domingo, 24 de abril de 2011

"O Estruturalismo e a Miséria da Razão" - Carlos Nelson Coutinho

Resenha #23 0 “O Estruturalismo e A Miséria da Razão” – Carlos Nelson Coutinho – Ed. Expressão Popular




Autor

Carlos Nelson Coutinho é filósofo marxista, militou no PT e hoje mantém proximidade com o PSOL. Introduziu no Brasil, junto com Leandro Konder e outros, as idéias do filósofo húngaro György Lukács. Alguns anos após a publicação do “Estruturalismo”, passaria a estudar o filósofo italiano Antônio Gramsci. E é a partir da influência gramsciana que Coutinho lançará seu provável mais famoso ensaio, “A Democracia Como Valor Universal”.


Objetivos do Estudo

A publicação de “Estruturalismo e A Miséria da Razão”, cerca de 30 anos após o seu lançamento (1971), revela a atualidade das discussões propostas pelo autor. O objetivo da obra, então, era o de fazer crítica militante acerca da tendência filosófica predominante nas universidades brasileiras após 1968. O exílio dos intelectuais brasileiros de esquerda e o cerco ideológico promovidos pela repressão criou condições para a importação daquela nova moda filosófica francesa. No Brasil, o Estruturalismo viria a preencher o vazio intelectual decorrente da repressão e da fragilidade política da esquerda, pouco capaz de dar respostas teóricas às críticas do estruturalistas à razão dialética, ao humanismo e à história dotada de sentidos.

Já o objetivo da obra de Carlos Nelson Coutinho, hoje, vai além de ilustrar os embates filosóficos de sua época e/ou tratar de alguns tópicos da filosofia de Marx, e particularmente de Lukács e sua ontologia do ser social.

O texto é ainda capaz de armar o campo crítico e marxista de argumentos e respostas às tendências filosóficas irracionalistas: hoje, o estruturalismo deixa de ser a moda filosófica, havendo versões atualizadas da “miséria da razão” sob os nomes de pós-estruturalismo e pós-modernismo. Igualmente, estruturalismo e pós-estruturalismo têm lances de continuidade e sinalizam respostas do mundo da filosofia às exigências da economia e manifestações dos ciclos de crise e expansão do capitalismo. O Estruturalismo, filosofia européia que mantém correspondência com um momento de expansão do capital, estabelece suas bases filosóficas a partir de modelos esquemáticos, da técnica, da razão instrumental, tabelas, números e eficácia. O pós-estruturalismo, correspondendo aos eventos da reestruturação produtiva e crise econômica estrutural, sinaliza insegurança, contingência, irracionalismo, o resgate da filosofia pessimista de Nietzche e Heidegger, dentre outros. O que há de comum entre estruturalismo e pós-estruturalismo é a negação dos 3 eixos fundamentais da filosofia do marxismo: o humanismo, o historicismo e a dialética.

Batalha das Ideias

Ao negar o humanismo, o Estruturalismo é incapaz de revelar a “mutilação da práxis pela manipulação, a necessária irracionalidade de uma vida voltada para o consumo supérfluo e humanamente insensato”. Ao negar o historicismo, o estruturalismo naturaliza as relações históricas de exploração, chegando a teses extremas, como em Levi-Strauss, de se defender a existência de estruturas e normas sociais que antecedem o homem, e portanto, a própria história. Ao negar a dialética, o Estruturalismo instaura a hegemonia da razão meramente instrumental – chamada por Carlos Nelson Coutinho de Intelecto. Negar a dialética, seja por estruturas normativas imutáveis (estruturalismo) seja pela pura e simples negação da racionalidade a priori (pós-estruturalismo) significa contrapor-se aos esforços de promover um entendimento totalizante da realidade, capaz de tornar o mundo congniscível e passível de ser transformado: pensar para além do intelecto significa utilizar a razão decorrente das descobertas filosóficas de Hegel e Karl Marx, negadas pelas mais distintas formas pelas filosofias manipulatórias.

Reinvindicar a atualidade da filosofia crítica e emancipatória significa confrontá-la com as demais filosofias associadas, de forma mais ou menos consciente, à lógica de reprodução do capital. A batalha das ideias segue viva, 30 anos após o lançamento do “Estruturalismo e A Miséria da Razão”.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

"Felicidade Conjugal" - Lev Tolstoi

Resenha #22 “Felicidade Conjugal” – Lev Tolstoi – Editora 34 – Tradução Boris Schnaidermann



Sobre a obra

Felicidade Conjugal foi lançada em 1859, tratando-se de obra da fase jovem do escritor russo Lev Tolstoi ( 1828-1919). Quando o romance foi escrito, o autor tinha pouco mais de 30 anos. Não se identifica em Felicidade Conjugal algumas idéias relacionadas à moral e política que marcariam sua obra mais reconhecida.

Ainda não se aborda em Felicidade Conjugal questões sociais, não há descrição das profundas desigualdades econômicas dentre as classes sociais da Rússia do séc. XIX. Não há relatos das condições de vida de camponeses e mujiques contrapostas à descrição e à crítica do luxo exacerbado das classes dominantes da Rússia – tanto a aristocracia quanto à burguesia incipiente das cidades – tema que será particularmente analisado no útlimo romance do autor, “Resurreição”.

No que se refere à moral, não há o viés doutrinário do cristianismo, que igualmente é parte do conjunto de idéias que se abrigam sobre o termo "tolstoísmo". Felicidade Conjugal é um romance sucinto, é um relato pessoal das experiências amorosas de Mária Aleksândrovna. O objeto central do texto são os sentimentos da personagem, ou talvez mais exatamente, o desenvolvimento dos sentimentos de afeto e amor da Maria ao longo do seu amadurecimento pessoal e do amadurecimento de sua relação com seu marido Sierguiéi Mikháilitch.

Em um aspecto pudemos, porém, identificar um traço de continuidade entre Felicidade Conjugal e a obra subseqüente de Lev Tolstoi. Trata-se da habilidade com que o autor traduz os sentimentos das personagens, sensações sutis decorrentes dos relacionamentos humanos ou mesmo da percepção humana acerca da natureza. A descrição de nuvens movimentando-se no céu, formando chuvas e posteriormente dissipando-se combina-se no enredo com a trajetória das personagens de forma bastante interessante.

Tolstói foi muito capaz de captar e e comunicar coisas sutis das pessoas e dos ambientes. Exige-se boa capacidade de interpretação do homem e do mundo para conseguir descrever sensações profundas e complexas de forma tão simples. De maneira geral, os textos de Tolstoi são sempre bastante acessíveis. Frases curtas, orações diretas e vocabulário comum oferecem análises e reflexões aprofundadas acerca dos diversos temas decorrentes do amor. No caso de “Felicidade Conjuugal”, do amor burguês.

Sobre a História

Mária Aleksândrovna casa-se ainda muito jovem com Sierguiéi Mikháilitch. Seu amor pelo marido é relatado desde sua infância, quando o afeto então assumia a forma de admiração e respeito análogo ao amor por seu pai. Conforme a jovem amadurece, igualmente seu amor por Mikháilitch vai tomando formas distintas. Apaixonam-se, casam-se e retiram-se para o campo, para uma vida inicialmente feliz. A diferença de idade passa a ser fonte de angústia e inquietações por parte de ambos e o desenvolvimento da felicidade conjugal em diferentes aspectos vai sendo relatada por Maria.

Cumpre ressaltar que o casal possui terras e muitos recursos financeiros. Na gleba do casal moram camponeses trabalhadores, não se sabendo em que condições. Pouca ou nenhuma atenção é dada pelo texto (e por Maria) a qualquer questão que não a relação amorosa do casal. A descrição reiterada dos sentimentos individuais, mesmo se tratando de sentimentos sutis e originais, pode parecer um pouco entediante para certo tipo de leitores.

Possibilidades

Ainda assim, é possível extrair algumas lições de Felicidade Conjugal. O interessante aqui é tentar extrair da história algumas idéias sobre como se fundam as relações de gênero numa sociedade em que co-existem relações capitalistas e pré-capitalistas de produção, desenvolvimento de cidades e ilustração burguesa convivendo com o domínio aristocrático no campo, forte presença religiosa da Igreja Ortodoxa, suntuosidade e opulência em bailes e eventos envolvendo o conjunto da classa dominante russa. Neste tipo de sociedade, não cabia à mulher nenhuma preocupação que não fosse tocar piano, conversar com outras mulheres durante o dia e viver de forma subserviente ao homem, reconhecer-lhe total autoridade sobre si. Mária não só o faz, como parece que o deseja a todo momento. A dominação masculina é parte daquilo que sente e interpreta como "felicidade conjugal" na medida em que seu amor é fruto também de suas expectativas sobre o que é ser mulher naquela sociedade.

O desafio inconcluso de “Felicidade Conjugal” é buscar a compreensão da forma como o amor e a felicidade podem subsistir às relações de opressão e dominação. Mária é feliz e sua felicidade está totalmente comprometida com um mundo radicalmente machista. Hoje isso deve significar, entre outras coisas, repensar o que é o amor e como ele pode projetar novas relações de gênero distintas daquelas das sociedades pré-capitalistas e capitalistas descritas em ‘Felicidade Conjugal’.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

"A Chinesa" - Jean Luc-Godard

Resenha Filme #3 – “A Chinesa” – Jean Luc-Godard



6 Pontos sobre "A Chinesa" de Jean Luc-Godard

1- O filme retrata jovens universitários franceses organizados numa célula política de orientação maoísta. O grupo passa os dias dentro de um apartamento, de onde praticamente não saem, falando de temas teóricos ligados à arte, filosofia da linguagem e política internacional, sempre se orientando pelas críticas ao imperialismo norte-americano e ao revisionismo soviético. (O fato dos jovens estarem isolados do mundo é determinante, por suposto, na conformação de suas análises políticas da realidade). A obra passa-se em Paris de 1967 e ilustra a geração de universitários franceses que participariam das revoltas do maio de 68.

2- Veronique tem 19 anos, estuda filosofia, aparenta possuir vasta formação teórica, ainda que imatura e impaciente politicamente. Kirilov é um artista, pouco intevem nas discussões do grupo e defende o terrorismo político. Henri é químico e tensiona o coletivo acerca da necessidade de objetividade nas análises: “o marxismo é uma ciência.” É acusado de revisionista e, ao defender a coexistência pacífica entre URSS e EUA, é expulso da célula. Guillaume é ator, fala sobre política de forma intensa, lê trechos do livro vermelho em voz alta e aparenta ser arrogante. Yvonne é de origem camponesa, diferencia-se do restante do grupo por sua origem social, pelo fato de não compreender as discussões na forma como elas são feitas pelos universitários. Na cidade, trabalhou como faxineira e eventualmente prostitui-se.

3- O filme tem uma linguagem bastante específica, os diálogos são intercalados com mensagens políticas, imagens de Lênin, Mao-Tsé Tung, Malcon X e Stálin ou cartazes de propaganda política, fotografias ilustradas da revolução cultural chinesa, da resistência na Argélia e jovens dissidentes na URSS. O apartamento é decorado com mensagens políticas pintadas nas paredes e diversos livros vermelhos. Os livros vermelhos são utilizada como barricada em luta simbólica contra o imperialismo ou jogados num tanque de guerra de brinquedo. A forte presença do livro vermelho remete à centralidade da revolução cultural dentro do imaginário dos jovens franceses do final dos anos 1960. Os impactos decorrentes da morte de Stálin, o imperialismo soviético, a coexistência pacífica e a emergência das guerrilhas no chamado terceiro mundo são retratados nas discussões políticas, nas imagens e nos desdobramentos finais do filme (que não serão contatos nesta resenha).

4- Uma discussão específica entre Veronique e um antigo professor da universidade nos pareceu o ponto alto do filme. O fato do diálogo dar-se fora do apartamento favorece a crítica sobre as políticas dos jovens universitários: dentro de um trem em movimento, aquele é um dos poucos momentos que Veronique convive com pessoas de fora da célula. A conversa gira em torno dos problemas das universidades francesas, do autoritarismo e sensação de sufocamento cultural e das formas de luta de resistência. Veronique revela neste momento o fato de que os dois anos de estudos teóricos de marxismo não expressam conhecimento e sensibilidades acerca do real, dos desafios concretos e objetivos dos estudantes na luta pelo socialismo. A proposta da ação terrorista, de lançar bombas na universidade defendida por Veronique é duramente criticada. As ações terroristas não vinculadas com um movimento de massas e com um alguma possibilidade de adesão no sentido de promover uma luta generalizada não são objeto de preocupação na estudante. A luta revolucionária surge à personagem como algo pessoal. Lênin quando discute o esquerdismo, relaciona-o à política pequeno-burguesa. Não se pode fazer a revolução pela maioria mas necessariamente com a maioria.

5- O isolamento da célula revolucionária em relação ao mundo é igualmente fonte de provocação àqueles que hoje lutam pelo socialismo num contexto em que a possibilidade de um futuro pós-capitalista aparenta ter sido jogada no lixo da história. O fato é que todo o estudo teórico não suprime a exigência da experiência prática como forma de apreensão do real, dos objetivos e dos meios de luta através da “análise concreta da realidade concreta” (Lênin). O apartamento da célula maoísta existe como um mundo à parte, sem conexão orgânica com a realidade dos trabalhadores. Emblemático o fato da camponesa Yvone estar isolada politicamente do grupo. Em uma de suas poucas intervenções é vaiada pelos estudantes, ao responder que a origem da verdade é o “céu”. No que se refere à nossa realidade, a provocação vai num sentido mesmo além da crítica à política de seita. A provocação trata daquilo que costuma-se chamar das condições objetivas e subjetivas da revolução. Se o conhecimento teórico do grupo dá suporte às interpretações teóricas acerca das condições objetivas, esta depende da vivência concreta dentro da realidade do trabalho – fora do apartamento ou de reuniões internas de partidos e dentro de fábricas, escolas, nos bairro populares. Sobre as condições subjetivas, estas se expressam na organização política, nos fluxos de consciência da classe que vive do trabalho e na sua interação com as análises das condições objetivas.

6- A ideia de que um apartamento fechado ao mundo de onde um grupo jovens dará partida a uma revolução mundial é comparada a uma fábula, relatada no filme, que oferece uma boa síntese de a Chinesa. No Egito, acreditava-se que a língua falada por aquele povo era a mesma que a língua de deus. Para demonstrá-lo, conta-se que um pequeno grupo de bebês foi deixado numa casa em total isolamento do mundo: havia a expectativa de que os pequenos aprendessem a língua naturalmente. Passados alguns anos, constatou-se que as crianças comunicavam-se grunhindo como carneiros – notaram que havia carneiros ao lado da casa onde as crianças foram abandonadas. A crítica política de Godard refere-se à ideia de que o apartamento equivale a casa das crianças egípcias. Infelizmente, a crítica tem sua atualidade.