quarta-feira, 30 de março de 2011

"Carlos, a Face Oculta de Marighela" - Edson da Silva Júnior

Resenha #21 – Carlos, A Face Oculta de Marighella – Edson Teixeira da Silva Júnior – Ed. Expressão Popular





O sentido da Face Oculta

A biografia de Carlos Marighela é também uma dissertação de mestrado de História Social. Seu objeto é a análise da trajetória pessoal e militante de Carlos Marighela, destacando as formas como sua personalidade (particularmente a sua sensibilidade no trato com as pessoas e sua impetuosidade) vão ter implicações nos desdobramentos políticos relacionados ao movimento comunista brasileiro do séc. XX., especificamente o PCB e a ALN.

A ideia da “face oculta”, aqui, refere-se a uma preocupação que perpassa toda a biografia: o esforço por parte do autor da biografia(esforço até certo ponto militante) de ir desconstruindo toda imagem criada pela ditadura militar sobre a personagem.

Carlos Marighela, o “inimigo número um da ditadura militar”, foi retratado pelo regime e órgãos de imprensa da época (como não poderia deixar de ser) como um terrorista, um militante “radical e profissional”, sem qualquer compaixão pelo ser humano e altamente perigoso. Não é preciso aqui destacar os papeis dos aparelhos de propaganda ideológica durante o regime militar brasileiro nem é muito difícil compreender o que está por trás da forma como o regime buscou caracterizar Marighela. O personagem sofrera em 1964 um atentado por policiais em plena sessão de cinema: oficiais invadem uma sala, atiram em Carlos Marighela, este sobrevive, resiste e é levado preso. Sua prisão e o relato da tentativa de assassinato pela repressão deram origem ao relato “Por que resisti a prisão”, um documento político voltado à mobilizar a luta contra o regime. Assim sendo, todo esforço em criar a face do assassino cruel e desumano sinaliza alguma preocupação das autoridades acerca das possibilidades de Marigela credenciar-se como uma liderança ou mesmo um herói.

Já a face oculta, trabalhada pela dissertação de Edson Teixeira, aborda os traços de afetuosidade, coragem pessoal e valores políticos que caracterizam Marighela. O oposto do que fora pintado pelos militares, portanto. Para tanto, há o esforço em descrever aspectos de sua vida familiar, relatos de parentes acerca da infância e adolescência do militante revolucionário e algumas históricas que vão sinalizando aspectos da personalidade individual.

Vida Privada

Marighela gostava de samba e futebol. Era mulato, baiano e lutava capoeira. Tinha 1,90 de altura e porte físico de atleta. Em reuniões do partido comunista, particularmente em momentos de tensão, fazia intervenções em versos. Tinha um gênio impetuoso, intepestivo, assumia riscos excessivos: em plena ditadura militar, procurado pela polícia, ao presenciar cena de violência policial junto a operários, reúne os trabalhadores após a dispersão da repressão e em praça pública faz discurso político contra o regime.

Outros dois traços marcantes da personalidade individual de Marighela: humildade radical no trato com os demais militantes, mesmo sendo o respeitado dirigente do PCB e ALN; bravura, tendo como exemplos a sua resistência à prisão e relatos que contam que, mesmo nos momentos de tortura, Marighela resistia aos socos aos algozes.

Um pequeno esclarecimento sobre a questão da coragem de Carlos Marighela. Não nos interessa, aqui, análises acerca da valentia individual de um militante de forma a fazer juízos de valor acerca de seu caráter ou de sua moral. Vale lembrar que tal viés de interpretação é no mínimo empobrecedor ao não levar em consideração, por exemplo, as contingências que determinam distintos momentos da consciência política individual – um militante aguerrido hoje pode perfeitamente ser amanhã um gestor qualificado do capitalismo. Não há espaço para juízos morais definitivos das personalidades individuais sem grandes riscos de maniqueísmos. O que nos interessa neste ponto da valentia de Marighela, e esta também parece ser a intenção do autor, é mostrar como aquela bravura sinaliza certa dose de confiança pessoal sobre as políticas defendidas pelos comunistas, confiança na vitória da resistência contra a ditadura e pela construção do socialismo. Algo que diz respeito a forma como os comunistas brasileiros viam o mundo e interpretavam a realidade política do país.

O Novo Homem

A biografia de Carlos Marigela pode servir como um ponto de partida para aqueles que pretendem conhecer um pouco sobre a história não só da personagem mas dos instrumentos de luta (PCB e ALN) correspondentes à trajetória de Marighela.

Outra possibilidade da obra é a de servir como certa fonte de inspiração e reflexão àqueles que militam e/ou têm expectativas acerca da transformação radical do mundo. A inspiração aqui se refere aos exemplos da vida pessoal de Carlos Marighela. (Evidentemente, a inspiração não deve implicar em certa idolatria que corrobora para personalismo político cuja conseqüência quase sempre é autoritarismo político).

Carlos Marighela aparenta possuir forte capacidade de empatia (colocar-se no lugar do outro) e isso inspira na medida em que nos faz crer ser a empatia certa condição para os revolucionários em sua luta contra o capitalismo. Não é possível solidarizar-se sinceramente com a luta dos trabalhadores sem levar em consideração as expectativas e exigências da classe que vive do trabalho.

Ademais, a experiência de militar e lutar por um novo tipo de sociedade – cujas conseqüências são também a construção de novos valores pessoais – exigem alguns compromissos individuais. Sob o capitalismo, naturalizamos valores e práticas associadas de maneira mais ou menos direta à exploração e alienação do trabalho: opressões de gênero, homofobia, individualismo, competitividade, indiferença em relação ao sofrimento alheio, etc. Os compromissos individuais devem partir de uma certa vigilância pessoal que cada militante deve ter acerca daquelas naturalizações.

A vigilância pessoal decorre da percepção crítica do mundo, do questionar as naturalizações. Porém, apenas a vigilância de consciência e exercícios de autocrítica podem não ser suficientes. Carlos Marighela, quando resolve uma prova de matemática em versos de poesia, ou quando divide tarefas de trabalho doméstico com sua companheira para além das divisões tradicionais de gênero ou, ainda, quando dedica sua vida e morre pela luta pelo socialismo não apenas pensa mas busca concretamente vivenciar e praticar os novos valores que indicam um mundo para além do capital.

Balanços inconclusos

Um último tópico que acreditamos que poderia ter sido mais trabalhado no estudo – a título, portanto, de crítica construtiva. Trata-se do debate sobre os motivos do fracasso da luta armada e mais especificamente do assassinato de Carlos Marighela. A luta armada ocorre durante um ciclo de expansão da economia – correspondente ao "milagre econômico" – que dificulta as tentativas de criar formas de adesão popular à luta armada. Num contexto em que o Brasil está próximo do pleno emprego e com o incremento das relações de consumo (decorrentes da inclusão das massas ao trabalho e à ascensão de classe média nos centros urbanos) a situação econômica contribui para o isolamento da luta contra o regime – evidentemente, o isolamento decorre igualmente da forte repressão do estado e de todo seu aparato repressivo e ideológico e de deficiências teóricas dos movimentos de resistência que tencionam promover as mudanças através de experiências estrangeiras sem as mediações que traduzam os desafios dos socialistas para a realidade brasileira. As relações entre os ciclos de expansão e crise do capital e as distintas formas de luta política seria um bom ponto de partida para novas reflexões sobre o sentido da luta armada no Brasil.

sexta-feira, 25 de março de 2011

"Um Governo de esquerda Para Todos" - Paul Singer

Resenha Livro #20 – “Um Governo de Esquerda Para Todos” – Paul Singer Editora Brasiliense




O Triste Fim do Programa Democrático Popular

“Um Governo de Esquerda Para Todos” foi uma boa opção de título para o livro de Paul Singer. Trata-se de um relato da experiência do economista como Secretário do Planejamento do governo municipal de Luíza Erundina. Entre 1989 e 1992, a maior cidade do país foi governada pelo Partido dos Trabalhadores, naquele momento, a maior expressão da organização dos trabalhadores decorrente do ascenso das lutas sociais dos anos 1980.

“Um governo de esquerda para todos” é uma frase gritantemente contraditória. A esquerda nos governos, quando não acompanhada por amplas mobilizações de massa que viabilizem uma ruptura a partir de baixo, é sempre fonte de desconfianças. As diversas experiências históricas, inauguradas pela social democracia alemã, só reforçam a tese de que, na melhor das hipóteses, a esquerda, quando governa por meio do estado burguês, terá necessariamente de fazer graves concessões. (Nosso desafio é analisar os casos individualmente para se pensar e em que medida a organização e as lutas independentes dos trabalhadores e do povo avançam ou recuam durante aqueles governos).

“Um governo de esquerda para todos”, além disso, apresenta uma contradição maior, que vai perpassar todo o ensaio de Paul Singer. Quando assume o controle do governo municipal, pela via democrática formal, a prefeitura do PT assume as regras do jogo da democracia burguesa, o que significa admitir a responsabilidade de promover um governo “para todos”, pobres e ricos, patrões e operários, capital e trabalho.

A exigência da conciliação vai criando todo tipo de embaraços, particularmente dentro das relações entre o PT e o governo. A militância do PT exigindo as mudanças radicais correspondentes ao seu programa de radicalização da democracia burguesa e/ou socialismo, a depender mesmo das diversas forças políticas internas do partido em embate. E a gestão municipal justificando-se com a exposição de planilhas, dados numéricos e exigências legais que, sob qualquer hipótese, podem ser violadas sob a pena do “colapso”.

As raízes da contradição do Governo Popular

Os conflitos entre as exigências da militância e da governabilidade decorrem de maneira geral da contradição de um governo de esquerda com compromissos concomitantes com o capital e trabalho.

Decorrem igualmente de estratégia política que entende haver possibilidade de se acumular forças para o trabalho através do exercício da gestão dos poderes públicos combinado com a “democratização” no acesso à política (Neste último caso, vale colocar que os foros públicos, o orçamento participativo e as assembléias nos bairros, propostas pelo governo de Erundina foram sendo derrotadas um a um por exigências econômicas e jurídicas, falta de recursos, pressão dos empresários, manobras da oposição no legislativo, vetos das iniciativas pelo judiciário, etc.).

É possível identificar, finalmente, certo fetiche acerca dos aparelhos ideológicos, a prefeitura, por parte de ambas as partes, o partido e a gestão de Luiza Erundina. A atuação dentro da gestão é tumultuada por diversas mediações determinadas historicamente como forma de frustrar políticas que subvertam a lógica dominante das cidades sob o capitalismo: forte exclusão social, diferenças brutais nos acessos e na qualidade dos serviços prestados pelas classes, arrocho salarial dos trabalhadores do município enquanto empresários não têm sua margem de lucro afetadas pelas políticas do governo “de esquerda”, etc.

As normas e as exigências institucionais comprem um papel literal de conservação.

A ausência de mudanças e a contradição do “governo de todos” geram frustração em ambas as partes: “os companheiros do PT estavam frustrados porque, depois de vários meses da ‘tomada do poder’ municipal, aparentemente nada tinha mudado – no caso do transporte coletivo, a tarifa continuava sendo aumentada e a superlotação dos ônibus tinha ainda piorado mais. Os membros do governo por sua vez estavam frustrados não só porque suas próprias expectativas não se haviam realizado mas também porque o conhecimento precioso que estavam adquirindo sobre o lado de dentro da máquina governamental não despertava o interesse dos companheiros do partido(...)”.

Neste último ponto, Singer desaponta-se com o fato dos demais militantes não considerarem as possibilidades de aprendizagem nem as dificuldades da gestão. Ao longo de todo ensaio, há a defesa pessoal do governo Erundina, preserva-se sempre a figura da prefeita, mesmo onde o autor reconhece haver erros da gestão, de maneira que, no texto, Paul Singer parece debater com sinceridade e honestidade política. Igualmente, não temos acordo com sua política, com sua proposta de “democratização da democracia burguesa” por meio de atuações “participativas” dentro de uma estratégia de governo para “todos”. Esta é a política que tem como vocação administrar os conflitos de classe nos momentos de ascenso e maior complexidade das lutas, diz respeito à ação de gestores qualificados técnica e politicamente para atuar nos ciclos de crise do capitalismo.

O programa democrático popular, sob o qual o governo de Erundina orientava-se, ainda hoje tem peso majoritário dentro do campo de esquerda (democrática e socialista) do país. A leitura do relato de Paul Singer é uma boa provocação sobre o sentido do programa democrático popular num momento em que o governo do PT em seus 12 anos na gestão do país sequer resultou numa redução significativa da desigualdade social, elemento mínimo para se reivindicar um governo como de esquerda.

Citação Interessante

“Durante toda a minha vida de militante de esquerda fiquei intrigado pelo fato de governos eleitos sobre plataformas de mudanças profundas quase sempre acabarem realizando muito menos do que deles se espera. Refiro-me obviamente a governos democráticos, eleitos livremente e governando dentro da legalidade constitucional. Nunca me convenci do argumento frequentemente utilizado por críticos de que os governantes, uma vez instalados “no poder”, simplesmente esquecem as promessas feitas, se é que alguma vez tiveram intenção de cumpri-las. Há até um dito cínico a respeito. Governar seria como tocar violino: toma-se o instrumento com a esquerda mas ele deve ser tocado com a direita”

terça-feira, 22 de março de 2011

Artigo Max Weber e o Direito

Artigo direito, política e poder #1 - Alguns elementos da discussão weberiana acerca do direito.




Max Weber é sociólogo alemão reconhecido por seus estudos acerca da conformação das instituições políticas formais, a importância da burocracia e a crescente racionalização da política e do direito como elementos constitutivos da modernidade. O projeto weberiano refere-se ao esforço de consolidar instituições políticas eficientes frente ao incremento das relações comerciais e a generalização do capitalismo em nível mundial. A própria gênese do capitalismo é fonte de preocupação de Max Weber em “A Ética Protestante”: sua proposta de interpretação das raízes ou dos elementos gerais que criam condições para o desenvolvimento do capitalismo dizem respeito à cultura de maneira geral e à religião protestante de maneira mais específica. Em "Economia e Sociedade", Max Weber destaca estudo sobre os aparelhos de poder, as relações entre estado e economia e a conformação histórica do direito. Tivemos acesso apenas ao 'Ética Protestante' e poucos capítulos de 'Economia e Sociedade'. Este artigo, por suposto bastante insuficiente, deve abordar alguns elementos tratados por Weber sobre o direito em seu último livro e talvez mais importante livro (Economia e Sociedade), lançado em 1922, dois anos após a sua morte.

A Justiça Leiga

Weber remete ao problema da conformação do direito na modernidade, sua especialização e suas relações gerais com o desenvolvimento histórico: as novas exigências econômicas e sociais genericamente decorrentes do desenvolvimento histórico do capitalismo. Dentre as tendências, identificamos a questão da especialização do direito, “a crescente tendência a considerar o direito vigente um aparato técnico com conteúdo desprovido de toda santidade racional”, corroborando para um “desconhecimento crescente” do direito por parte dos leigos. Leigos, aqui, são entendidos por todos aqueles de alguma forma afetados pelo direito, porém não sendo operadores do direito, propriamente ditos. A justiça leiga relaciona-se com o direito especializado de forma a existir fontes de tensão, genericamente decorrentes de diferentes expectativas acerca das finalidades e da forma como deve conformar-se o direito e a justiça. Weber exemplifica tensão entre a justiça leiga e a justiça dos especialista a partir do problema do direito penal e da participação de jurados nas deliberações dos conflitos. “Uma justiça de cádi diretamente irracional é atualmente praticada, em grande extenção, na justiça penal, em forma de justiça “popular” dos jurados. Corresponde ao sentimento dos leigos não instruídos juridicamente, a quem aborrece o formalismo do direito em cada novo caso concreto, e além disso aos instintos das classes não-privilegiadas, que exigem justiça material. Mas precisamente contra a peculiaridade da justiça de jurados, condicionada por esse caráter de justiça relativamente popular, há ataques vindos de dois lados”. Weber sinaliza como fonte daquela tensão uma oposição anterior, referente às exigências do princípio formal e o material da justiça.

Tendências Estamentais do Direito Moderno.

O projeto weberiano corresponde aos desafios dos aparelhos institucionais europeus frente às novas exigências da economia e sociedade na modernidade. Esta é uma questão que perpassa de maneira geral toda sua obra: o problema da burocracia, as relações entre o desenvolvimento do capitalismo e aspectos da cultura e da religião, entre outros. Particularmente no que se refere ao direito, o seu desenvolvimento na modernidade não significa a total eliminação de aspectos do direito pré-modernos, referentes, neste ponto, às tendências estamentais (que interpretamos aqui como “pré-modernas”) do direito na modernidade. Dentre estas tendências, Weber exemplifica em passagem que discute o direito mercantil. “O direito mercantil, na medida em que é pessoalmente delimitado, é direito de classe, e não direito estamental. Mas, sem dúvida, esta oposição diante do passado é apenas relativa”. Além das novas delimitações técnicas do direito, decorrentes do incremento das relações comerciais associadas à generalização do capitalismo, sobrevivem “particularidades jurídicas delimitadas por critérios puramente estamentais, com sua extrema importância, qualitativa ou quantitativamente”. As relações comerciais remetiam então a relações de confiança pessoal. Outrossim, finaliza Weber, “a delimitação da esfera de vigência dos direitos profissionais particulares – desde que não estava ligada à admissão a uma união – era quase sempre tratada, de modo puramente formal, pela aquisição de uma licença ou privilégio”. Vale sinalizar ainda referências que Weber faz ao direito anglo-saxão enquanto direito carismático, subjetivistas e patriarcal: todos esses elementos remetem àquelas tendências pré-modernas do direito.


Sínteses

Vale uma reflexão acerca dos significados mais gerais da formalização do direito e seu diálogo com problemas da atualidade. Além da formalização remeter a embates decorrentes de expectativas sociais da promoção de justiça, o fenômeno corrobora para uma situação contraditória. Vamos citar uma passagem que nos pareceu bastante instigante, no sentido de oferecer algumas reflexões importantes.
“Em todo caso, o desenvolvimento das qualidades formais do direito exibe traços estranhamente contraditórios. O direito, rigorosamente formalista e limitado ao que é manifesto, na medida em que o exige a segurança das relações comerciais, é não-formal no interesse da lealdade comercial, na medida em que é condicionado pela interpretação lógica do sentido da vontade das partes ou dos bons costumes comerciais. (....) Além disso, é forçado a tomar um rumo antiformal por todos aqueles poderes que exigem da prática jurídica algo diverso de um meio da luta de interesses pacífica”.
A passagem expressa, na nossa interpretação, a forma como o direito decorre de certas exigências da realidade, seja por um lado, no sentido de formalização para viabilizar segurança nas trocas econômicas, seja no sentido de flexibilização para viabilizar justiça material ou aquilo que Webber chama de “mínimo ético”. Por suposto, a contradição aqui, expressa no direito, decorre de contradições inscritas na realidade. A antinomia entre direito e economia, particularmente, nos parece ser uma fonte de preocupação de José Eduardo Faria em sua análise do direito e economia da realidade brasileira. Finalmente, a oposição pode assumir diferentes sentidos a partir das distintas filiações teórico-metodológicas daqueles que se desafiam pensar sobre o problema do direito na modernidade, seu desenvolvimento histórico e suas relações com economia, política e sociedade.

Algumas problematizações

Textos bons nem sempre trazem respostas satisfatórias, mas criam condições para a formulação de boas perguntas. Nesse sentido, as passagens que estudamos de Economia e Sociedade pareceram-nos excelentes: Weber é um ideólogo e um quadro da classe burguesa européia, seu pensamento, na nossa opinião, vai estar sempre de alguma forma relacionado às exigências políticas da burguesia enquanto classe dominante do capitalismo. Ainda sendo autor cujas referencias e autores expressem políticas com as quais não temos acordo – desde que o desafio weberiano é da gestão eficaz do capitalismo ao invés de sua superação, vamos trazer algumas perguntas decorrentes de sua leitura.

1- Qual é o sentido da idéia de especialização do direito?
2- Em que medida a especialização dialoga na atualidade com certa tendência mais geral do conhecimento surgir como algo fragmentado, de maneira a sinalizar o acerto das previsões do Weber para além mesmo do próprio direito?
3- Com relação ao formalismo, qual é a sua relação com o desenvolvimento histórico, particularmente no que se refere aos ciclos de expansão e crise do capitalismo? Daí as relações entre revolução francesa e a exegese napoleônica ou reestruturação produtiva e demanda por maiores flexibilizações das leis – reforma do direito do trabalho, seguridade social, etc.?
4- O que está por trás das tensões entre os leigos e os especialistas do direito? Será possível que estes dois campos de alguma forma coincidam algum dia?

domingo, 13 de março de 2011

"O Quinze" - Rachel de Queiroz

Resenha Livro #19 – “O Quinze” – Rachel de Queiroz Ed. Livraria José Olympio



Sobre a obra

Chegou até nossas mãos uma edição bastante gasta do livro “O Quinze” : trata-se do 1º romance da escritora cearense Rachel de Queiroz. A obra foi escrita em 1930 – a primeira edição foi bancada pela própria autora, então com 20 poucos anos, tendo sido impressa no “Estabelecimento Gráfico Urânia” de Fortaleza.

A história sobre dramas pessoas e relações afetivas de personagens que passam pela experiência de grande seca no nordeste repercutiu logo após seu lançamento. A nossa edição data de 1966 e corresponde já à 7ª publicação da obra. O fato importante aqui é que, ao contrário de escritores como Machado de Assis que possuem uma evolução ou desenvolvimento própria e particular, Rachel, já no seu primeiro livro, lança as bases de seu estilo literário. O Quinze marcaria de certa forma toda a produção subseqüente da escritora, na sua primeira obra já se demarcam suas preocupações com o universo psicológico daqueles que são afetados pela dura situação social da seca no campo e da falta de trabalho na cidade. Diferente, portanto, de Machado de Assis, que nos primeiros romances encontra-se mais influenciado pelo romantismo e que, apenas com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, lançaria uma nova proposta de arte que caracteriza sua obra: crítica de costumes e tiradas filosóficas correspondentes ao universo cultural da classe dominante brasileira do séc. XIX.

Voltando à Rachel de Queiroz e “O Quinze”. O romance não tem um protagonista, um personagem particular sobre o qual uma história é contada. O texto inova ao contar de maneira dinâmica a história de vida de distintos personagens de diferentes classes sociais cujas vidas vão se aproximando e se afastando de acordo com uma circunstância comum: todos os personagens vivem momento em que uma grande seca assola o nordeste e as graves condições sociais dos camponeses e pequenos proprietários de terra de uma forma geral passa a ser o tema da história. Algo particular no romance “O Quinze” (e o que, na nossa opinião, faz dele um romance bastante memorável) é a capacidade da autora relatar as emoções humanas e, particularmente, ações de solidariedade envolvendo personagens que vivenciam dramas comuns. Conceição, jovem professora com gosto pela leitura, envolve-se num grupo voluntário que presta assistência aos retirantes da seca. O vaqueiro Chico Bento, que foge da seca junto a sua família numa jornada a pé por vastos quilômetros debaixo de sol quente, compartilha o pouco de comida que tem com um grupo de desconhecidos. Os desconhecidos, camponeses e imigrantes como Chico Bento, passam fome e se preparam para comer a carne podre de cavalo doente e agonizante.

Comentários Políticos

A capacidade de Rachel de Queiroz dar um caráter humanizante aos personagens que eventualmente poderiam ser brutalizados pelas péssimas condições sociais tem a ver com uma percepção mais qualificada acerca das classes não possuidoras. Os camponeses, os trabalhadores livres pobres e os pequenos proprietários são, em “O Quinze”, dotados de capacidade de compreender as coisas, visualizar eventualmente contradições políticas que repercutem em suas más condições de vida.

Não encontramos certa percepção estereotipada da pobreza como vemos no romance naturalista “O Cortiço” de Aluízio de Azevedo. Os modernistas da 2ª Geração, preocupados igualmente em analisar a situação social, conseguem ir mais além e tratar dos sentimentos humanos e da complexidade do homem excluído socialmente. Graciliano Ramos foi muito capaz, nesse sentido. Em “O Quinze”, várias passagens revelam a forma como os humildes tem algum potencial de serem protagonistas políticos. Um exemplo deste último caso é do próprio vaqueiro Chico Bento, homem extremamente simples e sem educação formal, que se revolta quando tenta obter passagens doadas pelo governo para os retirantes dirigirem-se à capital em busca de auxílio. As passagens que deveriam ser doadas acabam sendo vendidas a certo redistribuidor oportunista. Bento revolta-se e sua revolta traduz-se em embriaguez e resignação. Igualmente, os demais personagens vivem o grave problema da seca e tocam suas vidas, procuram o amor, o trabalho e formas de obter felicidade. Isso gera no leitor empatia, a sensação de projetar-se no outro. Para os socialistas, a empatia com o povo é condição para ajudar torná-lo protagonista da história. Fazer com que a revolta não vire consentimento, mas revolução.

sexta-feira, 11 de março de 2011

"O Debate Sobre a Centralidade do Trabalho" - José Organista

Resenha Livro #18 “O Debate Sobre a Centralidade do Trabalho” – José Henrique Carvalho Organista – Ed. Expressão Popular





A série de livros “Trabalho e Emancipação” da Expressão Popular contém pesquisas acadêmicas e textos clássicos que discutem a conformação do trabalho sob o capitalismo e as potencialidades do labor enquanto parte da luta contra o capital. Identificamos aqui uma dupla dimensão do trabalho: por um lado, o trabalho abstrato, historicamente determinado, pensado enquanto valor de troca e alienante; por outro lado, o trabalho concreto, que precede e vai além da configuração do trabalho sob a lógica da heterogestão produtiva, pensado enquanto valor de uso e com potencial revolucionário.

Esta dupla dimensão do trabalho, ao não ser percebida ou claramente distinguida, acabou sendo fonte de confusões teóricas, particularmente quando se discute o problema do trabalho nas sociedades capitalistas de hoje. Identificar as imprecisões das teorias sociais que confundem “trabalho” e “emprego” e decretam, de distintas formas “o fim do trabalho” é o objetivo do estudo “O Debate Sobre a Centralidade do Trabalho”.

Para cumprir esta tarefa, o autor sistematiza os principais argumentos daqueles que pensam, sob diferentes maneiras, o fim da centralidade do trabalho, particularmente a partir da reestruturação produtiva dos últimos 30 anos.
Os fenômenos da flexibilização das relações de trabalho, o cooperativismo, a informalidade e o desemprego estrutural vão sendo interpretados pelos diferentes autores, ora como sinal do “fim do trabalho”, ora questionando a atualidade da “classe trabalhadora”. De maneira geral, cria-se certo senso comum de que existiria hoje tendência da supressão do labor produtivo pela “técnica”, pelo desenvolvimento tecnológico.

Não é difícil identificar a forma como aqueles prognósticos acerca da configuração do mundo do trabalho pós reestruturação produtiva dialoga com a ideologia neoliberal do “fim da história” e das utopias. Este parece ser especificamente o caso dos autores André Gorz (capítulo 1 – “Adeus ao proletariado e a utopia de uma sociedade do tempo livre”), Clauss Offe (capítulo 2- “Questionamentos sobre categoria trabalho) e mesmo Habermas (Capítulo 4 – “Linguagem, Trabalho e Interação”).

O que todos estes autores têm em comum é aquela confusão conceitual derivada da dupla dimensão do trabalho, ora como valor de uso ora como valor de troca, além da apreensão dos fenômenos relacionados ao trabalho apenas no que se refere a sua forma na história. O trabalho, por suposto, encontra-se fragmentado e existe de fato uma nova organização diferente do modelo fordista. Isto, igualmente, não implicou na supressão da exploração do trabalho. Pelo contrário: a redução dos números de trabalhadores empregados, por exemplo, opera dentro da lógica do capital desde que a criação de exército de reserva é a melhor forma de imobilizar os trabalhadores. As redes informais de trabalho não existem separadamente ou à margem da produção de mercadorias no capitalismo. A fragmentação do trabalho, de maneira geral, diz respeito às novas exigências do capitalismo dentro de seus ciclos de expansão e crise.

Habermas, o Social Democrata.

Habermas é um dos autores desconstruídos pelo estudo de José Henrique Organista e pareceu-nos travar uma discussão mais profunda no que se refere às críticas ao trabalho. Habermas opõe o conflito entre classes, o embate entre capital e trabalho a uma alternativa arranjada através de uma nova interação “comunicativa” promovida por um estado de direito democrático. O conflito de classes teria sido “pacificado” pela intervenção do estado na economia a partir das reformas sociais a da entrada do proletariado no parlamento, de maneira que o estado de bem estar social inviabilizaria a possibilidade de se pensar numa identidade de classe na atualidade.

Como se sabe, a social democracia alemã não se credencia como modelo global das relações de trabalho, considerando-se o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo e, particularmente, o desmonte geral do welfare state pelo neoliberalismo. No que tange especificamente o problema da centralidade do trabalho, a intepretação habermasiana apóia-se na crença de que o desenvolvimento das forças produtivas e da tecnologia faria supostamente com que o capital não necessitasse do trabalho. Esta tese, por suposto, invalida a premisa de que, sob o capitalismo, o trabalho assume um caráter de exploração que não se encerra sob os marcos jurídicos ou formais, que possam ser regulamentados pelo direito, por exemplo. Mesmo a ilegalidade presente no comércio dos camelôs, lembra o autor do ensaio, opera dentro de uma lógica capitalista, promove a circulação de mercadorias e não se opõe a lógica de valorização do capital.

“Embora reconhecendo a heterogeneidade , a fragmentação e a complexidade que se efetivou no mundo do trabalho, (Ricardo) Antunes defende a possibilidade de uma efetiva emancipação humana do e pelo trabalho, posto que, se vivemos numa sociedade produtora de mercadorias, somente a classe-que-vive-do-trabalho pode se contrapor à lógica do capital e à sociedade produtora de mercadorias. (...)" Ainda segundo Ricardo Antunes, “a revolução de nossos dias é, desse modo, uma revolução no e do trabalho. É uma revolução no trabalho na medida em que deve necessariamente abolir o trabalho abstrato, o trabalho assalariado, a condição de sujeito-mercadoria, e instaurar uma sociedade fundada na auto-atividade humana, no trabalho concreto que gere coisas socialmente úteis, no trabalho emancipado. Mas é também uma revolução do trabalho, uma vez que encontra no amplo leque de indivíduos (homens e mulheres) que compreendem a classe trabalhadora, o sujeito coletivo capaz de impulsionar ações dotadas de um sentido emancipador”.

Não conseguiríamos pensar numa melhor síntese da atualidade da centralidade do trabalho, seja como forma de valorização do capital seja como fim revolucionário. A leitura do ensaio de José Henrique Carvalho Organista é uma ótima introdução e apresenta bons argumentos para fazer frente à ideologia do “fim do trabalho”.

quinta-feira, 10 de março de 2011

"Eros e a Civilização" - Hebert Marcuse

Resenha #17 Eros e Civilização – Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud



Considerações Preliminares

‘Eros e Civilização’ foi escrito em 1955, correspondendo ao 4º dos 10 grandes livros publicados em vida por Hebert Marcuse (1898 – 1979). O filósofo alemão está relacionado à Escola de Frankfurt e, no imaginário comum, remete ao conjunto de pensadores que influenciou as lutas de maio de 1968 na França.

De fato, Marcuse influenciou aqueles jovens ativistas. E muito do que aparece em ‘Eros e Civilização’ remete às inquietações daquele movimento. A discussão sobre o problema da sexualidade e sua vinculação às relações de poder e/ou arranjos sociais e históricos de dominação e controle; a crítica radical do trabalho alienado, explorando analiticamente os significados simbólicos e psicológicos da exploração e da condição humana em sociedades capitalistas; a sinalização de novas formas de resistência, envolvendo particularmente a crítica igualmente radical dos valores burgueses; enfim, tudo isso sinaliza preocupações semelhantes entre o movimento de maio de 1968 e o filósofo.

No posfácio político da obra, escrito em 1966, Marcuse já saúda os protestos estudantis norte-americanos contra as guerras imperialistas como uma nova etapa da luta. Cintando-o:

“Em defesa da vida: a frase tem um significado explosivo na sociedade afluente. Envolve não só o protesto contra a guerra e a carnificina neocoloniais, a queima de cartão de recrutamento, a luta pelos direitos
civis, mas também a recusa em falar a língua morta da afluência, em usar roupas limpas, desfrutar os inventos da afluência, submeter-se à educação para a afluência. A nova boemia, os beatniks e hipsters, os andarilhos da paz – todos esses “decadentes” passaram agora a ser aquilo que a decadência, provavelmente, sempre foi: pobre refúgio da humanidade difamada”.

O livro, segundo nossa interpretação do posfácio político, associa-se ao movimento de luta política, de “luta pela vida”. Eros, a propósito, designa um deus relacionado à beleza e ao amor sexual – ao longo do ensaio é tratado como sinônimo do “instinto de vida”. A luta pela vida, por sua vez, assume um significado de luta antisistêmica – luta contra o que Marcuse chama de “princípio da realidade” das sociedades repressivas. O instinto pela vida, hoje, passa a ser parte de uma estratégia geral de luta contra o capitalismo – a civilização em sua fase desenvolvida do ponto de vista da luta contra a escassez cria condições objetivas para a construção de uma sociedade igualitária baseada na socialização do trabalho e da política.

Finalmente, ‘Eros e a Civilização’ é um livro de filosofia que tem o objetivo de revisitar as ideias da psicanálise lançadas inicialmente por Freud, criticá-las, relacioná-las ao âmbito da sociedade de classes e destacar os aspectos ainda atuais das teses de Freud, confrontando-os com o revisionismo dos ‘neofreudianos’.

Marcuse parte de algumas categorias que são estranhas a um leitor que não conhece Freud. Logo no capítulo 2, Marcuse, provavelmente atento a tal fato, resgata e descreve didática e rapidamente conceitos da psicanálise – id, ego, superego, repressão, princípio de realidade. A esses termos, acresce outros, destinados a contemplar uma perspectiva mais ampla (que leva em consideração a história e os conflitos de classe), propondo alguns termos novos. “Mais Repressão”, a “restrição requerida pela dominação social” e “princípio de desempenho”, a “forma histórica do princípio de realidade”.

Seja como for, vale ponderar que a leitura deste ensaio de Marcuse nos pareceu bastante difícil. Com certeza, algumas discussões da obra escaparam-nos. Ainda assim, “Eros e Civilização” é um livro que vale ser lido: desafiar-se enfrentar o complexo tema da subjetividade humana, dos desejos libidinais e do impulso pela morte, da repressão moral e do problema da sexualidade no capitalismo cria melhores condições para, hoje, avaliarmos novas formas de lutar frente a uma compreensão mais elaborada da realidade e de suas contradições.

Marcuse interpreta Freud

O objetivo do ensaio é resgatar as ideias de Freud acerca do problema dos instintos humanos na civilização. O “mal estar da civilização” de Freud diz respeito às contradições supostamente insolúveis entre as exigências do instinto em oposição às exigências da vida em sociedade. Marcuse propõe-se, como indica o título, fazer uma interpretação filosófica de Freud. Isto significa que sua interpretação de Freud não remete a certa abordagem “terapêutica”, que irá circunscrever as possibilidades de reflexão lançadas pelo pai da psicanálise a um conjunto meramente instrumental de práticas cujo objeto exclusivo é atenuar o sofrimento e a dor do indivíduo egoísta, solitário e alienado. Esta interpretação filosófica cumpre, igualmente, a função de demarcar os limites e as possibilidades das ideias de Freud para a luta antisistêmica.

Os limites dizem respeito ao já conhecido ceticismo do pai da psicanálise com relação ao socialismo, ou, no que se refere à crítica marcusiana, à suposta inevitabilidade do “mal estar da civilização”. A naturalização do “mal estar da civilização” é oposta à adequação dos conflitos entre
desejos individuais e exigências da civilização, à história e aos conflitos de classe.

Vamos citar, nesse sentido, a crítica da teoria dos instintos.

'Contudo, na teoria de instintos, Freud não extrai quaisquer conclusões fundamentais, a partir da distinção histórica, atribuindo a ambos os níveis uma validade geral e igual. Para a sua metapsicologia não constitui fatos decisivo se as inibições são impostas pela escassez ou pela distribuição hierárquica da escassez, pela luta pela existência ou pelo interesse na dominação. E, com efeito, os dois fatores – o filogenético-biológico e o sociológico – cresceram juntos na história documentada da civilização. Mas a sua união desde há muito se tornou “inatural” – e o mesmo aconteceu à “modificação” opressiva do princípio do prazer pelo princípio da realidade. A sistemática negação, por Freud, da possibilidade de uma libertação essencial do primeiro implica o pressuposto de que a escassez é tão permanente quanto a dominação – uma hipótese que nos parece discutível'.

A noção de civilização em Freud passa a ser extrapolada por Marcuse. O viés marxista de sua reflexão filosófica sobre a psicanálise diz respeito, portanto, ao debate sobre as formas como se dão a repressão instintiva partindo do pressuposto de que a realidade pode/deve ser superada e em como uma sociedade pós-repressiva deveria se diferenciar da sociedade do capital.

As críticas ao revisionismo neofreudiano são, finalmente, objeto de um capítulo exclusivo do ensaio. E neste ponto, Marcuse busca retirar as possibilidades do pensamento de Freud, confrontando-o com a orientação de neofreudianos. De maneira geral, a psicanálise criticada por Marcuse corresponde àquela que tem compromissos exclusivos com a “cura” de pacientes. A abordagem terapêutica dos neofreudianos deve operar de forma a desconsiderar o problema dos controles repressivos forjados pelo Estado, família, trabalho alienado, etc.

“O analista e seu paciente compartilham dessa alienação, e como esta não se manifesta, usualmente, em qualquer sintoma neurótico, mas, pelo contrário, como timbre de ‘saúde mental’, não aparece na consciência revisionista [das idéias de Freud]”.

É interessante notar como, diante dos distintos pressupostos, a psicanálise freudiana pode tanto atuar tanto num sentido emancipatório quanto num viés bastante reacionário. Exemplificando este último viés, Marcuse cita Sullivan que, em estudo sobre neuroses, identifica a conduta de um indivíduo “depreendido voluntariamente” das amarras do senso comum e que, por livre escolha, adota uma ideologia (ou consciência) radical como sinal de “grande insegurança” ou loucura. Marcuse, por suposto, ridiculariza Sullivan. Levada ao pé da letra, a tese de Sullivan faria de Jesus a Lênin, Sócrates a Giodarno Bruno perigosos psicopatas.

Finalmente, “Eros e a Civilização” municia especialistas em psicologia e psicanálise preocupados em entender os fenômenos da neurose individual, da depressão ou do “mal estar da civilização” como sintomas de um mundo igualmente doente e que deve ser revolucionado.

O papel da libido na luta antisistêmica.

Na nossa opinião, o capítulo mais interessante de “Eros e a Civilização” é o décimo, “A transformação da Sexualidade em Eros”. Desde que Marcuse não compartilha da tese de Freud e dos neofreudianos da “naturalização” da sociedade repressiva, o filósofo alemão se aventura corajosamente a pincelar o que seria e quais seria os requisitos de uma sociedade não repressiva. (Interpretamos ser a sociedade não repressiva a sociedade comunista ).

A nova cultura não repressiva tem como eixo central nova relação entre a razão e os instintos. O trabalho não-gratificante passa a ser objeto de prazer, inclusive libidinal. Todo o padrão de prazer libidinal deverá sofrer alterações tão radicais que subverterão e desintegrarão instituições organizadas a partir de relações privadas interpessoais. A família monogâmica e patriarcal, por suposto, desaparece e a transformação da libido (de uma sexualidade refreada a uma espécie de “prazer total”) exigirá mudanças profundas nos marcos políticos e societários. Por isso, a luta de Eros, Deus da beleza física e do amor sexual, é uma luta política.

Como conclusão, vamos transcrever dois parágrafos do capítulo 10. Optamos por finalizar esta resenha com esta passagem, já que aqui surgem boas provocações para reflexão para a atuação.

A complexidade e densidade discursiva do ensaio de Marcuse devem permanecer inquietando os espíritos críticos e servindo como fonte teórica para a luta contra o capital.

'Freud realçou repetidamente que as duradouras relações interpessoais de que a civilização depende pressupõem que o instinto sexual é inibido em seus fins. O amor, e as relações duradouras e responsáveis que ele exige, baseiam-se numa união de sexualidade com o “afeto”, e essa união é o resultado histórico de um longo e cruel processo de domesticação, em que a manifestação legítima do instinto se torna suprema e suas partes componentes são sustadas em seu desenvolvimento. Esse refinamento cultural da sexualidade, essa sublimação do amor, tem lugar numa civilização que estabeleceu relações possessivas particulares separadas e, num aspecto decisivo, conflitantes com as relações sociais de posse. Enquanto, fora do privatismo da família, a existência do homem foi principalmente determinada pelo valor de troca dos seus produtos e desempenhos, sua vida no lar e na cama foi impregnado do espírito da lei divina e moral.

Supôs-se que a humanidade era um fim em si e nunca um simples meio; mas essa ideologia era efetiva mais nas funções privadas do que nas sociais dos indivíduos; mais na esfera da satisfação libidinal do que na do trabalho. A força plena da moralidade civilizada foi mobilizada contra o uso do corpo como mero objeto, meio, instrumento de prazer; tal coisificação era tabu e manteve-se como infeliz privilégio de prostitutas, degenerados e pervertidos. Precisamente em sua gratificação e, em especial, em sua gratificação sexual, o homem tinha de comportar-se como um ser superior, vinculado a valores superiores; a sexualidade tinha de ser dignificada pelo amor. Com o aparecimento de um princípio de realidade não-repressivo, com a abolição da mais repressão requerida pelo princípio do desempenho, esse processo seria invertido. Nas relações sociais, a coisificação reduzir-se-ia à medida que a divisão do trabalho se reorientasse para a gratificação de necessidades individuais desenvolvendo-se livremente; ao passo que, na esfera das relações libidinais, o tabu sobre coisificação do corpo seria atenuado. Tendo deixado de ser usado como instrumento de trabalho em tempo integral, o corpo seria ressexualizado. Essa mudança no valor e extensão das relações libidinais levaria a uma desintegração das instituições em que foram organizadas as relações privadas interpessoais, particularmente a família monogâmica e patriarcal'.

quarta-feira, 2 de março de 2011

“A crise das ditaduras – Portugal, Grécia e Espanha” – Nicos Poulantzas

Resenha #16 A crise das ditaduras – Portugal, Grécia e Espanha – Nicos Poulantzas




Panorâmica do autor e obra

Nicos Poulantzas é um sociólogo grego que passou parte de sua vida na França. Está vinculado à tradição marxista (foi membro do Partido Comunista Grego) e no exílio, teve contato com as idéias althusserianas – foi, na verdade, aluno de Luis Althusser.

A “crise das ditaduras” é o seu 5º livro: foi lançado em 1975, um ano após a publicação de sua (provável) obra mais importante “As Classes Sociais no Capitalismo Contemporâneo”. Em ambos, nota-se preocupação recorrente de se identificar a dinâmica das classes em luta e, particularmente, descrição das formas como as classes dominantes impõem o poder político e em que aspectos frações internas ou externas às burguesias podem ser aproveitadas como focos de intervenção do proletariado.

As tensões entre distintas frações da burguesia, a forma como as tensões de classe vão se reproduzindo nos aparelhos político- ideológicos (Estado, Exército, Igreja, etc.) e as lições dos movimentos socialistas frente às experiências das derrocadas das ditaduras em Portugal, Grécia e Espanha correspondem aos eixos da “Crise das Ditaduras”. De forma geral, o autor busca entender o problema da política interna e as relações dos países em questão com os imperialismos norte-americano e europeu de forma a lançar bases de um entendimento mais detalhado sobre a forma como vai se dando as transformações políticas dos três países em crise e, particularmente, as razões pelas quais as mobilizações e as lutas em curso não configuram numa alternativa socialista.

As lutas são conduzidas por frações específicas das burguesias de cada país. Poulantzas busca analisar os interesses econômicos e as políticas específicas das distintas frações da burguesia e descrever como se dá a conformação da direção política da transição democrática. A participação dos trabalhadores, ocasionalmente, implica naquilo que Tróstky em sua “teoria da revolução permanente” crítica de forma contundente: a ausência de ligação entre a luta democrática e a luta pelo socialismo implica nas ações das massas promovendo revoluções que servem à burguesia.

Aparelhos Ideológicos e luta de classes

Poulantzas centra sua análise particularmente nos aparelhos ideológicos – de maneira geral, o autor identifica as contradições de classe perpassando contradições internas dos aparelhos.

De nossa parte, vemos com alguma reserva a percepção “estruturalista” de Poulantzas, particularmente sobre aspectos do exército e do Estado burgueses. De fato, os aparelhos possuem complexidades internas e acreditamos que os socialistas devem servir-se tanto das contradições internas quanto externas dos Estados nacionais dentro de uma tática que busca alterar a correlação de forças à favor da ruptura com o capitalismo. Entretanto, entender a dinâmica dos aparelhos como fonte de reprodução da luta de classes pode corroborar para o entendimento de que o Estado e as demais instituições políticas são mera reprodutores das relações sociais externas aos aparelhos. O Estado e as instituições políticas deixam de ser a fonte de dominação política da burguesia e objeto da pacificação social e de salvaguarda do capitalismo: o Estado torna-se expressão exterior da luta de classes. No que se refere ao programa político derivado da nossa interpretação do ensaio de Poulantzas, o Estado, as instituições políticas e os aparelhos ideológicos assumiriam um papel mais importante do que a luta coletiva, ativa e autônoma das massas.

Nos momentos revolucionários autênticos – tal qual o que vemos nas revoluções dos países árabes neste exato momento – o Estado e as instituições são antes “atropelados” pelas contradições de classe do que propriamente reprodutores da luta de classes. O debate sobre Estado e Revolução ainda está inconcluso: a contribuição de Poulantzas é uma boa provocação para aprofundar e atualizar nosso entendimento sobre os reais alcances dos aparelhos ideológicos, sua natureza política e seus limites históricos.