terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Ressurreição - Liev Tolstói

Resenha #12 Ressurreição Liev Tolstói – Ed. CossacNaify





A emergência do mundo burguês na Rússia do séc. XIX, suas contradições e embates frente à derrocada do mundo aristocrático.

Autor e suas circunstâncias

Liev Tolstói (1828-1910) é provavelmente o escritor Russo mais lido de todos os tempos. As obras mais famosas do escritor são “Guerra e Paz” (1860) que descreve a invasão napoleônica da Rússia e “Ana Kariênina” (1870), extensa história de amor com diversas adaptações para o teatro e cinema. Os livros de Tolstói eram publicados livremente por toda a Europa: por opção ideológica o autor renunciou a todos os seus direitos autorais, de maneira que muitos problemas de tradução e edição grosseiras implicaram em diferentes recepções dos textos. Enquanto as cenas de sexualidade de Ana Kariênina foram ressaltadas nas edições francesas, nas publicações norte-americanas muitas cenas de amor foram suprimidas.

Ainda assim, seu reconhecimento público deu-se em vida, algo raro, o que lhe garantiu provavelmente a liberdade: prendê-lo acarretaria em desgaste político da autocracia russa diante de todo o mundo e particularmente da Europa “ilustrada”.

Vale destacar, aqui, contexto político da Rússia naquele momento histórico – algo que está bastante presente no texto do autor. O império era dirigido por elites políticas em transformação acelerada: a contradição central que impulsiona a mudança refere-se à exigência de sustentar regime político monárquico, centralizador, opressivo e com ranços medievais convivendo com a influência do pensamento liberal da Europa, da pressão por reformas políticas diante das revoluções liberais do séc. XIX e de organizações revolucionárias ou consideradas “subversivas”. Dentre estas últimas se destacam os jovens revolucionários do “Narodniks”– presentes em Ressurreição – que defendem o fim da propriedade privada no campo e radical distribuição de renda; pequenas seitas religiosas cristãs como os “dukhobors” – em russo, “lutadores do espírito” – que desafiam as práticas da Igreja Ortodoxa Russa e a lógica de poder do czarismo.

O próprio Tolstói foi responsável pelo fomento de grupo de discípulos. Estes discípulos tinham em comum a negação do Estado, do dinheiro e da Igreja oficial ortodoxa, praticavam o vegetarianismo e defendiam o pacifismo e a vida comunitária. O “tolstoísmo” é lembrado por certos autores como uma vertente anarquista. Anarco-tolstoísmo é conceito obviamente polêmico, muitos identificam aqui contradição entre os dois termos.

Aspectos Particulares de Ressurreição

Ao falarmos da trilogia dos grandes romances de Tolstói, é provável que Ressurreição (1899) seja a obra menos conhecida. Se nos dois primeiros livros o problema social, a denúncia política e o problema dos privilégios da nobreza são os panos de fundo para o enredo, em Ressurreição estes conflitos ganham maior destaque do que a história das personagens. “(Tolstói) focaliza o sistema judicial e prisional, um cenário e um contingente humano muito diferente do que encontramos nos romances anteriores. Desse ângulo, lança sobre a sociedade inteira uma luz capaz de pôr a nu o sentido da violência, oficial ou não, e sua relação com os privilégios”[1].

Esta nova perspectiva deve ser relacionada ao contexto em que a obra foi escrita.

Em 1894, Nicolau II assume o trono e exige de seus súditos por toda a Rússia juramento de lealdade. A Seita dos “dukhobors”, com quem o autor mantém contato, nega-se a prestar o juramento e alistarem-se ao serviço militar – “alguns jovens dukhobors foram presos e banidos para Sibéria. Em protesto, no Caucásio, milhares de dukhobors queimam todas as armas que ainda possuíam – facas, espadas, pistolas, rifles, usados na sua defesa contra montanheses nômades. As fogueiras arderam numa única noite, em Junho de 1895, num franco desafio ao Estado”[2], que não tardou a sufocar o que julgou ser uma rebelião. Para ajudar a financiar o transporte dos dukhobors ao exílio no Canadá, Tolstói, renunciando sua prática, negociou os direitos autorais da obra para levantar fundos para o transporte de navio. Ainda hoje, a comunidade remanescente no Canadá mantém a memória de Tolstoi em suas comemorações e eventos.

O enredo de Ressurreição

A história do príncipe Nekhliúdov e sua luta para salvar Katiucha e redimir-se moralmente é contada de forma a privilegiar a descrição e análise crítica da sociedade Russa. A opção do escritor em ter como protagonistas de sua história um aristocrata dono de terras, desiludido com sua classe, e uma mulher do povo, vítima de toda sorte de opressão econômica e de gênero, cria condições para se mostrar as raízes da crise moral e política da aristocracia, a corrupção generalizada do Estado, o compromisso das instituições, particularmente do poder judiciário, com os interesses dos ricos e a falência das prisões.

Nekhliúdov foi um idealista durante a juventude. Teve contato com a literatura de reformadores sociais europeus e identificava a propriedade privada das terras como fonte original das desigualdades. Apaixona-se quando estudante pela jovem e bela Katiucha, afilhada adotada por suas tias, durante uma visita por casa de campo da família. Num lapso de egoísmo e brutalidade, força relação sexual com a camponesa e depois a abandona para seguir alistamento no exército. Quando chega à maturidade, esquece seu amor pueril de juventude e passa a viver conforme as expectativas de sua classe: indiferente à brutal desigualdade social, extraindo o máximo de prazer na vida de ócio, amores vulgares, eventos dentro do meio nobre. A formosa Katiucha engravida, fica incapaz para o trabalho, é abandonada por todos: seu filho com Nekhliúdov morre logo após o parto e a jovem vai decaindo por todos os escalões sociais. Os homens assediam-na com violência nas casas onde ela consegue trabalho como empregada doméstica. Após reagir a mais um ataque masculino, é expulsa de seu último trabalho, não restando outra opção que a prostituição.

Convocado para o trabalho de jurado em uma corte penal, Nekhliúdov reencontra Katiucha no banco dos réus, acusada de matar um cliente da casa de prostituição. O enredo tem aqui o seu ponto de partida: a condenação da prostituta aos trabalhos forçados na Sibéria é reconhecida pelo príncipe como grave injustiça. Injusta pena diante do relapso dos réus e dos juizes que deliberam sobre a vida dos pobres sem qualquer atenção, indiferentes. E injusta pena especialmente pelo fato do assédio de Nekhliúdov durante a juventude ter significado o início do triste fim de Katiucha.

A consciência política de Nekhliúdov

Conforme o príncipe Nekhliúdov mobiliza-se para reverter a sentença de sua antiga namorada, vai se afastando cada vez mais de sua posição social e altera gradualmente sua percepção política. A personagem ocupa um lugar social privilegiado para visualizar o Estado e a classe dirigente Russa: sua condição de nobre faz com que tenha acesso fácil aos magistrados, promotores, chefes de repartições policiais, oficiais ligados às funções administrativas do Estado. Na medida em que entrevista diversos personagens ligados à burocracia oficial vai, gradativamente, percebendo a dimensão meramente ideológica ou meramente formalista dos discursos que sustentam a legitimidade do poder político. Esta dimensão ideológica é bastante explícita em algumas falas de Nekhliúdov: em certa passagem do livro, numa discussão política bastante áspera com um cunhado – membro orgânico da classe aristocrática - conclui que a finalidade dos tribunais é manter a estabilidade econômica dos ricos e que, se os fins da justiça penal fossem de fato promover justiça, deveriam fechar todas as prisões.

Vale frisar: as críticas sociais partem do ponto de vista de um nobre que se solidariza com a opressão econômica da maioria popular e particularmente com os de pior sorte que acabam na prisão. Identificamos um duplo significado do conteúdo de classes nas reflexões de Nekhliúdov. Por vezes as críticas apresentam um sentido essencialmente burguês, particularmente no que se refere à crise moral e ideológica da nobreza frente a um mundo que pressiona por modernização. O príncipe passa a ver os seus iguais com um misto de cansaço e desdém, destacando a inadequação da cultura de parcelas da classe dominante àquela realidade histórica. No sentido de parecer mais ilustrada do que é, a aristocracia conversa em francês e deixa-se influenciar pelo que parece, aos olhos do príncipe, modismos superficiais, como a religião espírita. A classe em seu conjunto vê na luta de Nekhliúdov em reverter a injustiça cometida contra Katiucha como uma anedota a ser contada durante conversa de salão: seus pares mostram-se ocasionalmente e apenas nas aparências indignados com a prisão de inocentes, a fome e miséria de camponeses e mujiques contrastando com a luxúria e o ócio de poucos aristocratas. O “mal-estar” de Nekhuliúdov diante de sua condição social reflete a derrocada moral da nobreza, a emergência de valores burgueses (maior igualdade formal, racionalismo, luta por mudanças institucionais). Em passagens destinadas à retratar jantares ou encontros sociais reunindo a elite econômica, o livro de Tolstói lembra literatura burguesa de outros escritores do final do séc. XIX como Eça de Queiroz, Balzac e, aqui no Brasil, Machado de Assis.

Entretanto, a gravidade do fosse social e a vivência do príncipe (e do próprio Tolstói) junto aos elementos mais marginalizados daquele sociedade torna a percepção política do protagonista associável ao socialismo. Esta seria uma segunda dimensão das críticas sociais de Ressurreição.

Socialismo Utópico

Há uma passagem bastante interessante do livro que remete às preocupações do socialismo utópico do séc. XIX. O príncipe decide abrir mão de suas terras para os camponeses – constata que as famílias passam fome e trabalham até a exaustão para atender ao regime de trabalho imposto por um administrador que gere seu domínio como carrasco. Opta por mudar aquela realidade radicalmente. Numa assembléia organizada para discutir a forma como as terras seriam passadas às mãos dos trabalhadores, uma série de questionamentos vêm à cabeça de Nekhliúdov: como garantir que a co-propriedade entre as diversas famílias não implique em diferente usufruto do espaço (desde que algumas parcelas da terra são mais rentáveis do que outras) ou na compra e venda dos lotes de forma a criar nova situação de concentração fundiária; como fazer com que todos trabalhem e recebam de forma proporcional ao seu esforço, sem a exploração do homem pelo homem; e, o que é bastante explorado no enredo, como vencer a desconfiança e o medo dos camponeses, habituados desde sempre à forma servil de produção.

O aspecto utópico deste socialismo é caracterizado por Marx quando coloca que as mudanças históricas das relações de produção se dão a partir da ação revolucionária de uma classe em luta. O reformismo associado à política de Nekhliúdov encontra seus limites na medida em que desconsidera a ação independente protagonizada pelos oprimidos como condição para a viabilização de uma forma alternativa de produção. O príncipe até vê com certa simpatia alguns dos revolucionários do Narodniks – “populistas” russos. Reconhece em alguns deles sinceridade e legitimidade em sua luta contra a exclusão econômica e a opressão política. Assim como alguns revolucionários de seu tempo, também identifica nas instituições políticas e judiciárias e na propriedade privada da terra fonte da desiqualdade e exploração entre os homens. Porém, o prícipe situa toda iniquidade que tem contato a certo plano metafísico e individual. O homem, genericamente considerado, deixara de perceber ser obrigado a tratar seus semelhantes com amor. O prícipe entende que a falta de amor decorre da burocratização ou, nas palavras dele, do distanciamento dos homens entre si, do seu tratamento como “coisas”.


Sínteses

Vamos transcrever um trecho longo, porém bastante expressivo: ele retrata uma espécie de “síntese política” da consciência de Nekhluilov ao final de sua jornada. Serve também como fechamento desta resenha.

Do ponto de vista formal, destacamos aqui beleza com que Tolstoi consegue traduzir o fluxo de pensamento do personagem de forma a retratar de forma sutil como o prícipe reage aos seus pensamentos. Do ponto de vista político, a síntese do príncipe, com suas contradições, sinaliza ainda hoje alguma inquietação anticapitalista. Daí a pertinência de Ressurreição e Tolstói, cem anos depois.


“Se fosse formulado o problema psicológico: como fazer para que pessoas da nossa época, pessoas cristãs, humanas, simples e boas pratiquem maldades mais terríveis sem sentirem-se culpadas, só haveria uma solução possível – seria preciso que se fizesse exatamente como se faz agora, seria preciso que tais pessoas fossem governadores, diretores, oficiais, policiais, ou seja, que em primeiro lugar estivessem convencidas de que existe um trabalho chamado serviço do Estado, no qual é possível tratar as pessoas como coisas, sem relações fraternas e humanas com elas, e em segundo lugar que essas mesmas pessoas do serviço do Estado estivessem unidas de tal forma que a responsabilidade pelo resultado de suas ações para as outras pessoas não recaísse em ninguém isoladamente. Fora de tais condições, não existe possibilidade em nossa época de cumprir tarefas tão horríveis como as que eu vi hoje [Nekhliúdov refere-se ao tratamento dado por agentes penitenciários aos condenados transportados em condições deploráveis aos trabalhos forçados na Sibéria]. A questão toda reside no fato de as pessoas pensarem que existem situações em que se pode tratar um ser humano sem amor, mas tais situações não existem. Pode-se tratar as coisas sem amor: pode-se cortar uma árvore, fazer tijolos, forjar o ferro sem amor; mas é impossível tratar as pessoas sem amor assim como é impossível lidar com as abelhas sem cuidado. Tal é a peculiaridade das abelhas. Se começarmos a tratá-las sem cuidado, causaremos dano a elas e a nós mesmos. O mesmo se passa com as pessoas. (...) Sim, sim, é assim” pensou Nekhliúdov. “Isso está bem, está bem”! repetiu consigo mesmo, experimentando um prazer duplo – o frescor depois do calor torturante e a consciência de ter alcançado um alto grau de clareza numa questão que já o preocupava desde muito tempo”.







[1] Prefácio Rubens Figueiredo.
[2] Ibdem.