segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O Mundo do Socialismo - Caio Prado Jr.



Resenha Livro #6 - Caio Prado Júniro - O Mundo do Socialismo Ed. Brasiliense


Entre a Utopia e a História

O Mundo do Socialismo é obra pouco comentada e debatida do autor de Formação do Brasil Contemporâneo (1943) e História Econômica do Brasil (1945). O Ensaio foi lançado em 1962 e corresponde a uma síntese da experiência de Caio Prado Júnior em viagem de dois anos pela URSS e China Popular. Uma razão para o ostracismo do livro pode ser o seu relativo perecimento frente aos acontecimentos que, a partir do final dos anos 60, foram sinalizando de maneira mais evidente contradições do mundo do socialismo: o autoritarismo político viabilizado pela não ocorrência plena da socialização produtiva; o processo de burocratização; a restauração gradual do capitalismo de mercado – Glasnost e Perestroika (1985) e colapso formal da URRS (1991).

Identificamos em algumas passagens certa previsão de futuro (implícita em todo livro) que não se concretizou: a generalização do socialismo em nível mundial. Assim, os países do mundo socialista vão sendo apresentados como parte de uma marcha histórica inevitável pós-capitalista.

Um leitor apressado poderia desde já ir descartando as teses de Caio Prado ao não levar em consideração o universo de escolhas e informações daquele escritor naquele momento da história. E mais: as previsões partem da convicção de um intelectual e ativista marxista num contexto de batalha de ideias (Guerra Fria) e dentro de um momento em que ainda há, o âmbito de expressiva parcela do movimento socialista internacional, a percepção de que o que se passava na URSS sinalizava de fato um futuro pós-capitalista, a construção de um novo mundo, sob novas bases econômicas, políticas e culturais.

Pois é dentro deste quadro de enfrentamento e disputa de ideias que a obra pode ser interpretada e resgatada para atualidade. O Mundo do Socialismo é diferente de um memorial de viagens. A intenção do autor – já sinalizada logo no início do prefácio – é descrever de forma panorâmica como os países do mundo socialista vão encontrando soluções concretas para os problemas da liberdade, da igualdade social, da democracia e da marcha ao comunismo. Para isto, Caio Prado Jr. vai se servindo daquilo que vê para, de maneira comparativa, estabelecer em que aspectos o socialismo vai encaminhando uma nova sociedade em contraponto ao capitalismo.

A tônica anticapitalista do ensaio tem bastante atualidade: o significado do direito, estado e liberdade no âmbito do capitalismo são desconstruídos, assim como as teses (também atuais) que procuram isolar a alternativa socialista: sua "ineficácia prática", seu lado supostamente contrário à “natureza humana”, seu aspecto "autoritário", etc. No que se refere às experiências do socialismo, a sua defesa teórica perpassa a obra e vai além da experiência soviética: o objetivo não é o do julgamento histórica daquela experiência, mas de uma proposta de interpretação do mundo do socialismo, sem qualquer ilusão de neutralidade e levando em consideração prática políticas testemunhadas pelo autor.

Liberdade e Igualdade

A liberdade e igualdade no capitalismo surgem como uma peça de ficção e, através da confrontação da liberdade e igualdade praticadas no mundo do socialismo, Caio Prado Jr. vai dialogando e debatendo com os argumentos anti-soviéticos. No capitalismo, a liberdade é formal e se conforma no sentido de viabilizar a livre negociação de compra e venda da força de trabalho. A liberdade é individual e se encerra na liberdade alheia: ocorre que, numa sociedade desigual e dividida entre patrões e trabalhadores, a liberdade de cada um vai variar de acordo com a situação do indivíduo frente aos meios de produção. De modo análogo, a igualdade também é, no capitalismo, apenas formal, incide sobre uma personalidade abstrata e não vinculada às condições concretas da vida.

As saídas para o problema da liberdade e da igualdade no mundo do socialismo partem da diferenciação teórica dos dois modos de produção: a propriedade dos meios de produção. A socialização implica em um novo tipo de liberdade, em que os indivíduos deixam de se confrontar uns aos outros, para (a liberdade) se afirmar pela vontade geral: é condição para a plena liberdade a ocorrência da igualdade e o interesse coletivo vai sendo confundido com os interesses individuais conforme se processam a socialização da economia e da política, mudança de valores e culturas, etc. Finalmente, o trabalho assume um papel central na consolidação da nova sociedade igualitária: perde seu aspecto de mercadoria e assume um caráter ético, é destinado a interesses da coletividade da qual cada indivíduo participa e aufere todas vantagens da vida.

Evidentemente, Caio Prado Jr. não funda teorias da liberdade e igualdade no livro. O resgate destes temas pelo autor, de maneira didática, pareceu-nos ser um dos pontos altos do livro. A reconstrução de utopias e novos tipos de sociedade parte deste confronto de idéias, que não só vai desideologizando as premissas do capitalismo, como sinalizando, ainda que parcialmente e de forma limitada às condições históricas, a forma como se daria o socialismo e a utopia comunista. Trata-se de uma tarefa central na luta contra-hegemônica atual: a reconstrução do sonho de sociedades pós-capitalistas que superem tudo o que aparenta ser "naturalizado" e sem história.

Contrapartida

Evidentemente, uma análise mais detalhada de um Mundo do Socialismo não pode furtar-se a uma crítica radical do stalinismo e do ocultamento pelo autor (não sabemos se consciente ou não e em que medida) de contradições referentes às perseguições políticas dentro do campo socialista, ao personalismo político, ao problema da heterogestão dos meios de produção, ao fortalecimento e centralização do aparato estatal em detrimento do poder local (tese não reconhecida pelo autor, que, pelo contrário, vê sinais do definhamento estatal), etc. Esta dupla dimensão - da utopia socialista em sentido mais geral e da história da revolução russa, com todas as contradições que escapam ao juízo de Caio Prado Jr. – é inevitável quando se lê textos de personagens engajados na história. Procuramos aqui apenas propor a leitura da obra chamando atenção para aquilo que ela tem de atual e sinalizando um justo acerto de contas não só com o Mundo Do Socialismo mas com todo o pensamento caio pradiano.

Sínteses

Caio Prado Jr. escreve seu livro na condição de um viajante que procura enfrentar a mistificação promovida pela direita em torno do mundo do. Talvez, o fato do olhar partir de um viajante, alguém exterior àquele processo, possa ter contribuído para o que se pode chamar de “erros da análise”, “excesso de otimismo”, “ingenuidade”, etc. Ainda, a firmeza com que defende a experiência daquele processo e a forma como procura debater direta e francamente com os adversários do socialismo – a narrativa remete mesmo a uma peça de argumentação de um advogado de defesa do socialismo – faz do Mundo do Socialismo ainda uma boa ferramenta de luta. Por um lado por sua atual denúncia do capitalismo. Por outro como boa descrição e análise das linhas gerais do socialismo e do resgate de utopias. Já viria em boa hora uma nova edição desta obra e a sua redescoberta.

Uma passagem final

“Não se justifica assim qualquer atitude de prevenção e hostilidade de princípio contra o mundo do socialismo, de cuja rica experiência histórica nos devemos necessariamente valer. Não para servilmente a copiar, e sim para aproveitá-la convenientemente. Tanto mais que entre as grandes lições dessa experiência estão aquelas que nos permitirão evitar os escolhos em que esbarraram, como tinham de esbarrar, os pioneiros e a vanguarda do socialismo, obrigados como foram a desbravar um terreno ainda indevassado e virgem. (...) É nesse sentido que orientei minha viagem pelo mundo do socialismo. Penso que se todos aqueles que julgam necessária a transformação do mundo em que vivemos, e a instauração de novas formas de vida social e de convivência humana libertas das mazelas do capitalismo, adotasse o critério de procurar no mundo do socialismo uma fonte de experiências a fim de as adaptar convenientemente aos lugares onde vivem e atuam, as questões hoje pendentes e que tão gravemente afetam a vida de quase toda a humanidade incluída no mundo capitalista, encontrariam soluções muito mais fáceis, seguras e rápidas”
Caio Prado Jr. – O Mundo do Socialismo

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

“O Que Fazer?" V. I. Lênin





Resenha #5 - "O que Fazer" - Lênin - Ed. Expressão Popular

Obra e Autor

Discutir Lênin significa avaliar tanto os aspectos teóricos de seus textos quanto o significado histórico de seu ativismo político. Necessariamente, os dois aspectos não aparecem de forma isolada: na verdade, a teoria em Lênin vai sinalizando as tarefas dos socialistas russos nas diversas etapas da luta e da revolução: nos embates contra a autocracia tzarista, na disputa teórica dentro do POSDR, na luta mais geral pela revolução e na direção política da construção do socialismo. Há ainda outro aspecto complicador: teoria e prática acabam necessariamente sendo avaliadas – hoje – levando-se em consideração os resultados da revolução russa, em especial o problema da burocratização, ausência de socialização eficaz da gestão econômica, o autoritarismo e repressão política. Neste sentido, discutir uma obra de Lênin (pela esquerda) é sempre dialogar com vertentes mais ou menos vinculadas às tradições daquela experiência histórica ou não. Também significa pensar sobre em que aspectos as formas de organização política dadas pelo leninismo contemplam hoje as formas de luta anticapitalista: o que ainda subsiste na teoria e na prática política dos socialistas em Lênin.

Este aspecto mais prático e ativista do pensamento de Lênin é bastante expressivo em “O que Fazer”. Nesta obra, escrita entre 1901-1902 em pleno regime Czarista autocrático na Rússia, Lênin trava embate dentro do Partido Social Democrático reivindicando uma intervenção qualificada, menos artesanal e mais profissional do partido, com um programa socialista e revolucionário para toda a Rússia, a organização de um jornal amplo, a politização de todas as lutas e a conformação de direções políticas competentes. A Crise da Social Democracia na Rússia decorre da ausência de bons quadros e de teoria revolucionária: há, a partir daqui, as críticas ao espontaneísmo e às vertentes terroristas representadas pelo jornal “Svoboda” e pelo “economicismo” ou “trade-unismo” de grupos como “Rabotchie Dielo”.
“O que Fazer” é obra da fase ainda jovem de Lênin, com apontamentos de tarefas gerais que, segundo Florestan Fernandes, significaram transformar, pela primeira vez, “o marxismo em processo revolucionário real”.

Duas questões aparecem como ponto de partida para uma discussão sobre o significado da obra. A primeira e mais óbvia tarefa é circunscrever os limites do texto ao contexto histórico em que foi escrito, sem atualizações mecânicas e, principalmente, sem considerar os apontamentos de Lênin como um “livro de receitas” de organização política. Não se pode falar em uma técnica política leninista, mas, antes, em exemplos práticos de como o marxismo vai se manifestando enquanto prática política pela intervenção de Lênin.

O segundo problema é, ao contrário, ir buscando o que há de atual e universal nas teses políticas “d’O que fazer”, o que, entendemos, significa menos as teses por elas próprias e mais o seu sentido naquelas circunstâncias, ao aspecto mais emblemático e exemplar das teses. Assim como Lênin em seu tampo, cabe aos socialistas da América Latina formular uma teoria revolucionária de seu tempo, “propagar o socialismo revolucionário nesses setores da sociedade (trabalhadores e povo) e, com o amadurecimento da experiência política, tentar-se o equacionamento do “por onde começar”. (Florestan Fernandes).

As críticas ao economicismo e ao espontaneísmo

Economicismo (ou trade-unismo) e espontaneísmo referem-se às tendências internas do POSDR que se diferenciam do grupo Iskra (do qual Lênin é o porta-voz) por sua intervenção centrada ora na luta econômica ora no trabalho artesanal, sem um horizonte claro e cotidiano de afirmação do socialismo e de uma profissionalização militante. A centralidade das greves e das lutas por melhorias econômicas por elas próprias não surtirão efeitos sem uma politização externa ao movimento correspondente ao partido social democrático. Neste ponto as críticas também se direcionam ao chamado espontaneísmo, a idéia de que lutas independentes são capazes de se generalizar num sentido revolucionário sem coordenação geral. Neste aspecto Lênin é enfático: da consciência em si (reforma) para a consciência para si (revolução), o movimento necessariamente precisará de teoria e de uma organização fortemente preparada, centralizada e que conte com confiança política (sem “falsos democratismos”) para incutir neste movimento uma luta geral contra a ordem. A linha de raciocínio de Lênin é a de que o socialismo enquanto teoria é exterior à classe operária russa daquele momento.

A contundência com que Lênin vai debatendo com as variações economicistas e espontaneístas do movimento revela sua confiança na viabilidade da revolução (mesmo numa conjuntura em que isto parecia pouco provável, daí sua famosa afirmação de que “é preciso sonhar”.) Revela também a caracterização dessas vertentes como oportunistas.

A crítica ao trade-unismo já remete ao que será a linha política social democrática da 2ª Internacional. Lênin defende que toda e qualquer manifestação de opressão e violência (dentro e fora da esfera do trabalho local) devam ser objetos de politização. A Luta econômica em Lênin deve estar subordinada à luta pelo socialismo, ao contrário do entendimento de que a luta econômica é uma “etapa” para a luta política, ou que as lutas econômicas por elas próprias generalizam-se em luta revolucionária.

Alguns aspectos reivindicados pelas organizações revolucionárias do espontaneísmo pecam por não levar em consideração a difícil correlação de forças frente ao Estado autocrático: não se pode intervir a nível geral com formas de trabalho militante “artesanal”. Sem preparo teórico e forte organização, os socialistas seriam presas fáceis da repressão do Estado. O mesmo vale com algumas discussões entendidas como “principistas” – o falso democratismo de eleições para cada execução de cada tarefa dentro do partido não deve sobrepor-se a uma relação de confiança e solidariedade política, dentro, mais uma vez, de um quadro de intervenção política ilegal, dentro de um regime autocrático em que qualquer vacilação ou erro significam prisão e morte. Muito resumidamente, estas são algumas das críticas de Lênin dirigidas aos demais setores do Partido.

Uma provocação

Algo que vai sendo mais ou menos permanente nas discussões do movimento socialista daquele período é a relação entre consciência e organização política – as chamadas condições subjetivas e objetivas da revolução e as tarefas do partido revolucionário. Se por um lado reconhecemos ainda hoje a importância da teoria como forma de direcionar as organizações e fazer com que elas incidam sobre os problemas gerais dos trabalhadores e do povo, politizando-os, não entendemos ser a teoria nem construída nem difundida de forma exterior à classe ou mesmo introjetada de fora para dentro.

Em Lênin há a necessidade da teoria e de um trabalho intelectual “externo” ao movimento operário, que é incapaz de espontaneamente conduzir a luta. Num novo contexto do capitalismo em que há a maior qualificação e complexidade do trabalho no âmbito do toyotismo, passa a ser necessário discutir a real atualidade desta tese. Aliás, as novas formas de organização do trabalho foram apropriando e reproduzindo exatamente formas de resistência autônomas dos trabalhadores num contexto de lutas anticapitalistas (greves, tomadas de fábricas, movimentos sociais e estudantis, etc.) dentro de ciclos de mais valia relativa (João Bernardo). Se em Lênin nós percebemos uma forte ênfase da teoria à prática revolucionária, passamos também a reconhecer a importância da prática à teoria revolucionária, levando em consideração as formas independentes de resistência, o saber e as práticas populares, etc. Conciliar o trabalho de base com radicalidade política e capacidade de incidência geral e organizada sem implicar nas vertentes economicistas/reformistas é o desafio inconcluso.

Ainda assim...

Porém, contemplando Lênin, é necessário desmistificar o trade-unismo que se serve, ainda hoje, do eixo político “democrático-popular” para, conscientemente ou não, desenvolver a política de reformar o capitalismo.

“É Preciso Sonhar”

Responde Lênin àqueles que, julgando-se marxistas fiéis, não reconhecem possibilidades de construção do socialismo na Rússia naquelas condições históricas. A ocorrência do místico e da utopia também está presente no pensamento do autor, ainda que muitas vezes vão prevalecendo os aspectos mais “duros” da sua narrativa (a denúncia, os embates, a ironia, etc.). Reproduzimos uma passagem longa, mas bastante expressiva, em que Lênin vai descrevendo a situação de seu pequeno grupo de revolucionários frente à fragilidade do movimento e à conjuntura difícil, ainda assim resistindo e lutando.


“Marchamos em pequeno e unido grupo por um caminho escarpado e difícil, de mãos dadas firmemente. Estamos rodeados por todas as partes de inimigos e temos que marchar quase sempre debaixo de seu fogo. Estamos unidos por uma decisão livremente tomada, precisamente para lutar contra inimigos e não cair, com passos em falso, no pântano vizinho, cujos moradores nos censuram desde o início por nos separarmos num grupo à parte e por escolhermos o caminho da luta e não o da conciliação. De imediato alguns dos nossos começam a gritar: “Vamos para o pântano!, E quando se tenta envergonhá-los, replicam: “que gente tão atrasada vocês são! Como é que não se envergonham de nos negar a liberdade de convidar-vos a escolher um caminho melhor”!. Sim, senhores, sois livres não só de nos convidar, senão de ir aonde melhor vos aparecer. (....) Neste caso, soltai as nossas mãos, não nos agarrai, nem manchai a grande palavra liberdade, porque nós também somos “livres” para ir aonde nos convier, livres para lutar não só contra o pântano, como também contra os que se desviam para ele”!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

São Paulo - Sociedade Anônima

Resenha Filme #2 - São Paulo Sociedade Anônima - Direção: Luís Sérgio Person - São Paulo - 1965





O Filme de Luís Sérgio Person retrata a São Paulo de meados do séc. XX e aspectos de nossa modernidade inconclusa. O elenco conta com Walmor Chagas e Eva Wilma

SINOPSE

Carlos é um jovem Paulistano de classe média e protagonista da história. Vive numa cidade em que se nota consolidação do ritmo industrial, com a instalação de montadoras de automóveis, incremento da oferta de emprego e crescimento da população. Sua vida pessoal divide-se entre o envolvimento com mulheres diferentes e o trabalho na indústria de carros: inicialmente como fiscal e posteriormente como gestor.

Certa insatisfação permanente é perceptível em Carlos, mesmo depois de casado, com filhos e estabilidade familiar. Na verdade, a insatisfação cresce e é produto de sonhos frustrados, de expectativas que remetem ao senso comum de um homem de sucesso dos anos 1960. No trabalho, Carlos atua em parceria com empresário que super-explora seus funcionários, sonega impostos e corrompe fiscais do trabalho. O sucesso profissional e financeiro da classe média viabiliza-se pela espoliação de trabalhadores em conluio envolvendo empresários e Estado. A família e o casamento também vão sendo desconstruídos, seja pelo seu aspecto de rotina maçante seja através da traição.

A contradição decorrente das expectativas ou dos sonhos de uma sociedade de consumo e sua experiência prática levam Carlos à fuga: outros personagens reagem às contradições com o suicídio, a corrupção ou a resignação. Se o ideal do American Way Of Life é o horizonte da classe média paulistana, este mesmo ideal vai levando o protagonista ao abismo. O sociedade de consumo vai ruindo como um castelo de areias.

Destacamos a bela fotografia do filme, com boas imagens da São Paulo dos anos 60. Podemos ver o comércio nas regiões do centro (muito parecido com hoje em dia), a corrida de São Silvestre realizada durante a noite de ano novo, o trânsito de carros e pessoas no Viaduto do Chá, exposição das regiões ocupadas pelas montadores ao longo das rodovias de acesso à cidade (áreas, até então, sem adensamento urbano). Surgem as festas e as músicas cantadas nas festas de ano novo e o uso do lança perfume no carnaval.


São Paulo S/A e possibilidades de Análise Histórica

A obra data de 1965 e retrata ou narra a vida de personagens que têm suas experiências mediadas por aquele contexto histórico: a São Paulo do desenvolvimento industrial, o advento de novas tecnologias, industrialização, mudanças no campo da cultura e do comportamento.

Identificamos aqui um duplo sentido de análise histórica: trata-se em primeiro lugar de refletir sobre o que são e o que significam as mudanças decorrentes da modernização capitalista tardia brasileira (o que significa atentar-se para as imagens da cidade, as tecnologias de comunicação e transporte, as diferenças de gênero, a estrutura da família,etc.); trata-se em segundo lugar de analisar/refletir sobre a percepção que o diretor Luís Sérgio Person tem daquela conjuntura: como, naquele tempo de transformações, o filme retrata seu respectivo momento histórico (o que significa buscar compreender qual é o sentido que em meados do séc. XX se dava à consolidação do capitalismo industrial e à sociedade de consumo, o que parece ser, aliás, uma intenção importante do autor). Em síntese, assistir filmes como São Paulo S/A significa tanto reflexão sobre a história da São Paulo dos anos 1960 quanto sobre a forma como nos anos 1960 São Paulo interpretava a si. Daí o seu sentido especial, 50 anos depois.


Novas Tecnologias e Modernidade Aparente

Em todo filme, há a preocupação do diretor em retratar São Paulo levando em consideração as mudanças pelas quais a cidade passa com o desenvolvimento industrial. Os carros, os viadutos, o fluxo intenso de pessoas, o telefone, a televisão e o comércio vão sinalizando uma cidade em vias de desenvolvimento econômico, com os respectivos impactos no mundo da cultura e da sociedade.

Como todo período de transformação, identificamos elementos de progresso e atraso convivendo e estabelecendo contradições a partir das quais a narrativa se serve para descrever os limites da modernidade brasileira, ou, em particular, paulistana. Por exemplo, se a indústria de carros gera o desenvolvimento econômico que impulsiona uma sociedade de consumo, por outro lado, subsiste a super precarização do trabalho – retratada de forma simbólica numa montadora em que trabalhadores não registrados são escondidos da fiscalização no banheiro.

Podemos, neste sentido, falar em Modernidade Aparente ou inconclusa levando em consideração que o desenvolvimentismo e o progresso tecnológico retratados no filme não são acompanhados de mudanças estruturais que incidissem sobre o problema da igualdade social. A modernização capitalista brasileira é bastante conservadora (mesmo em relação à Europa, onde há revoluções burguesas) e mantém, lado-a-lado, elementos do progresso e do atraso: o acesso ao consumo por parte da Classe Média e a espoliação dos trabalhadores; a afirmação de leis trabalhistas, fiscalização do Estado nas relações de trabalho e a sobrevivência da corrupção, do conluio entre capitalistas e os fiscais públicos; mudanças no papel da mulher com sua maior participação no mercado de trabalho e a manutenção da centralidade do homem nas relações de família; a formação de uma classe média liberal e a sobrevivência do racismo e do machismo em suas mais diversas manifestações.

Neste ponto, entendemos serem as mudanças históricas retratadas por Luís Sérgio Person referentes à espécie de reestruturação produtiva do capitalismo, que promove transformações aparentes sem implicar em mudanças estruturais, que carrega, em cada período histórico e de forma dialética, elementos do passado e os germes ou as condições para mudanças futuras dentro do presente. E se falamos aqui em modernidade inconclusa, não entendemos nem por um lado a existência atual de "pós-modernidade" (como falar em "pós" algo não concluso?) nem por outro lado à possibilidade de encerramento da modernidade no âmbito do capitalismo.


Algumas idéias sobre trabalho, alienação e São Paulo S/A

São Paulo S/A fala do desenvolvimento industrial do Brasil dos anos 1950-60. A super-exploração do trabalho a partir de conluio entre empresas e Estado (que admite o não registro dos operários e a sonegação de impostos) viabilizaram o enriquecimento de uma nova classe de gestores que usufrui do desenvolvimento, enriquece e promove uma sociedade de consumo. O desenvolvimento do consumo decorrente da expansão industrial encerra a cadeia produtiva, implicando na criação de mais capital e na consolidação de novos mercados de trabalho alienado.

Ocorre que São Paulo S/A volta-se antes para as reações da classe média paulistana (gestores e empresários) às mudanças decorrentes da reestruturação produtiva do capitalismo. O que podemos identificar aqui é uma certa crise de sentidos, dificuldade de conciliar a plena satisfação da vida frente às contradições decorrentes de um mundo em transformação. As promessas de uma vida de felicidade absoluta enunciadas por anúncios de propaganda e pela importação do american way of life confrontam-se com a insatisfação da vida familiar e profissional.

Neste aspectos, vamos sentindo como se a questão da alienação assumisse um caráter mais universal, como se estivesse vinculada à experiência necessariamente frustrante de uma sociedade baseada numa relação fetichista com relação às mercadorias e carente de sentidos humanos. Se pensarmos que hoje, o consumo de drogas ilícitas e antidepressivos atinge emblematicamente EUA e Europa Ocidental, percebemos que, neste sentido em que abordamos a idéia de alienação, São Paulo S/A possui grande atualidade...

Recomeçar, recomeçar de novo...

A importância de São Paulo S/A reside na preocupação do diretor em identificar transformações, mudanças históricas viabilizadas pela nova etapa do capitalismo brasileiro – industrial, urbano e moderno. A saída encontrada por Carlos frente à sua insatisfação (ou “loucura”) é a fuga, ainda que provisória. A cidade o traz de volta por vias oblíquas (no caso, o caminhão em que pega sua carona, retorna à cidade de que ele quer escapar). Carlos fala em recomeçar, recomeçar de novo: ao fundo há imagens de fluxo de pessoas nas ruas da capital. Pode-se interpretar esta passagem final sob diversas formas. Não optamos entender o recomeço como algo que implique numa espécie de “fim da história”, como se as possibilidades humanas estivessem circunscritas ao modelo de cidade São Paulo/SA e à sociedade de consumo. Podemos entender o reinício como um novo ciclo que abre possibilidades para transformações, não se podendo, porém, "fugir" ou escapar da história. Os homens fazem a história, mas não a fazem como a querem, a fazem de acordo com certas condições históricas.