Rodrigues irá abranger a prática dos castigos físicos, torturas e espancamentos aos rebeldes, sejam os escravos fugitivos das fazendas, sejam os pioneiros libertários e operários da república velha. Durante os anos imediatamente posteriores à abolição (1888) e ao fim do Império (1889) até 1913, a classe dominante brasileira, por meio dos seus jornais e oradores no parlamento, negava a existência da chamada “Questão Social” no Brasil. Diziam que a questão social era um problema exclusivamente europeu, onde havia o excesso de mão de obra e a falta de terras. E daí advém uma primeira e decisiva importância do movimento sindical anarquista que começa a ganhar força especialmente a partir do 1º Congresso Operário no Brasil em 1906: por meio dos seus periódicos, comícios e reuniões, os anarquistas contrapõem as mentiras dos patrões e do governo, expondo as péssimas condições de trabalho no campo e na cidade.

No interior a situação era particularmente mais dramática.

São dados relatos de trabalhadores ligados à construção de ferrovias que morriam aos montes vítimas de doenças tropicais ou mesmo atacados por índios. Os colonos tinham condições de trabalho equivalentes aos dos escravos: eram multados por faltas inexpressivas e nunca conseguiam sequer reunir o montante suficiente para saldar suas “dívidas” com os patrões. Muitos que tentavam fugir – tais quais os quilombos – eram capturados, espancados e mortos. Na cidade, mulheres e crianças trabalhavam por 12 ou mais horas de trabalho. Não havia escolas para os pobres, sendo certo que as pioneiras organizações operárias anarquistas deliberavam como uma de suas tarefas justamente a construção de escolas modernas, livres da influência religiosa, para os operários e seus filhos. O analfabetismo era grande entre os mesmos, fazendo com que a tarefa da alfabetização fosse encarado como um problema estratégico para o movimento. Também para suprir esta deficiência, militantes voluntários realizavam leituras em voz alta dos periódicos anarquistas.

Certamente, assim que começaram a se organizar e propagar a emancipação dos trabalhadores, os imigrantes (em sua maioria italianos, portugueses e espanhóis) libertários foram duramente perseguidos pela polícia, pelos governos e pela imprensa. Esta última sustentava a ideia mirabolante de que os imigrantes libertários eram agentes das potências estrangeiras que vinham ao Brasil com o objetivo de conturbar a indústria nacional – omitindo, conforme Edgar Rodrigues bem observa, que já naquele período muitos dos industriais eram também estrangeiros.

Outrossim, as bandeiras levantadas pelos anarquistas certamente iam em sentido contrário aos interesses da classe dominante: pela redução da jornada de trabalho para 8 horas; pelo fim do serviço militar obrigatório; contra a lei de expulsão dos estrangeiros, expediente jurídico encontrado pelas classes dominantes de então para expulsar dos país os imigrantes que estavam na linha de frente da pioneira organização operária. Outro trabalho importante e internacionalista dos camaradas libertários dizia respeito à propaganda na Europa acerca das condições de vida análogas à escravidão dos colonos imigrantes. Por meio de articulações junto a associações sindicais na Europa, os anarquistas replicavam as denúncias de trabalhadores colonos endividados junto aos seus patrões de tal maneira que se viam virtualmente escravizados.

Interessante notar que muitas das atas e passagens de periódicos anarquistas daqueles anos (primeira década do séc. XX) abordavam sistematicamente a questão do alcoolismo. Não se tratava de um problema “moral”: os anarquistas se colocavam contra o alcoolismo pois o álcool era não só um meio com que os operários super-explorados, com jornadas que iam de 12 a 16 horas de trabalho, encontravam para atenuar o sofrimento, mas meio de endividamento. No campo, os patrões se serviam da venda da cachaça como meio de endividar seus trabalhadores e garantir a virtual escravidão.  

Os anarquistas, também de forma pioneira, reivindicavam normas de higiene e indenização por acidentes de trabalho.

Edgar Rodrigues relata a existência de muitas dezenas de greves por todo o país durante a primeira década do séc. XX, nas mais distintas categorias. As novas associações operárias concentravam-se nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Santos. Impressiona tanto a quantidade de lutas sociais que já haviamentão, mesmo quando a chamada questão social era vista pelas autoridades políticas da época como “questão de polícia”. O relato destas experiências de luta – algumas exitosas, muitas vítimas da mais brutal repressão – é o ponto alto do livro de Edgar Rodrigues.

Um último e breve comentário faz-se necessário. Em que pese a justa importância do movimento anarquista na conformação do sindicalismo combativo no Brasil, Edgar Rodrigues aponta que, ao contrário do que constantemente se pensa, o início da trajetória do pensamento/movimento libertário brasileiro é anterior mesmo à industrialização dos primeiros anos do séc. XX. Já em fins do sec. XIX, algumas tentativas de organização de associações auto-gestionárias foram tentadas, essencialmente por imigrantes europeus.

Em Assis já em fins do séc. XIX a colônia Vapa institui um regime socialista “composto de refugiados letões”. As residências desta aldeia eram de uso comum, bem como as refeições. Não existia dinheiro nem propriedades individuais. O vestuário e os instrumentos de trabalho eram distribuídos coletivamente. Segundo Rodrigues, as características principais dos membros da aldeia eram “uma saúde de ferro e uma calma extraordinária”.

Mas certamente, de todas as tentativas de empreendimento de sociedades autogestionárias no campo, a mais conhecida e maior em número de habitantes, foi a colônia Cecília, formada por imigrantes italianos na cidade de Palmeira, no Paraná. Em 1891 chegaram à região algumas dezenas de famílias. O projeto de colonização fora realizado na Europa e o grupo que aqui se instalou era formado de anarquistas com pouco conhecimento de agricultura, o que dificultou a vida dos habitantes da colônia Cecília em seus primeiros anos. Interessante ressaltar que anos antes o imperador Pedro II, conhecido por seu esclarecimento político-cultural, doava as terras em abundância para os colonos europeus, sendo até simpático aquelas iniciativas pioneiras.   

Seja como for, seria necessário um exame mais rigoroso daquelas primeiras experiências auto-gestionárias de modo a saber como os princípios anarquistas de colaboração e solidariedade mútua, ausência de postos de mando e total igualitarismo nas relações sociais se desenvolveram nas colônias. É bom fazer uma ressalva aqui. Certamente, Edgar Rodrigues, reivindicando o ponto de vista anarquista, comete alguns exageros,  o maior deles o de tentar equiparar a resistência de Canudos como uma experiência de tipo anarquista, pouco colocando em relevo o fato de se tratar, na realidade, de um movimento de tipo fundamentalmente religioso e que, do ponto de vista político, reivindicava nada menos do que a restauração da monarquia no Brasil. Não queremos com isso fazer frente à certo ponto de vista conservador acerca da história do movimento de canudos: certamente, em que pese suas contradições, foi um movimento social, uma forma de luta dos pobres contra o poder estabelecido. Todavia, daí a dizer que foi uma experiência de tipo anarquista, vai uma longa distância.

À guisa de conclusão, vamos citar um artigo interessante do anarquista brasileiro José Oiticica, citado por Rodrigues. Ele apresenta, em jornal denominado “Ação Direta”, o que ele chama de “esquema da organização social anarquista”. O que importa ressaltar aqui é a riqueza de detalhes com que o anarquista detalhava seu projeto societário alternativo, esforço, talvez, decorrente da tendência natural do senso comum em qualificar como “utópica” a possibilidade de uma vida social sem normas jurídicas, estado e polícia.

1- O território de cada país será dividido em zonas federadas, cada zona em municípios e cada município em comunas.

3- Em cada comuna, os trabalhadores se reunirão em classe, conforme seus ofícios, manuais ou intelectuais.

5- Para coordenação e direção dos serviços e execuções das medidas tomadas nas assembleias, haverá conselhos comunais, municipais, federais e um internacional.

11- Os delegados (dos conselhos) não gozarão de nenhum privilégio, nem serão dispensados de seus serviços profissionais senão quando suas funções de delegado lhes absorverem o tempo.

14- O ensino superior e profissional será ministrado em universidades constituídas em comunas, onde se instalarão laboratórios, usinas, hospitais, escolas modelares, etc.

20- Os serviços repugnantes ou insalubres se farão por turnos entre os trabalhadores sem exceção, de preferência voluntários

21- Os encargos de direção técnica serão confiados aos mais competentes a juízo dos próprios trabalhadores, mas não conferem nenhum privilégio.

24 – As casas serão ocupadas por famílias de acordo com o número dos seus componentes

25- A construção de templos, se houver, e confecção de apetrechos de culto serão trabalho exclusivo dos crentes, fora da atividade comum da produção. Será, igualmente, trabalho extraordinário a formação dos respectivos sacerdócios.

26- A união conjugal, inteiramente livre, se fará por mero registro na sede do conselho comunal, podendo cada casal realizar as cerimônias religiosas que lhes aprouver nas respectivas igrejas.

27- Ninguém poderá eximir-se do trabalho produtivo sob pretexto de religião; não será admissível pois, o sacerdócio profissional.

29- Os loucos serão internados em quintas especiais onde serão tratados cientificamente pelos processos mais brandos e recomendáveis.

José Oiticica redigiu ao todo 30 pontos da nova sociedade anarquista.   
 

 

domingo, 1 de dezembro de 2013

“Estado, Ditadura do Proletariado e Poder Soviético” - Lênin


Resenha livro #89 “Estado, Ditadura do Proletariado e Poder Soviético” – Lênin – (Org. Antonio Roberto Bertelli) – Coleção Fundamentos Oficina de Livros

 


É muito oportuna a seleção e publicação destes escritos de Lênin relacionados à teoria da transição, aos problemas do estado soviético,  da ditadura do proletariado e das exigências colocadas pela conjuntura aos revolucionários que partiam das tarefas da tomada do poder propriamente dito (escritos antes de outubro de 1917), para a consolidação e sobrevivência do estado operário durante os anos da guerra civil (escritos entre outubro de 1917 e 1918) e os escritos posteriores, do período da NEP e da necessidade de se avançar no terreno da formação e educação (ideia da “revolução cultural” presente nos textos de Lênin entre 1921-23).

A doença impediria Lênin de escrever a partir de 1923 até sua morte em 1924.

Os textos presentes nesta coletânea são, na sua ordem cronológica: “A Catástrofe que nos ameaça e como Combatê-la” (escrito em setembro de 1917); “Poderão os bolcheviques manter o poder?” (escrito entre setembro e outubro de 1917); “Primeira versão do artigo ‘As tarefas imediatas do poder proletário’ (ditado em março de 1918); “As tarefas imediatas do poder soviético” (escrito em abril de 1918); Reunião do CEC de toda a Rússia – 29 de abril de 1918 (Informe sobre as tarefas imediatas do poder soviético); “Seis teses sobre as tarefas imediatas do poder soviético” (escrito em abril de 1918); “Infantilismo de ‘esquerda’ e a mentalidade pequeno burguesa (publicado em maio de 1918); “As eleições para a Assembleia nacional constituinte e a ditadura do proletariado” (publicado em dezembro de 1919); “O Imposto em espécie (a significação da nova política econômica e suas condições (publicado em maio de 1921); “Sobre o Cooperativismo” (publicado em maio de 1923); Como devemos reorganizar a Inspeção Operária e Camponesas (Proposição ao XII Congresso do partido) (publicado em Janeiro de 1923); e “Melhor pouco, porém melhor” (março de 1923).

É possível visualizar três momentos distintos nos textos, que correspondem mesmo a momentos diferentes da revolução russa. O que é particularmente interessante é que mesmo o tom, a forma como Lênin se expressa de alguma forma diz respeito também a diferentes humores daquela transição difícil que Lênin, lembrando Marx, lembra equivaler a um duro parto. Este “duro parto” ou a teoria da transição socialista é o grande tema de todos estes artigos reunidos.

Os dois primeiros, A Catástrofe que nos ameaça e como Combatê-la” (escrito em setembro de 1917) e “Poderão os bolcheviques manter o poder?” (escrito entre setembro e outubro de 1917) são os dois únicos escritos quando os bolcheviques não estavam no poder. Este esteve com Kerensky, apoiado pelos esseristas e mencheviques, durante a fase “democrático-burguesa” da revolução russa (iniciada em fevereiro de 1917). Os textos são escritos em tom de polêmica, o primeiro apontando o programa mínimo dos bolcheviques e o segundo aprofundando o tema anterior. Nesta contexto de combate de ideias prévio à tomada do poder pelos bolcheviques (o que envolvia fazer com que o proletariado e, posteriormente, as massas camponesas aderisse as ideias bolcheviques), Lênin elenca 6 argumentos utilizados contra os bolcheviques e o contra argumentará. Vamos citar alguns deles.

O primeiro argumento: “O proletariado está isolado das demais classes do país”. Lênin mostra com números que os bolcheviques já contavam então com a maioria nos sovietes de deputados, operários, soldados e camponeses, “com a maioria da pequena burguesia, tanto no que se refere ao problema da coalizão com a burguesia (as quais os bolcheviques se posicionam contra), como na entrega imediata das terras dos latifundiários aos comitês camponeses”. E o mesmo poderia ser acrescentado com relação ao problema da paz. Por defenderem o programa que mais correspondia aos anseios das massas, os bolcheviques tomariam o poder.  O fracasso do governo de coalizão certamente faria com que a massa dos camponeses cada vez mais passasse para o campo bolchevique, sendo certo que estes mesmos bolcheviques, sob a liderança de Lênin, nada mais fizeran do que oferecer a política apenas defendido na retórica pelos esseristas, qual seja, a nacionalização da terra e o confisco dos latifundiários.

Outros dados oferecidos aqui e em demais momentos nos textos de Lênin mostram como o mapeamento dos votos nos sovietes revelam as divisões de classe fundamentais na Rússia. Proletariado, burguesia e campesinato (pequeno-burguesia). O proletariado vota majoritariamente com os bolcheviques, mesmo antes de outubro. O partido da burguesia, dos latifundiários e dos elementos contra-revolucionários são os kadetes. O campesinato apoia os  esseristas mas, sob a já mencionada falência do governo de coalização, os camponeses seguirão a direção do proletariado na revolução russa, o que seria decisivo para sua vitória e sobrevivência. Concessões como a NEP e o imposto em espécie diziam respeito tanto à tática de aliança junto aos camponeses como à estratégia socialista, fazendo avançar  e criando cada vez melhores condições para o capitalismo de estado.

O segundo argumento utilizados pelos adversários do partido bolchevique é que “o proletariado está isolado das verdadeiras forças vivas da democracia”. Além de ridicularizar estas “frases mortas”, Lênin reitera que a tendência é de crescimento do apoio dos bolcheviques, justamente pela inércia do governo Kerensky, particularmente no tocante à manutenção da guerra.

O terceiro argumento é o de que o proletariado “não poderá tecnicamente apoderar-se do aparelho do Estado”. Lênin reconhece haver uma dificuldade em ensinar os trabalhadores a governar, mas bem lembra que o fato de ser difícil não faz com que os socialistas devam deixar de cumprir a tarefa de governar. É importante pontuar que neste momento Lênin está ainda próximo da perspectiva de seu “Estado e Revolução” do que estaria, por exemplo, nas suas análises dos anos 1920. Antes, o modelo de estado socialista em Lênin assemelha-se à Comuna de Paris, o que vem a ser, neste artigo, à defesa dos sovietes. Posteriormente, haverá um outro discurso, voltado à defesa do Capitalismo de Estado, a antessala necessária ao socialismo. (Dedicará uma polêmica inteira junto aos comunistas de esquerda e Bukharin acerca do capitalismo de estado). Vejamos o que diz Lênin: “O proletariado não pode ‘apoderar-se’ do aparelho do estado e ‘colocá-lo em marcha’. Porém, pode destruir tudo o que há de opressor , de rotineiro, de incorrigivelmente burguês no velho aparelho de estado, e substituí-lo por um    novo aparelho, próprio. Este aparelho são, precisamente, os soviets de deputados operários, soldados e camponeses.”.

Destacamos outra passagem bastante expressiva acerca do papel do estado em Lênin naquela conjuntura:

“O Estado é o órgão de dominação de uma classe. De que classe? Se é da burguesia, então é o Estado cadete-Kornilov-‘Kerensky’, que esteve ‘korniloviano e keresnkiano’ os operários da Rússia durante mais de seis meses. Se é do proletariado, se estamos falando de um estado proletário, isto é, da ditadura do proletariado, então, pode o controle operário se reverter no registro da produção e distribuição dos produtos por todo o povo, universal, onipresente, mais preciso e escrupuloso.

Esta é a dificuldade principal, a tarefa principal da revolução proletária, isto é, da revolução socialista. Sem os soviets esta tarefa seria, pelo menos para a Rússia,  impraticável.”

Será por este aporte segundo o qual a detenção rígida e inflexível do poder político pelo proletariado no estado operário parte das razões que Lênin mostrará para afastar as críticas à NEP, ao reestabelecimento do capitalismo em pequena escala, ao imposto em espécie e até mesmo à polêmica referente à contratação de técnicos capitalistas que irão colaborar e educar o proletariado a organizar a grande produção.

A organização da produção. Esta é a temática permanente do que poderíamos colocar como a segunda fase do pensamento leniniano evidenciado pelos textos, indo da “Primeira versão do artigo ‘As tarefas imediatas do poder proletário’ (ditado em março de 1918) até “As eleições para a Assembleia nacional constituinte e a ditadura do proletariado” (publicado em dezembro de 1919). Aqui o grande líder revolucionário chega a ser talvez repetitivo, ainda que deva sempre observar que os escritos do período são todos destinados a mais ampla circulação, sendo necessário o tom didático (mas nem por isso superficial) e acrescentaríamos até um certo doutrinarismo, com todas as reservas à utilização do termo, até porque pela própria posição política de Lênin, a última coisa que podemos é caracterizá-lo como dogmático. (Certamente foi um ortodoxo, que é coisa diferente). De qualquer forma, as questões de ordem colocadas por Lênin são: montar um aparato de registro e controle da produção de forma a punir severamente a especulação e restabelecer disciplina e autodisciplina dentro do trabalho, o que se explica pela enorme devastação da Rússia naqueles anos em que acumulou guerra mundial, revolução e guerra civil. A cidade e o campo estão assolados pelo espectro da fome, sendo essencial organizar imediatamente a produção, fazer com que o estado operário resista, se estabeleça como uma trincheira, tirando proveito da divisão inter-imperialista que implicou numa pequena trégua. Esta trégua precisa ser aproveitada, voltando o país para a organização do trabalho. Desenvolver a capacidade técnica, reorganizar os transportes, construir cooperativas e unificá-las, mesmo junto às burguesas. Aplicar trabalho obrigatório, inicialmente para os ricos. E aproveitar os técnicos capitalistas, na medida em que o socialismo depende das mais modernas técnicas de produção capitalista.

Finalmente, poderíamos identificar uma terceira e última fase, que vai de “O Imposto em espécie (a significação da nova política econômica e suas condições (publicado em maio de 1921) e “Melhor pouco, porém melhor” (março de 1923). Aqui, uma mudança qualitativa diz respeito ao olhar de Lênin e dos bolcheviques para a situação internacional. Se no período anterior predominam menções no sentido de que a revolução nos país capitalistas avançados estaria em marcha e em pouco tempo tomaria corpo, criando melhores condições para a revolução russa, já nos anos 1920, percebe-se que o movimento revolucionário desloca-se do continente europeu para o oriente. A China e a Índia começam a dar sinais de mobilização revolucionária enquanto nos países avançados o imperialismo dá sobrevida ao capitalismo.

Há um tom mais amargurado nestas últimas intervenções de Lênin. A franqueza com que ele descreve o que é o estado russo naquele ano não encontra igual em nenhum chefe de estado na história – o que realça a grandeza de Lênin como dirigente. Lênin diz: “Nosso aparelho estatal é até tal ponto deplorável, para não dizer detestável, que primeiro devemos refletir profundamente de que modo lutar contra duas deficiências, recordando que estas deficiências advêm do passado, que, apesar de ter sido radicalmente mudado, não foi superado, não chegou à etapa de uma cultura que ficou num passado distante”.

Lênin passa a insistir aqui numa revolução cultural que eduque os operários, eleve a civilização russa, prepare a nova classe dominante, para a produção e para as atividades no estado e no partido. Lênin defende rigorosos exames de admissão para postos de chefias, envolvendo conhecimento sobre organização do trabalho e instituições políticas soviéticas. Defende que os melhores quadros vão às províncias nos interiores – as vezes são mais úteis lá do que em algum centro burocrático. Defende melhores salários pera técnicos mais bem preparados como medida transitória. A necessidade de criar bons exemplos são ressaltadas, já que a nova sociedade exigia novos homens. Quando falávamos que há um tom mais amargo nos últimos textos de Lênin, há de se colocar que este tom é sutil. E sempre em seus textos, como parte de uma convicção política interior, Lênin esteve longe de trabalhar para desmotivar seus leitores. Mesmo nos tempos mais difíceis, esforçava-se mostrar otimismo com relação ao futuro. Tinha compromisso com a certeza da vitória.

 

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

“Formação Histórica do Brasil” – Nelson Werneck Sodré

Resenha Livro #88 “Formação Histórica do Brasil” – Nelson Werneck Sodré – Editora Brasiliense



Sobre o autor

Nelson Werneck Sodré nasceu no Rio de Janeiro em 1911. Estudo no Colégio Militar em 1924 e no Colégio Militar em 1930, ambos no então distrito federal brasileiro. Serviu o exército de 1931 a 1962, quando se transferiu para reserva como General. Foi professor-chefe do Curso de História Militar da Escola de Comando e Estado Maior, e chefe do Departamento de História do Instituto Superior de Estudos Brasileiros. O ISEB é importante instituição difusora das ideias nacionalistas e desenvolvimentistas no Brasil de meados do séc. XX.

Acerca do Livro

Este “Formação Histórica do Brasil” corresponde a curso de História do Brasil dado por Sodré no âmbito do Ministério de Educação.  Trata-se de uma análise crítica e materialista dos fundamentos históricos do Brasil, da colônia ao império, da república velha à revolução de 1930, dos dois governos de Getúlio Vargas aos desafios e impasses colocados ao país após a era JK. O materialismo diz respeito aos pressupostos teórico-metodológicos bem como às respectivas conclusões a que chega o autor. Na sua história, há pouca menção aos denominados “grandes eventos”, aos fatos políticos relacionados aos nomes que ocupam os cargos de poder, por exemplo. Estes são relatados de passagem, como aspectos superficiais. O que realmente importa, no método adotado por Sodré, são as alterações processuais e históricas das forças produtivas, os arranjos das classes sociais decorrentes das transformações no modo de produção. Este materialismo leva o autor a ir além justamente das manifestações mais superficiais do problema histórico e buscar dentro do arranjo produtivo delineado no país as fontes originárias do desenvolvimento histórico.

Nesta perspectiva, a evolução histórica do país deve ser menos encarada pela sucessão dos distintos regimes políticos formais (colônia, império, república, ditadura e democracia) e mais pela base econômica e pelo modo de produção dominantes.

Assim, nossa origem histórica está situada nas transformações porque passa a Europa desde a baixa idade média. A precoce centralização política portuguesa engendrada pela Revolução do mestre de Avis criaria as condições políticas e econômicas para o desenvolvimento da navegação. Iniciava-se o processo de transformação do modo de produção na Europa, da fase feudal para a fase do capitalismo comercial. O desenvolvimento do comércio, o metalismo, a prevalência econômica  da circulação de riquezas sobre a produção de bens e o correspondente político dos estados absolutistas modernos são os traços essenciais das nações metropolitanas que se lançarão às grandes navegações: primeiro os países ibéricos, depois Holanda e posteriormente Inglaterra e França. A descoberta de América e do Brasil decorreram de buscas alternativas de rotas comerciais com o oriente, da competitividade dos mercadores pelo comércio das especiarias, portanto.

Os primeiros 30 anos de colonização brasileira seriam marcados pelo virtual desinteresse metropolitano pela ocupação e colonização do novo território. Até porque faltava à Portugal recursos e mão de obra disponíveis para um empreendimento que exigia enormes montantes de capital inicial. Entre 1500-1530, a colonização esteve marcada pelos primeiros contatos entre portugueses e indígenas e pela comercialização do pau Brasil. Será só a partir de meados do séx. XVI que, diante das invasões francesas e do risco da perda do território, que o Império Português irá se mobilizar para o empreendimento colonial.

 E assim, a primeira atividade produtiva para além do extrativismo viria com a produção do açúcar. Sua base produtiva era o plantation: grandes propriedades, monocultura e trabalho escravo africano são os elementos constitutivos da nova produção. As terras eram doadas pela Coroa, que transferia ao particular poderes administrativos e jurisdicionais sobre as terras brasileiras. As dificuldades eram enormes e aqui se torna interessante o retrato social delineado por Sodré de nossa realidade colonial. As capitanias eram isoladas umas das outras e havia extrema escassez de manufaturas e alimentos: inicialmente o colonizador alimenta-se de milho e mandioca, sendo posterior a introdução do gado, com a produção do couro e alimento. Verifica-se um desenvolvimento desigual na região do nordeste e na região de São Vicente e no Planalto de Piratininga, região sudeste. No nordeste consolida-se a grande propriedade fundiária na região litorânea (mais próxima dos mercados europeus), tratando-se de uma colônia de exportação. São Vicente torna-se ao contrário uma colônia de povoamento, com papel destacado das missões jesuíticas, que iriam entrar em conflito com bandeirantes paulistas sempre que a conjuntura pressionasse no sentido de demanda de mão de obra, com captura do indígena.

Seguem-se sucessivamente diferentes períodos de nossa história econômica que irão delimitar e explicar as origens do Brasil contemporâneo de Sodré. A elite exportadora agrária, com a independência política de 1822, passaria a deter o controle político do país e dirigi-lo consoante os seus interesses: inicialmente atrelados ao capital comercial português e inglês e posteriormente ao imperialismo norte-americano. Alterações no nosso quadro geográfico, político e social seriam impulsionadas pelo surto minerador (que contribui para um primeiro desenvolvimento de nosso mercado interno), pela produção algodoeira, pela exploração das drogas do sertão amazônico (contando com unidades produtivas desenhadas pelos missionários jesuítas) e finalmente pelo café, a partir de meados do séc. XIX. O que permanece de nosso passado colonial é uma elite política agrário-exportadora sempre subordinada ao capital estrangeiro, a enorme concentração fundiária  e dificuldades de um desenvolvimento verdadeiramente nacional.

Importa aqui observar alguns pontos de vistas particulares de Sodré, bem como especular acerca das razões pelas quais este historiador tem sido eventualmente negligenciado pela historiografia. Em primeiro lugar, há de se destacar que há hoje pouca aceitação dentre os estudiosos do nosso passado sobre a existência de um regime feudal no Brasil. Em Sodré, aquele etapismo característico das formulações do antigo Partido Comunista Brasileiro encontra plena expressão. Nosso passado colonial inicia-se no âmbito do modo de produção escravista. Gradualmente, elementos de servidão irão compor este cenário, particularmente a partir das chamadas parcerias junto aos imigrantes na produção do café. Vejamos mais de perto esta questão do feudalismo no Brasil em Sodré:

“O fenômeno de transição de vastas áreas antes escravistas a um regime caracterizado de servidão ou semi-servidão é possível, no Brasil, pela disponibilidade de terras. Este é um dos fatores fundamentais, mas não deve ser apreciado pelo que apresenta, mas pelo que, realmente, é. A disponibilidade de terras é um fato inequívoco – mas de terras apropriadas, não de terras por apropriar. Há espaços vazios, mas não há propriedades a conquistar: não há transferência de propriedade. Está claro que o problema não é estático: grandes áreas não apropriadas, já objeto de ocupação, são apropriadas, por diferentes processos, entre os quais o da violência pura e simples (...). É nesses vazios que se estabelece a base de regressão. Não se trata assim de uma espécie de “fronteira móvel”, como se pensa às vezes, mas de uma invasão formigueira de pequenos lavradores ou de pequenos criadores que estabelecem as suas roças de mera subsistência e que permanecem no conjunto ausentes do mercado. (...) Trata-se de um quadro feudal inequívoco”.

Mais aceita, todavia, é a perspectiva de Caio Prado Júnior segundo a qual não haveria a rigor feudalismo no Brasil – um modelo, de todo modo, tipicamente europeu, havendo a classificação de sistema colonial. Por outro lado o denominado “sentido da colonização” em Caio Prado coincide com as teses nacionalistas de Sodré. Ambos apontam para a espoliação, a extração da riqueza e a pressão econômica sobre os setores menos expressivos economicamente como elementos fundamentais e permanentes na história do Brasil.

Assim, em que pese eventuais críticas a certo “formalismo” no exame histórico de Sodré – consoante a perspectiva etapista dominante dentre os comunistas brasileiros – sua contribuição ainda nos é muito útil, em pelo menos três aspectos. 1º no que se refere à sua original reconstrução histórica materialista, que é capaz de analisar nossa formação em maior profundidade do que a historiografia positivista calcada nos “grandes eventos”; 2º no vasto acervo de informações, estatísticas e fontes históricas que enriquecerão o repertório cultural do leitor; 3º nas suas conclusões nacionalistas e anti-imperialistas, nas implicações políticas, portanto, deste vasta e profunda investigação histórica de nosso passado.