sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O Anarquismo: da doutrina à ação - Daniel Guérin

Resenha Livro #11: “O Anarquismo: da doutrina à ação” – Daniel Guérin - Ed. Germinal




Algumas informações iniciais

Mesmo na internet há poucas informações sobre vida e trajetória política de Daniel Guérin (1904-1988). Foi ativista político e autor de livros sobre política e história; publicou obras sobre o homossexualismo e a liberação sexual, Rosa Luxemburg e o “espontaneísmo revolucionário” e lutas na América do Norte. Tem contribuição no debate historiográfico da Revolução Francesa, escrevendo na revista Annales sobre o tema.


Foram, ainda, seus diversos livros sobre anarquismo que o fizeram famoso pelo mundo. Segundo prefácio de Roberto das Neves, os textos sobre anarquismo do escritor francês eram amplamente conhecidos pela juventude européia durante as lutas do maio de 1968; Daniel Cohn-Bendit, referência daquele movimento, dizia-se discípulo e amigo pessoal de Guérin. “Posso afirmar que raramente encontrei um jovem que houvesse lido Marcuse, mas a cada passo via nas mãos dos jovens L’Anarchisme de Daniel Guérin, calorosamente discutido nos centros escolares e sindicais”.

Politicamente, transitou entre o anarco-sindicalismo e o socialismo independente. No âmbito do socialismo libertário, Guérin militou em uma organização pouco conhecida, o PSOP (Parti Socialiste Ouvrier et Paysan): este pequeno agrupamento reunia dissidentes do Partido Comunista Francês, trotskistas, luxemburguistas e socialistas libertários, correspondendo à mesma seção internacional do POUM [Partido Obrero de Unificación Marxista]espanhol. Para Pietro Ferrua (diretor-fundador do Centro Internacional de Pesquisas Sobre Anarquismo), o pensamento de Guérin está no meio termo entre o anarquismo e o marxismo. O anarquismo mantém sua atualidade a partir de sua crítica radical à burocracia e ao autoritarismo. Já o marxismo ou o socialismo genérico são reivindicados na medida em que a luta pela “autogestão” significa, aqui, o aprofundamento, a radicalização das lutas revolucionárias. Guérin, ainda segundo Ferrua, mantém-se convicto da conciliação entre anarquismo e marxismo, o que lhe valerá certa posição de isolamento ou mesmo ambigüidade política. (Tece duras críticas ao leninismo, mas dele tira alguma legitimidade, ao associar certas passagens de O Estado e a Revolução às concepções libertárias. Reconhece Trotsky como um “revolucionário honesto”, mas denuncia a repressão sobre a rebelião dos marinheiros de Kronstadt – comandado pelo dirigente bolchevique – como parte do esmagamento da revolução autêntica).

Não sabemos quais obras de Guérin foram publicadas no Brasil. Chegou a nossas mãos, ao acaso (encontrada em um sebo [alfarrabista] em São Paulo), uma edição bastante gasta do Anarquismo, lançada pela editora Germinal de 1968 [*]. A Germinal foi fundada em 1947 no Rio de Janeiro pelo anarquista português Roberto das Neves. Aparentemente, era uma editora independente e provavelmente com enormes dificuldades na promoção e difusão dos livros – identificamos problemas de tradução bastante evidentes, erros de ortografia e ausência de notas de rodapé. De maneira que novas edições de Guérin para o público brasileiro (contando com uma nova tradução e maior trabalho de pesquisa sobre o autor) são necessárias. Reconhecemos, por suposto, a importância e o pioneirismo do trabalho da Germinal – não nos consta existência de outra edição do livro em português.

As idéias força do anarquismo

O propósito de Guérin no ensaio é lançar uma visão panorâmica sobre os principais aspectos teóricos e práticos do anarquismo. Há a intenção de retirar do isolamento intelectual autores e teses ligadas ao “socialismo libertário” (entendido como sinônimo do anarquismo) e estabelecer certo “ajuste de contas”, identificando aspectos em que aquelas teses provaram-se aparentemente corretas – particularmente, a crítica radical da política frente à degeneração do socialismo em capitalismo de Estado no leste da Europa. A reabilitação do anarquismo, oportuna num momento da história onde se reorganizava a esquerda frente às claras evidências de repressão política na URSS, também significa a desconstrução de certos equívocos disseminados dentro e fora do campo da esquerda sobre o que significa anarquismo.

Logo no começo, o autor desconstrói certo senso comum que identifica anarquismo à “bagunça” ou “desordem”. Muito pelo contrário: em Proudhon, Bakunin e demais ideólogos daquele movimento, há propostas as mais diversas de organização política centrada em torno de alguns princípios comuns – que os unem genericamente ao campo do socialismo libertário. É em torno dos aspectos teóricos de organização que as duas primeiras partes do livro se referem: o problema da autogestão, as bases de troca e as formas econômicas dentro do modelo autogestionário, o significado da concorrência e sua afirmação ou negação no anarquismo, o sentido do federalismo no âmbito do anarquismo (uma discussão bastante original e interessante, que vai pensar formas de articulação geral da política e de forma não coercitivas, que relacione os poderes locais aos âmbitos regionais e “internacionais”, ou, melhor dizendo, “mundiais”). Discutindo as particularidades do movimento anarquista no que se refere aos seus princípios de funcionamento e nas suas experiências práticas em Espanha, Iugoslávia ou Argélia, vai sendo desconstruído aquele senso que define como utópicas as formas de organização independentes do Estado.

Especificidades do anarquismo

Guérin identifica anarquismo como uma vertente particular do socialismo: todo anarquismo é socialista, mas nem todo socialismo é anarquista. Ao longo do texto, opõe anarquismo ao “socialismo autoritário”, referente, basicamente, aos momentos em que a burocratização ou a intervenção mais ou menos motivada do Estado socialista implode práticas políticas de autogestão mais ou menos espontâneas. A especificação do “socialismo libertário” refere-se a uma série de características comuns àquela tradição.

“O Anarquista é, em princípio e antes de mais, um revoltado”: a revolta visceral a tudo que remete de alguma forma aos poderes oficiais ou mesmo ao que é regular, lembra Guérin, faz com que o anarquista sinta simpatia pelo o que é irregular. “É muito injustamente, acreditava Bakunin, que Marx e Engels falavam com profundo desprezo do Lumpenproletariat (“proletariado esfarrapado” [ralé]), pois é nele e só nele, e não na camada burguesa da massa operária, que residem o espírito e a força da futura revolução social”. Há, finalmente, maior atenção ao indivíduo, ainda que neste campo haja muitas diferenças internas dentre os autores – o ultra-individualismo de Max Stinner (que remete a uma postura anti-social, anti-socialista) opõe-se a outras tradições coletivistas, que, de forma geral, identificam tendência de harmonia social quando há ausência de aparatos de controle e domínio político. Guérin identifica como fontes de energia do anarquismo tanto o indivíduo quanto as massas.


O problema do Estado e do Governo

As diferentes percepções sobre o Estado são provavelmente o ponto em que mais imediatamente se identificam diferença entre anarquistas e outras tradições socialistas. O “definhamento” ou “extinção” do Estado processado no âmbito da ditadura dos produtores é prontamente denunciado pelos anarquistas como sinal de degeneração, controle e burocratização da insurreição popular. O “horror ao Estado” é emblemático e surge nos textos de forma contundente e radical: vamos transcrever algumas passagens longas, mas muito interessantes, sobre esta percepção. Identificamos dois pontos importantes nestas descrições: a idéia do Estado, sob qualquer forma, como fonte de opressão; o fato de esta opressão do Estado servir, posteriormente, como explicação para os desvios do “socialismo autoritário”.

“(Os burgueses) consideram o povo uma espécie de aglomerados de selvagens, comendo o nariz uns aos outros se o governo não funcionasse mais.”


“O governo do homem pelo homem é a servidão. Quem puser a mão sobre mim, para me governar, é um usurpador e um tirano. Declaro-o meu inimigo. Ser governado é ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, parqueado, endoutrinado, predicado, controlado, calculado, apreciado, censurado, comandado por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude […]. Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, corrigido. É, sob pretexto de utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, mistificado, roubado […]. Oh!, personalidade humana! Como foi possível deixares-te afundar, durante sessenta séculos, nesta abjeção?”

“[O Estado] é uma abstração devoradora da vida popular, um imenso cemitério aonde, sobre e sob o pretexto desta abstração, vêm generosamente, com beatitude, sacrificar-se, envilecer-se todas as aspirações reais, todas as forças vivas de um país”.

“Longe de ser criador de energia, o governo desperdiça, paralisa e destrói, por seus métodos de ação, forças enormes”.


Limites do horror ao Estado e Governo

Em que pese a intenção propagandista das frases, reconhecemos que elas sinalizam os problema da transição política socialista, e em parte antecipam, como procura ressaltar Guérin, a burocratização e conformação de revoluções populares e/ou socialistas aos marcos do capitalismo de Estado. O problema, no nosso entendimento, é que a premissa para aquelas críticas à política refere-se não raras vezes a certo entendimento de que toda direção política acaba tendo uma natureza contra-revolucionária por ser uma direção: a posição de direção – seja em qual circunstância – cria condições para a sua própria degeneração. Tony Cliff afirmava que não é o poder político aquilo que irá “corromper” ou “degenerar” as lutas, mas o seu contrário: a falta de poder político, a impotência das massas e de mecanismos de controle político pela base e radicalmente democráticos é que criam condições para a degeneração.


O caráter ideológico da democracia burguesa, esta sim, no nosso entendimento, estaria contemplada pela tese do “horror ao Estado” – a forma burguesa de Estado é logo abolida pelos socialistas, combinando-se com a generalização de formas de poder popular fincadas na generalização da socialização produtiva. Na crítica à democracia burguesa, Guérin aponta idéia similar: “A teoria da soberania do povo encerra a sua própria negação. Se o povo fosse soberano, não haveria mais governo nem governadores. O soberano seria reduzido a zero. O Estado não teria mais razão de existir, identificar-se-ia com a sociedade, desapareceria na organização industrial”. Ficamos tentados a localizar a tese do “horror ao Estado” no “horror ao Estado burguês”, destacando o caráter anticapitalista e revolucionário (sem ilusões no reformismo estatal) das lutas, hoje.


Encerrando

Não é nossa intenção aqui chegar a alguma conclusão sobre o grau de pertinência das teses anarquistas ou do que entendemos ser a transição do capitalismo ao socialismo e comunismo. Nossa intenção aqui é chamar atenção para um livro pouco conhecido e provocar eventuais interessados em pesquisar, ler, discutir e socializar idéias concorrentes ao tema. Finalizamos este – já longo – artigo com uma passagem, à guiza de conclusão.


“Graças a estas experiências, as idéias libertárias lograram ressurgir recentemente do cone de sombra a que os seus detratores as havia relegado. O homem contemporâneo, que serviu de cobaia ao comunismo estatal em grande parte do globo, começa, meio aturdido ainda, a inclinar-se, com viva curiosidade e freqüentemente em seu benefício, para as novas formas de sociedade regida por autogestão, propostas, no século passado, pelos pioneiros da anarquia. É certo que ele não as aceita em bloco; todavia, extrai delas ensinamentos e nelas se inspira para tentar conduzir a bom termo a tarefa que se impõe nesta segunda metade do século: romper, no plano econômico, como no político, os grilhões que, de modo indefinido, se designam por “estalinismo”, sem contudo renunciar aos princípios fundamentais do socialismo – antes, ao contrário, descobrindo ou reencontrando as fórmulas de um socialismo autêntico, isto é, com liberdade”.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Dilema de Hamlet - Mauro Iasi

Resenha Livro # 10 - “O dilema de Hamlet: O ser e não ser da consciência” - Mauro Iasi - Ed. Viramundo





“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre/ Em nosso espírito sofrer pedras e setas/ Com que a Fortuna, enfurecida nos alveja/ Ou insurgir-nos contra um mar de provações;/ E em luta pôr-lhes fim?”

A passagem corresponde a monólogo da peça Hamlet de Willlian Shakespeare: o protagonista, hesitante, pergunta a si mesmo se deve ou não agir (ou reagir) ao “mar de provações”, deve cumprir a promessa feita ao fantasma do pai que acusa Cláudio de tê-lo assassinado, vingar-se do vivo em nome do morto, ou deve suicidar-se, sucumbir definitivamente às “pedras e setas”. No que interessa aos objetivos de Iasi, a passagem de Shakespeare diz respeito aos mesmos dilemas da consciência de um militante político. O problema da consciência de classe, de seus limites e potencialidades frente aos aparatos de consolidação de hegemonias e, simultaneamente, às crises e lutas que viabilizam a conformação de contra-hegemonias e mudanças radicais das percepções sobre o mundo, todas estas discussões que de alguma forma partem do dilema inicial de Hamlet são objeto de atenção do estudo.

Desde que o problema da consciência política e sua manifestação no plano individual, societário e nas classes sociais implica nas mais diversas possibilidades de discussão, “O Dilema de Hamlet” acabou saindo como um panorama geral e crítico da forma como a sociologia moderna trabalhou o problema da consciência . Esta visão panorâmica tem como fio condutor o eixo anticapitalista presente na orientação metodológica (marxista) e no próprio entendimento do autor quanto a algumas tarefas do campo político oposto à sociedade do capital. Em diversas passagens, Mauro Iasi sinaliza que mudanças radicais não são “inevitáveis” (tal qual prescreveria certa orientação distorcida e linear do marxismo), mas são cada vez mais necessárias.

A necessidade e a possibilidade da mudança decorrem da constatação (que perpassa todo o “dilema”) de que a História é também uma manifestação humana, de que o seu resultado final não é o resultado de forças inabaláveis, mas do resultado de conflitos que envolvem tanto elementos objetivos (forças produtivas e o grau de contradição entre o seu desenvolvimento e os meios de produção) quanto elementos subjetivos (que envolvem, entre outros, a organização política e o problema das transformações da consciência de classe).

Emancipação Humana

Particularmente, este último aspecto subjetivo também é colocado por Mauro Iasi como algo que torna necessária a luta pela superação do capitalismo. Emancipação humana significa a superação das mediações da religião, da política e da mercadoria associadas ao mundo do capital (ou mesmo antes dele). “Pela mediação religiosa os seres humanos atribuem a algo fora deles a capacidade de construir o seu destino, de fazer sua própria história; pela mediação política do Estado, os seres humanos atribuem à forma social fora deles sua identidade enquanto seres sociais; e, finalmente, na mediação da mercadoria, os seres humanos vêem na abstração do valor, na igualdade dos produtos do trabalho, uma relação mediada pelas coisas”.

Mesmo o problema da mediação religiosa, admite o autor, encontrará maiores dificuldades de superação numa outra organização política e econômica dotada de sentido humano: o próprio problema da finitude da vida recoloca a busca de sentido para além da existência concreta.

Seja como for, num mundo em que, cada vez mais, tratam-se as pessoas como coisas e as coisas como pessoas – fenômeno que é fruto da alienação social do trabalho e da natureza geral do capital enquanto relação social – o “dilema de Hamlet” chama atenção especialmente para a necessidade não só “objetiva” da construção de um novo modo de produção.

Da consciência em si à consciência para si – Desafios

Ao se pensar sobre o “agir ou não agir” de Hamlet, destacamos o problema das transformações da consciência, de seu fluxo ao longo da história e de suas manifestações em períodos revolucionários. O problema da consciência de classe tornou-se objeto de controvérsias, mesmo em relação à "atualidade" da luta revolucionária dos trabalhadores. Esta é cada vez mais oposta ora a um amoldamento da noção de classes a grupos mais fluidos e heterogêneos (“povo”, “cidadãos”, “eleitores”, etc.) circunscrevendo os conflitos de classe a um quadro jurídico-institucional, ora a pulverização das lutas em torno de bandeiras cada vez mais específicas e que são prontamente amoldadas pelo Estado a partir da criação de “comissões especiais”, “secretarias específicas”. Ou, mais emblemático, a ocorrência do “empreendedorismo social” através de ONGs dentro da lógica neoliberal que imprime novas tarefas ao Estado.

O desafio de resgatar um sentido unitário das lutas, de articulá-las em torno de um movimento geral anticapitalista passa por uma “lacuna” ainda não satisfatoriamente analisada pelos marxistas. Trata-se de se responder o como promover e generalizar a transição dentre as consciências “em si” para a consciência “para si”, das lutas específicas em torno de objetivos imediatos para uma transformação geral em que uma classe social nega a realidade e vocacione-se a dirigir transformação em nome e para todas as demais classes.

Este problema, mais uma vez, torna-se ainda mais complicado ao se constatar que as próprias lutas “moldam” as classes, de maneira que trabalhadores não são "naturalmente" revolucionários, são antes parte de uma dinâmica complexa de relações de conflito e consentimento: as classes amoldam-se à ordem, eventualmente atuam no sentido de defender o próprio sistema que originalmente as oprimem. (O fato das classes “amoldarem-se” às lutas é parte de uma crítica feita pelos “marxistas analíticos”, particularmente Pzerworski. Mauro Iasi resgata esta crítica sem contudo cair em uma conclusão “reformista” que poderíamos incorrer a partir de uma interpretação mais "flexível" do conceito de classes).

Do ponto de vista histórico, as fases revolucionárias da burguesia e do proletariado diferenciam-se de modo já previsto por Marx. Entre a transição do feudalismo ao capitalismo, a burguesia desenvolve-se exteriormente às relações sociais dominantes (servos e senhores), colocando-a numa posição privilegiada para, num dado momento, ser capaz de negar toda a ordem e produzir um movimento que lute por alternativa societária que atenda aos seus interesses. Por se desenvolver exteriormente às relações de produção então dominantes, a burguesia possui maior autonomia relacional que o proletariado. Conclui Mauro Iasi: “O proletariado, ao contrário, está incluído na relação principal do modo de produção capitalista (capital-trabalho), sendo parte constitutiva do capital enquanto capital variável. Não é de se estranhar, portanto, que a consciência proletária veja na aparência das coisas a crise do capital como sua própria crise, e, por vezes, o desaparecimento da sociedade capitalista como se fosse o desaparecimento da própria sociedade”.

Se as dificuldades aqui aumentam, cresce também a necessidade de se resgatar toda intervenção política socialista ancorada na agitação e propaganda, na educação teórica e mesmo na promoção de manifestações artísticas, místicas e demais técnicas que incidam sobre a consciência individual. Este trabalho político voltado ao agir histórico tem como objetivo dispertar a atenção de novas pessoas para a militância e resgatar um sentido de unidade ou um sentimento de solidariedade de classe. Longe de ser pessimista, Mauro Iasi reafirma a atualidade do pensamento de Marx sobre classes sociais e o seu protagonismo na história.

Comentários Finais

Segundo o prefácio, o ensaio corresponde à dissertação de mestrado do educador Mauro Iasi na faculdade de sociologia da USP. O texto tem um tom mais acadêmico, existe atenção em trabalhar os autores da sociologia “clássica” (Durkheim, Webber e Marx) de maneira que o leitor já deva ter algum conhecimento prévio destes pensadores. Certamente, o “Dilema” não é uma leitura fácil: tivemos dificuldade de apreender alguns assuntos, particularmente os relacionados à psicologia e à linguagem no âmbito da sociologia. Talvez, o texto “Ensaio sobre consciência e emancipação” da Ed. Expressão Popular possa ser um bom ponto de partida para, depois, aprofundar o tema da consciência militante no “Dilema”.

Outra ponderação pontual: em certa passagem, o autor revela que seu estudo partiu de entrevistas feitas com militantes, pedindo que contassem sobre a forma como começaram a atuar politicamente. As memórias estavam associadas às “memórias de vida” referentes a grupos determinados (grupos de jovens, igreja, teatro, etc.). Certamente, o estudo poderia ser mais ilustrado com estes depoimentos, poderia haver maior espaço para os relatos de maneira a relacioná-los com o problema (em si já bastante teórico) da consciência.

Ainda sim, o ensaio de Mauro Iasi é um ferramenta bastante original e instigante para todo militante marxista situado na luta, desde que todas as lutas relacionam-se em alguma medida à manifestação da “consciência militante”. Vamos transcrever uma passagem do penúltimo capítulo do estudo: o trecho é longo mas sintetiza bem implicações do “ser ou não ser” de Hamlet e a linha política anticapitalista de Mauro Iasi.

“Se tomássemos as análises de Juarez Brandão Lopes e Leôncio Martins Rodrigues, poderíamos concluir pela impossibilidade da emergência de uma consciência de classe; se tomássemos o otimismo de Sader sobre a emergência de novos personagens ou nos baseássemos no Ascenso do movimento da década de 1980 [no Brasil], poderíamos imaginar que a revolução novamente se tornaria possível. Hoje estaríamos mais propensos a procurar entender a defensiva e o novo amoldamento às estruturas de consentimento. Perdidos em cada momento do processo, deixaríamos de ver um nítido movimento em qe cada ponto do processo de acumulação é o resultado de uma tensão entre luta e consentimento, em que os indivíduos, contra qualquer previsibilidade de engenhosos e eficientes meios de coerção e hegemonia, se antagonizam contra a ordem em algum ponto do processo, se mobilizam e agem, militam por seus sonhos. A cooptação e o amoldamento à ordem são a prova de que a cooperação é necessária. O consentimento, assim como a hegemonia, não representa o fim da luta, mas é o resultado direto dela.
(...)
No interior desse processo [de acumulação capitalista] que em si mesmo não guarda sentido, senão o da tentativa de perpetuar a acumulação, os trabalhadores, por meio de suas histórias de vida e de sua ação como seres sociais, podem se antagonizar com a ordem estabelecida e sua representação ao nível das ideias; podem, nem automática, nem inevitavelmente, constituir uma alternativa societária além da ordem capitalista. Isso, ainda que não seja automático, nem inevitável, é necessário. O único sentido que guarda a história é aquele que os seres humanos atribuem a ela”.

sábado, 25 de dezembro de 2010

A Revolução Permanente - Leon Trotsky

Resenha Livro #9 - "A Revolução Permanente" - Leon Trotsky. Ed. Expressão Popular




Autor e suas circunstâncias históricas

Leon Trotsky nasceu em 1879 e morreu assassinado no México em 1940. Foi ativista e teórico político, participou do levante operário em São Petersburgo em 1905 e das revoluções de Fevereiro e Outubro de 1917. Chefiou o exército vermelho após a tomada do poder político pelos bolcheviques e esteve à frente da tropa que reprimiu motim anarquista em Kronstadt em 1921. Após a morte de Lênin em 1924, vê-se cada vez mais isolado politicamente: há a polarização (desigual, por suposto) entre a orientação stalinista centrada na tese do socialismo nacional e a teoria da revolução permanente, formulada por Trotsky e sobre a qual se agrupa a Oposição de Esquerda, minoritária.

Em 1925 é proibido de falar publicamente e em 1929 é forçado a sair da URSS. A edição “A Revolução Permanente” foi escrita em 1928, momento, portanto, em que já iniciara campanha oficial de aniquilação do trotskysmo e oposição política entre grupo ligado à burocracia oficial (velhos bolcheviques, ou “epígonas”) e Trotsky. Esta oposição não diz respeito a divergências pontuais de táticas políticas específicas ou menos ainda diferenças e disputas pessoas centradas exclusivamente nas figuras de Trotsky e Stalin. A antinomia diz respeito a um corte definitivo dentro da política do movimento comunista mundial que vai opondo percepções distintas sobre os papéis das classes sociais no decorrer das revoluções e a sua conformação, particularmente nos países de capitalismo atrasado. Esta diferença – colocada por Leon Trotsky pelas teses da revolução permanente e a tese do socialismo nacional – repercutia, naqueles anos, a lutas políticas imediatas, particularmente à rebelião chinesa (1925-1927) e à capitulação do movimento operário comunista daquele país ao Kuomitang.

Identificamos recorrentes disputas no âmbito da esquerda que vai opor campos distintos, derivados mais ou menos daquela polarização. Ela (a polarização) repercute mesmo debates da própria esquerda brasileira: o problema do etapismo dentre as formulações do PCB, o papel das lutas democráticas e os seus limites, a composição de classes em torno da “revolução burguesa” brasileira e, mais recentemente, a polêmica em torno do programa democrático popular sinalizam de alguma maneira estratégias mais ou menos associadas àquela polarização. As divergências servem, aqui, apenas como ilustração da atualidade da “Revolução Permanente” e de um balanço ainda inconcluso da esquerda frente ao problema da revolução democrática e socialista, assim como das suas respectivas composições de classe. Qual é o papel do campesinato e como ele se relaciona com o poder operário na luta revolucionária? Em que medida sobrevivem experiências socialistas isoladas, sem contar com a generalização mundial do modo de produção pós-capitalista? Como se relacionam as tarefas democráticas inconclusas e a estratégia socialista? Qual classe ou composição de classes dirigirão estas lutas mínimas e máximas? Pode-se falar em socialismo em um só país? As diferentes respostas para estas perguntas correspondem às distintas filiações políticas, repercutindo a polêmica até os nossos dias.

A história das ideias trotskystas

Ainda sobre Trotsky, vale apontar sua grande incidência (e variabilidade de significação) nas organizações de esquerda no Brasil e no Mundo. Quando escreveu “A Revolução Permanente”, a Oposição de Esquerda ainda atuava no âmbito da III Internacional e denunciava sua política conciliadora, que negava a centralidade de movimentos operários em suas lutas, fazendo-os operar a serviço da dominação burguesa, inviabilizando a tática revolucionária internacionalista e viabilizando a orientação etapista de Stálin – esta situação é narrada no texto a partir de derrotas distintas do movimento comunista na Europa (Alemanha e Polônia) e Oriente (China e Índia). Cerca de 10 anos depois, a Oposição de Esquerda sai da III Internacional (1938) e no mesmo ano é fundada a IV Internacional. Há aqui um marco importante: é sobre esta organização internacional que se apóiam novos partidos ou forças políticas em todo mundo, cada qual partindo de alguns pontos de partida comuns: o caráter internacionalista das lutas, a centralidade da classe operária na revolução e as críticas à burocracia estalinista. O ponto de partida não leva aos mesmos pontos de chegada: a tese que caracteriza a URSS como Estado Operário degenerado ou burocratizado é oposta à tese de Capitalismo de Estado, há diferentes formulações em torno do problema das guerras mundiais, do significado das lutas anti-imperialistas e dos movimentos de libertação nacional na América Latina e Africa. Surge, dentro do trotskysmo, tradições particulares a partir de autores e ativistas políticos do séc. XX: Michel Pablo, Ernest Mandel e Nahuel Moreno.

No Brasil, seguem algumas das organizações políticas identificadas com o trotskysmo: PSTU que se filia à organização internacional LIT - IV Internacional; diversas correntes do PSOL, dentre as quais o ENLACE, o antigo bloco Socialismo Revolucionário (atual LSR) ligado ao grupo CIO filiado também à IV Internacional, o grupo REVOLUTAS que é seção brasileira da IST, o MES, a CST (UIT-QI); LER-QI que integra o grupo internacional Fração Trotskysta igualmente filiado à IV - Internacional. Há ainda organizações com intervenção mais restrita a algumas universidades e sindicatos, como o MNN (Movimento Negação da Negação) e a LBI (Liga Bolchevique Internacionalista). Sobre a história das ideias trotskystas, opinamos pela leitura do artigo “O Trotskysmo depois de Trotsky” de Tony Cliff.

A Teoria da revolução permanente e a sua oposição

A Teoria da Revolução Permanente decorre de debates e artigos publicados por Trotsky já em 1905, ano em que uma insurreição popular e espontânea varreu a Rússia. Lênin considera 1905 como o ano do ensaio geral da revolução proletária. Em 1917, as diferentes fases da revolução – fevereiro, com a derrocada definitiva da monarquia e outubro, com a tomada do poder pelos bolcheviques – viriam, segundo Trotsky, a confirmar na prática as orientações gerais da teoria da revolução permanente. Esta tem como eixo central a relação de interdependência entre as etapas democráticas e socialistas da luta revolucionária e a necessidade premente de serem as lutas revolucionárias conduzidas pela e para a classe trabalhadora. Neste aspecto, há maior relevo para o problema da revolução em países de capitalismo atrasado. O sentido da revolução na Rússia não poderia ser uma transformação uniforme e mecânica do país, da monarquia e do feudalismo à democracia liberal e capitalismo e finalmente ao socialismo. O sentido da revolução permanente é o que Trostsky chama “transcrescimento” das bandeiras democráticas às bandeiras socialistas dentro de um mesmo movimento dirigido pelo proletariado.

Aqui há uma crítica frontal ao que se entende como etapismo, o engessamento das lutas a certo enquadramento da história que determina rigidamente a natureza política de cada momento histórico e não raro serve como fonte de deslegitimação de lutas autônomas. Segundo Trotsky, a supressão tanto dos ranços feudais quanto dos problemas democráticos pendentes encontram-se entrelaçados à revolução socialista, “por meio de uma série de conflitos sociais crescentes, da insurreição de novas camadas populares, de ataques incessantes do proletariado aos privilégios políticos das classes dominantes”. Não se trata, como acusa a ortodoxia, de pular “etapas” do desenvolvimento histórico, mas reconhecer por um lado a variabilidade dos fenômenos históricos e sua repercussão dialética que não se confundem com um “evolucionismo vulgar” do etapismo; significa, por outro lado, a necessidade da revolução democrática não cair dentro de uma política geral burguesa, em que trabalhadores e camponeses travam as lutas no sentido de confirmar o poder político de distintas frações da burguesia, “sujar as mãos em seu lugar” – a revolução permanente deve transitar, assim, desde fases pré-modernas até colocar na ordem do dia a construção do socialismo.

Duas implicações decorrem do caráter permanente da revolução. Em primeiro lugar, a própria natureza permanente da revolução implica na indeterminação de sua duração e na amplitude das relações sociais em mudança. “A sociedade não faz senão mudar de pele, sem cessar. Casa fase de reconstrução decorre diretamente da precedente. Os acontecimentos que se desenrolam guardam, necessariamente, um caráter político, dado que assumem a forma de choques entre os diferentes grupos de sociedade em transformação(...). As profundas transformações na economia , na técnica, na ciência, na família, nos hábitos e nos costumes, completando-se, formam combinações e relações recíprocas de tal modo complexas que a sociedade não pode chegar a um estado de equilíbro. Nisso se revela o caráter permanente da própria revolução socialista”.

A segunda (e não menos importante) implicação: a generalização necessária da revolução em nível mundial, como garantia de sua suplantação definitiva do capitalismo. Em Trotsky, a revolução socialista começa no âmbito nacional mas não pode nele permanecer: no caso de existir uma ditadura proletária isolada, uma série de contradições internas e externas fará com que, num prazo não previsível, o estado proletário sucumba. Estas contradições resumidamente decorrem do elo mundial em que o capitalismo já se configura: seu desenvolvimento desigual e combinado certamente determinará características específicas nas lutas travadas na Índia ou Inglaterra, na China ou na Alemanha: ainda assim, a vitória do socialismo depende “do desenvolvimento mundial das forças produtivas e do ímpeto mundial da luta de classes”.

Implicações gerais: o legado de Lênin e o problema da China

A classe de trabalhadores deve ter como palavra de ordem a defesa da ditadura democrática do proletariado apoiada pelos camponeses. Lênin, em polêmica com Trotsky, falava em “ditadura democrática do proletariado e dos camponeses” admitindo maior ou menor preponderância do campesinato dentro da direção das lutas. Tratava-se, segundo Trotsky, de uma “fórmula algébrica”, de uma tese flexível que deveria ir sendo melhor trabalhada conforme a evolução dos eventos históricos. E de fato o foi: a partir da experiência histórica, verificou-se que os camponeses na Rússia não podiam organizar-se como classe revolucionária, como grupo social com bandeiras articuladas em torno da transformação de toda a sociedade. E com o tempo, assegura Trotsky, Lênin passou a defender posição semelhante à sua ao constatar a situação política concreta.

Os camponeses organizavam-se no partido dos Socialistas Revolucionários e possuíam uma política vacilante, muitas vezes contra-revolucionária e em defesa da burguesia: os comunistas devem incidir neste setor no sentido de arrastá-lo politicamente. Não se deve, ainda, perder de vista a centralidade operária da luta revolucionária. Os camponeses não podem ser uma classe revolucionária, por eles próprios. Dado momento revolucionário, eles vão ser arrastados ou para o lado do proletariado ou para o lado burguês.

Independentemente da atualidade desta tese –especialmente num quadro de proletarização e extensão das relações capitalistas de trabalho no campo com o agronegócio - chamamos atenção para o que há por trás da polêmica. O livro, situado dentro de um contexto de disputa política com o stalinismo, remete à tentativa de encontrar maior respaldo das teses de Lênin à Teoria da Revolução Permanente. Diante de um contexto de manipulações dos textos e disseminação de informações distorcidas de forma a isolar o trotskismo politicamente, boa parte do trabalho de Trotsky diz respeito a um resgate das ideias de Lênin e à denúncia de desvios teóricos promovidas pelo stalinismo. Além de situações políticas concretas, o que estava em jogo naquela disputa era e ainda o é o real legado e significado do leninismo e do marxismo. Como já colocamos, o aspecto prático de destaque no texto é o problema da política da III Internacional no Oriente: discutir e resgatar o sentido da revolução permanente dizia respeito a identificar que a ausência de uma direção operária na revolução cria condições para a burguesia utilizar-se das classes subalternas para fazer a sua revolução. Este é o sentido da “tragédia chinesa”.

Balanços Provisórios

No que concerne às lutas anticapitalistas da atualidade, a leitura de Revolução Permanente serve para situar marco inicial de discussões acerca da natureza das revoluções e da forma como as direções políticas daquelas lutas disputavam entre si a hegemonia ideológica dos movimentos. Como se sabe, estas disputas levaram a fins trágicos: Trotsky foi assassinado em 1940, assim como diversos teóricos e ativistas que apresentavam qualquer divergência à linha política oficial. Se por um lado nos afastamos da percepção de que o problema da revolução russa se referia a um problema exclusivo de direções políticas, reconhecemos, ao menos, acordo com o necessário (e hoje ainda mais óbvio) internacionalismo na luta contra o capitalismo e na cada vez mais estreita ligação entre lutas democráticas pontuais e um sentido geral de transformação radical da sociedade. Estas duas implicações da teoria da revolução permanente (internacionalismo e radicalidade revolucionária) ainda nos servem de lição e norte para a batalha contra o capital.

Uma citação final

"A ditadura do proletariado, que sobe ao poder como força dirigente da revolução democrática, será colocada, inevitável e muito rapidamente, diante de tarefas que a levarão a fazer incursões profundas no direito burguês da propriedade. No curso do seu desenvolvimento, a revolução democrática se transforma diretamente em revolução socialista, tornando-se, pois, uma revolução permanente. Em lugar de pôr termo à revolução, a conquista do poder pelo proletariado apenas a inaugura. A construção socialista só é concebível quando baseada na luta de classes nacional e internacional. Dada a dominação decisiva das relações capitalistas na arena mundial, essa luta não pode deixar de acarretar erupções violentas: no interior sob forma de guerra civil, no exterior sob forma de guerra revolucionária. É nisso que consiste o caráter permanente da própria revolução socialista".

domingo, 12 de dezembro de 2010

Marxismo e Alienação - Leandro Konder



Resenha livro #8 - Marxismo e Alienação - Leandro Konder - Ed. Expressão Popular


O problema da alienação: ponto de partida do autor

Logo no começo do seu estudo, Leandro Konder alerta que sua intenção não é a de fazer resgate geral de todas as acepções do conceito de alienação: estudar a história do termo e seu sentido dentre as diversas tradições teóricas é tema extenso e implicaria num ensaio fragmentado. Alienação tem diversas fontes e sentidos antagônicos entre si. A idéia aparece na teologia cristã, em expressões da economia política clássica (Ricardo, Smith) e no jusnaturalismo, com a idéia da alienação da liberdade para realização do contrato social (Rousseau).

Em Hegel, pela primeira vez, a alienação deixa de aparecer como uma idéia ilustrativa e com sentido mais particular e torna-se um conceito ordenado dentro de uma teoria geral: “O conceito hegeliano de alienação é o legítimo pai do conceito marxista. E o conceito marxista, seu descendente imediato, embora tivesse de desenvolver em oposição a ele, só o pode superar integrando a si todos os elementos vivos do conceito hegeliano”.

Nas ciências humanas, tornou-se dominante a orientação marxista dentro do que se entende por alienação. De maneira que, hoje, falar em alienação significa remeter aos problemas referentes à sociedade capitalista analisada pelo filósofo alemão. Leandro Konder parte desta premissa para escrever o seu livro: apropria-se da categoria já em sua fase madura, consolidada pelo marxismo, e avança, descrevendo as formas em que alienação se manifesta dentro da história contemporânea, da arte, das religiões antigas e modernas. Há, particularmente, o esforço em traduzir a realidade imediata (o movimento comunista brasileiro, manifestações da arte no Brasil e no mundo, as intervenções imperialistas na América latina, o problema do stalinismo) de maneira a ir identificando em que medida a alienação constrange ou dificulta todo movimento (mais ou menos avançado) de superação do capitalismo.

Este esforço é emblemático: sugere a preocupação mais prática do autor, de maneira a inserir o livro dentro de um quadro de disputa política no interior do movimento comunista e da luta anticapitalista geral. As críticas à alienação dentro da recepção dogmática do marxismo no âmbito do subdesenvolvimento e a analise da “ideologia do colonialismo” como manifestação da alienação coordenada pelo imperialismo são exemplos desta dupla dimensão política da obra – escrita em 1965.

A narrativa é bastante acessível e muito bem escrita. Por não se centrar exclusivamente ao aspecto teórico e buscar sempre ir identificando na história exemplos do estranhamento humano particular da sociedades de classe, a leitura ganha em originalidade de fontes e referências, que passam pelos romances de Franz Kafka, obras de arte, música e filosofia existencialista de Sartre.

O Conceito Marxista: desafios

Alienação e Marxismo de Leandro Konder vai tratando das diversas manifestações da alienação, entendida como fenômeno extra-econômico. De fato, o problema da alienação liga-se à forma como o trabalho se manifesta no capitalismo: a apropriação privada dos meios de produção e a transformação da força de trabalho em mercadoria implica numa alienação (afastamento) entre aquele que produz e aquilo que é produzido – aquilo que é criado pelo homem “se aliena dele, torna-lhe estranho e volta-se contra ele” (MARX). Ainda no terreno econômico, o trabalha alienado cria condições para uma percepção distorcida ou estranhada dos objetos de consumo – o mecanismo da alienação econômica opera no sentido de naturalizar relações sociais e históricas de produção, o que, no capitalismo, implica na percepção “fetichista” da mercadoria a que Marx refere-se nos primeiros capítulos do Capital. O que parece ser central no livro de Leandro Konder é a tentativa de superar senso comum que restringe alienação à alienação econômica correspondente ao fetichismo da mercadoria e conversão do trabalho em meio. Parte-se daquelas premissas econômicas e de algumas discussões gerais sobre consciência e ideologia (introdução) para, finalmente, ir traçando um panorama geral de manifestações extra-econômicas da alienação no âmbito do capitalismo – os capítulos vão, cada um, abordando a História, a Arte, a Religião, a Política e o Subdesenvolvimento – estes dois últimos vão centrando atenção na manifestação da alienação no âmbito do movimento comunista internacional e brasileiro.

De maneira geral, identificamos no autor preocupação análoga ao seu estudo “A Derrota da Dialética” – o trabalho teórico passa a ser central dentre os marxistas, de forma a oxigenar a teoria, resgatando aquilo que há de original e criativo, superando ortodoxias presas aos modelos esquemáticos e economicistas– que, particularmente no caso do stalinismo, significava aparelhamento da teoria à prática política autoritária. O destaque dado a alienação dentro do movimento comunista é parte daquilo que dá sentido ao texto: a desalienação.

Um estudo necessário

Entendemos que Marxismo e Alienação atende as expectativas do próprio autor, qual seja: trabalhar a idéia da alienação como forma de favorecer sua superação. A desalienação não é um processo automático, exige interferência humana e esta é uma colaboração bastante interessante para cursos de formação política, discussões em grupos e novas elaborações teóricas decorrentes de certas provocações do texto. (O autor faz em diversas passagens sugestões de estudos e pesquisa, deixa algumas portas abertas para eventuais interessados).

O tema é bastante amplo, envolve erudição ao contemplar as variadas dimensões em que a alienação ocorre (nos livros, filmes, na psicologia, na religião, na política dos socialistas). Destacaríamos aqui, em particular, o problema da arte. Fonte de manifestações dos preconceitos e percepções ideológicas dominantes de cada respectivo momento histórico, a arte, ao contrário da ciência, também opera num certo nível intuitivo que, historicamente, sinaliza, nas chamadas grandes obras, elementos do futuro. A idéia de artistas visionários diz respeito ao seu papel histórico, como indivíduos cuja percepção é privilegiada e capaz de enunciar alguns aspectos das transformações gerais da sociedade em curso. A Metamorfose de Kafka ou Angústia de Graciliano Ramos remetem a certo mal estar decorrente da fragmentação de sentido humano frente à mercantilização progressiva das relações. Já em “O Processo” (Kafka) são os aparatos burocráticos que vão sinalizando uma sociedade baseada em formas mais ou menos sutis de controle – não se identifica ao certo a origem da opressão mas já se sinaliza tendências de controle político. Esta dupla dimensão da arte – produto do seu tempo e manifestação do porvir – pode fazer com que ela (a arte) assuma um papel importante (e negligenciado) dentre aqueles que se colocam no campo das lutas contra o capital. Dar um sentido humano para as manifestações de arte, potencializar o seu compromisso com o seu tempo e atentar-se para os conflitos de classe e para o desenvolvimento da história de uma maneira geral é um ponto de partida para uma arte, ainda alienada, mas com vocação desalienante. Identificamos no debate arte e alienação uma porta particularmente especial para novas reflexões a partir do Alienação e Marxismo. Desde aqui, identificamos atualidade e enormes possibilidades de leituras e trabalhos associados ao texto.


Sinopse

MARXISMO E ALIENAÇÃO: contribuição para estudo sobre o conceito marxista de alienação. Livro escrito em 1965, tratando-se do primeiro livro lançado pelo autor. Recentemente o livro foi reeditado pela Ed. Expressão Popular. Leandro Konder é professor do Departamento de Educação da PUC-RJ desde os anos 1980 . É um dos principais divulgadores do marxismo no Brasil, tendo especial papel na introdução da obra de Lukács. Tem 21 livros publicados, detre os quais A derrota da dialética, Flora Tristan – Uma vida de mulher, uma paixão socialista, Walter Benjamin – O marxismo da melancolia, Fourier – O socialismo do prazer – Vida e obra, O que é dialética, O futuro da filosofia da práxis.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Os Corumbas - Amando Fontes

Resenha Livro #7 - Os Corumbas - Amando Fontes




Sobre o Autor

Amando Fontes foi jornalista, advogado e deputado estadual constituinte em 1946. Filho de um farmacêutico e uma dona de casa, ficou órfão ainda criança e foi criado pelos avós: passou a infância em Aracaju, residiu durante a vida no Rio de Janeiro, Salvador e Curitiba. Fontes escreveu apenas dois romances: “Os Corumbas” lançado em julho de 1933 e que já conta com 25 Edições (ainda que identificamos desconhecimento generalizado do autor e da obra) e o ainda menos conhecido “Rua do Siriri”, ambos lançados pela Ed. José Olympio.

O Que há de Particular em Fontes

A origem social pequeno burguesa e o relativo isolamento do autor frente aos circuitos literários e culturais de meados do séc. XX (apenas tardiamente Fontes junta-se ao grupo do poeta Augusto Schmidt) fizeram provavelmente com que seu texto se diferencie daqueles autores dedicados à literatura social. Sua narrativa dá voz aos trabalhadores e aos setores populares sem certa estigmatização correspondente ao olhar externo e mais ou menos descritivo da situação de sofrimento popular (tradição que é inaugurada já no naturalismo de “O Cortiço” de Aluízio de Azevedo) ou numa intervenção mais panfletária como os primeiros romances de Jorge Amado.

O que a gente vai percebendo conforme conhece a história de trabalhadores livres e pobres do Aracaju dos anos 1920-30 é uma humanização radical das personagens, como se houvesse um reconhecimento (naquele momento pioneiro) da condição de sujeitos: dos operários da fábrica de algodão, dos camponeses forçados a abandonar suas terras, dos setores populares da cidade, prostitutas, soldados e das donas de casa.

Antônio de Alcântara Machado em resenha escrita de quando do lançamento de Corumbas, enxerga a abertura de um novo caminho para a literatura nacional, comparando Fontes ao escritor e dramaturgo russo Aleksei Górki. Isto significa olhar para o povo e para os trabalhadores menos sob um olhar folclórico, idealizado, estereotipado ou tipicamente “descritivo” e mais sob uma forma mais ou menos equivalente ao retrato da sociedade burguesa sobre a qual a literatura realista do séc. XIX se ocupou – o senso humano ao qual nos referíamos diz respeito ao reconhecimento inclusive das superstições, preconceitos e mesquinharias dentre os proletários de Aracaju.

No Brasil, acreditamos que Graciliano Ramos também opera neste nível e já adianta – particularmente em Vidas Secas e Angústia – descrições psicológicas de personagens do povo num âmbito mais profundo. Ainda, Graciliano fala de funcionários públicos (Luís- Angústia), fazendeiros empobrecidos (Paulo – São Bernardo), jornalistas e profissionais liberais (Caetés) ou retirantes da seca (Vida Seca). Fontes fala de trabalhadores do campo e proletários da cidade.

Sobre Corumbas

Sá Josefa e Seu Gerado são dois agricultores do interior do Sergipe. Conhecem-se emblematicamente numa festança popular de comemoração da ocorrência das chuvas. Casam-se e tem filhos – alguns sobrevivem e trabalham desde cedo, outros morrem. As águas viabilizam sobrevida na roça: entretanto, o tempo passa, a chuva vai ficando escassa, os usineiros e senhores de engenho vão pagando cada vez menos pela cana e a vida no campo torna-se insuportável. O casal parte para Aracaju em busca de emprego nas fábricas de tecido. Àquela altura a família de retirantes conta com 3 mulheres e um homem, cada qual havendo de se empregar nas recém-construída indústria de algodão da capital.

A jornada de trabalho é descrita por Fontes contemplando as diferentes percepções das personagens à exploração da força de trabalho barata dos corumbas.

Alguns personagens reagem com ressentimento, rancor individual que se encaminha no abandono da família – este é o caso de Rosenda, a filha mais velha, a primeira a fugir com um namorado para o desgosto de Sá Josefa. Outros reagem à revolta através do riso – este é o caso da filha Albertina, personagem particularmente interessante em sua forma de encarar o trabalho pesado na fábrica, o assédio moral de patrões e o relacionamento com os homens. O seu fim, porém, se assemelha ao de sua irmã mais velha, com o agravante: mesmo tendo sido sempre cética em relação ao amor, apaixona-se, é violada, abandonada e apenas lhe resta a prostituição.

Pedro, o filho homem, é uma pessoa calada e fechada em seu mundo. Trava amizade com um intelectual que lhe introduz textos de Lênin e se junta a grupo que, pela primeira vez, organiza uma greve geral na capital do Sergipe – seu destino é a prisão, após a traição de advogado pessoalmente simpático à causa dos operários, mas ligado organicamente ao Estado.

A desagregação crescente e gradual dos corumbas conflui para que Sá Josefa e Geraldo tenham de perceber(e sentir) os efeitos perversos da vida na cidade e a derrocada dos seus sonhos. Todos os filhos se vão, só restam os pais. Não vamos dizer o que ocorre finalmente com o casal, evidentemente.

Uma passagem: a reação dos patrões

“As fábricas sentiram, então, toda a gravidade do perigo. Esqueceram questões de concorrência, que as havia afastado desde muito, e passaram a deliberar como um só corpo, unidas e solidárias. As suas diretorias, incorporadas, foram até a presença do chefe da polícia, que prometeu tomar as mais severas providências”.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O Mundo do Socialismo - Caio Prado Jr.



Resenha Livro #6 - Caio Prado Júniro - O Mundo do Socialismo Ed. Brasiliense


Entre a Utopia e a História

O Mundo do Socialismo é obra pouco comentada e debatida do autor de Formação do Brasil Contemporâneo (1943) e História Econômica do Brasil (1945). O Ensaio foi lançado em 1962 e corresponde a uma síntese da experiência de Caio Prado Júnior em viagem de dois anos pela URSS e China Popular. Uma razão para o ostracismo do livro pode ser o seu relativo perecimento frente aos acontecimentos que, a partir do final dos anos 60, foram sinalizando de maneira mais evidente contradições do mundo do socialismo: o autoritarismo político viabilizado pela não ocorrência plena da socialização produtiva; o processo de burocratização; a restauração gradual do capitalismo de mercado – Glasnost e Perestroika (1985) e colapso formal da URRS (1991).

Identificamos em algumas passagens certa previsão de futuro (implícita em todo livro) que não se concretizou: a generalização do socialismo em nível mundial. Assim, os países do mundo socialista vão sendo apresentados como parte de uma marcha histórica inevitável pós-capitalista.

Um leitor apressado poderia desde já ir descartando as teses de Caio Prado ao não levar em consideração o universo de escolhas e informações daquele escritor naquele momento da história. E mais: as previsões partem da convicção de um intelectual e ativista marxista num contexto de batalha de ideias (Guerra Fria) e dentro de um momento em que ainda há, o âmbito de expressiva parcela do movimento socialista internacional, a percepção de que o que se passava na URSS sinalizava de fato um futuro pós-capitalista, a construção de um novo mundo, sob novas bases econômicas, políticas e culturais.

Pois é dentro deste quadro de enfrentamento e disputa de ideias que a obra pode ser interpretada e resgatada para atualidade. O Mundo do Socialismo é diferente de um memorial de viagens. A intenção do autor – já sinalizada logo no início do prefácio – é descrever de forma panorâmica como os países do mundo socialista vão encontrando soluções concretas para os problemas da liberdade, da igualdade social, da democracia e da marcha ao comunismo. Para isto, Caio Prado Jr. vai se servindo daquilo que vê para, de maneira comparativa, estabelecer em que aspectos o socialismo vai encaminhando uma nova sociedade em contraponto ao capitalismo.

A tônica anticapitalista do ensaio tem bastante atualidade: o significado do direito, estado e liberdade no âmbito do capitalismo são desconstruídos, assim como as teses (também atuais) que procuram isolar a alternativa socialista: sua "ineficácia prática", seu lado supostamente contrário à “natureza humana”, seu aspecto "autoritário", etc. No que se refere às experiências do socialismo, a sua defesa teórica perpassa a obra e vai além da experiência soviética: o objetivo não é o do julgamento histórica daquela experiência, mas de uma proposta de interpretação do mundo do socialismo, sem qualquer ilusão de neutralidade e levando em consideração prática políticas testemunhadas pelo autor.

Liberdade e Igualdade

A liberdade e igualdade no capitalismo surgem como uma peça de ficção e, através da confrontação da liberdade e igualdade praticadas no mundo do socialismo, Caio Prado Jr. vai dialogando e debatendo com os argumentos anti-soviéticos. No capitalismo, a liberdade é formal e se conforma no sentido de viabilizar a livre negociação de compra e venda da força de trabalho. A liberdade é individual e se encerra na liberdade alheia: ocorre que, numa sociedade desigual e dividida entre patrões e trabalhadores, a liberdade de cada um vai variar de acordo com a situação do indivíduo frente aos meios de produção. De modo análogo, a igualdade também é, no capitalismo, apenas formal, incide sobre uma personalidade abstrata e não vinculada às condições concretas da vida.

As saídas para o problema da liberdade e da igualdade no mundo do socialismo partem da diferenciação teórica dos dois modos de produção: a propriedade dos meios de produção. A socialização implica em um novo tipo de liberdade, em que os indivíduos deixam de se confrontar uns aos outros, para (a liberdade) se afirmar pela vontade geral: é condição para a plena liberdade a ocorrência da igualdade e o interesse coletivo vai sendo confundido com os interesses individuais conforme se processam a socialização da economia e da política, mudança de valores e culturas, etc. Finalmente, o trabalho assume um papel central na consolidação da nova sociedade igualitária: perde seu aspecto de mercadoria e assume um caráter ético, é destinado a interesses da coletividade da qual cada indivíduo participa e aufere todas vantagens da vida.

Evidentemente, Caio Prado Jr. não funda teorias da liberdade e igualdade no livro. O resgate destes temas pelo autor, de maneira didática, pareceu-nos ser um dos pontos altos do livro. A reconstrução de utopias e novos tipos de sociedade parte deste confronto de idéias, que não só vai desideologizando as premissas do capitalismo, como sinalizando, ainda que parcialmente e de forma limitada às condições históricas, a forma como se daria o socialismo e a utopia comunista. Trata-se de uma tarefa central na luta contra-hegemônica atual: a reconstrução do sonho de sociedades pós-capitalistas que superem tudo o que aparenta ser "naturalizado" e sem história.

Contrapartida

Evidentemente, uma análise mais detalhada de um Mundo do Socialismo não pode furtar-se a uma crítica radical do stalinismo e do ocultamento pelo autor (não sabemos se consciente ou não e em que medida) de contradições referentes às perseguições políticas dentro do campo socialista, ao personalismo político, ao problema da heterogestão dos meios de produção, ao fortalecimento e centralização do aparato estatal em detrimento do poder local (tese não reconhecida pelo autor, que, pelo contrário, vê sinais do definhamento estatal), etc. Esta dupla dimensão - da utopia socialista em sentido mais geral e da história da revolução russa, com todas as contradições que escapam ao juízo de Caio Prado Jr. – é inevitável quando se lê textos de personagens engajados na história. Procuramos aqui apenas propor a leitura da obra chamando atenção para aquilo que ela tem de atual e sinalizando um justo acerto de contas não só com o Mundo Do Socialismo mas com todo o pensamento caio pradiano.

Sínteses

Caio Prado Jr. escreve seu livro na condição de um viajante que procura enfrentar a mistificação promovida pela direita em torno do mundo do. Talvez, o fato do olhar partir de um viajante, alguém exterior àquele processo, possa ter contribuído para o que se pode chamar de “erros da análise”, “excesso de otimismo”, “ingenuidade”, etc. Ainda, a firmeza com que defende a experiência daquele processo e a forma como procura debater direta e francamente com os adversários do socialismo – a narrativa remete mesmo a uma peça de argumentação de um advogado de defesa do socialismo – faz do Mundo do Socialismo ainda uma boa ferramenta de luta. Por um lado por sua atual denúncia do capitalismo. Por outro como boa descrição e análise das linhas gerais do socialismo e do resgate de utopias. Já viria em boa hora uma nova edição desta obra e a sua redescoberta.

Uma passagem final

“Não se justifica assim qualquer atitude de prevenção e hostilidade de princípio contra o mundo do socialismo, de cuja rica experiência histórica nos devemos necessariamente valer. Não para servilmente a copiar, e sim para aproveitá-la convenientemente. Tanto mais que entre as grandes lições dessa experiência estão aquelas que nos permitirão evitar os escolhos em que esbarraram, como tinham de esbarrar, os pioneiros e a vanguarda do socialismo, obrigados como foram a desbravar um terreno ainda indevassado e virgem. (...) É nesse sentido que orientei minha viagem pelo mundo do socialismo. Penso que se todos aqueles que julgam necessária a transformação do mundo em que vivemos, e a instauração de novas formas de vida social e de convivência humana libertas das mazelas do capitalismo, adotasse o critério de procurar no mundo do socialismo uma fonte de experiências a fim de as adaptar convenientemente aos lugares onde vivem e atuam, as questões hoje pendentes e que tão gravemente afetam a vida de quase toda a humanidade incluída no mundo capitalista, encontrariam soluções muito mais fáceis, seguras e rápidas”
Caio Prado Jr. – O Mundo do Socialismo

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

“O Que Fazer?" V. I. Lênin





Resenha #5 - "O que Fazer" - Lênin - Ed. Expressão Popular

Obra e Autor

Discutir Lênin significa avaliar tanto os aspectos teóricos de seus textos quanto o significado histórico de seu ativismo político. Necessariamente, os dois aspectos não aparecem de forma isolada: na verdade, a teoria em Lênin vai sinalizando as tarefas dos socialistas russos nas diversas etapas da luta e da revolução: nos embates contra a autocracia tzarista, na disputa teórica dentro do POSDR, na luta mais geral pela revolução e na direção política da construção do socialismo. Há ainda outro aspecto complicador: teoria e prática acabam necessariamente sendo avaliadas – hoje – levando-se em consideração os resultados da revolução russa, em especial o problema da burocratização, ausência de socialização eficaz da gestão econômica, o autoritarismo e repressão política. Neste sentido, discutir uma obra de Lênin (pela esquerda) é sempre dialogar com vertentes mais ou menos vinculadas às tradições daquela experiência histórica ou não. Também significa pensar sobre em que aspectos as formas de organização política dadas pelo leninismo contemplam hoje as formas de luta anticapitalista: o que ainda subsiste na teoria e na prática política dos socialistas em Lênin.

Este aspecto mais prático e ativista do pensamento de Lênin é bastante expressivo em “O que Fazer”. Nesta obra, escrita entre 1901-1902 em pleno regime Czarista autocrático na Rússia, Lênin trava embate dentro do Partido Social Democrático reivindicando uma intervenção qualificada, menos artesanal e mais profissional do partido, com um programa socialista e revolucionário para toda a Rússia, a organização de um jornal amplo, a politização de todas as lutas e a conformação de direções políticas competentes. A Crise da Social Democracia na Rússia decorre da ausência de bons quadros e de teoria revolucionária: há, a partir daqui, as críticas ao espontaneísmo e às vertentes terroristas representadas pelo jornal “Svoboda” e pelo “economicismo” ou “trade-unismo” de grupos como “Rabotchie Dielo”.
“O que Fazer” é obra da fase ainda jovem de Lênin, com apontamentos de tarefas gerais que, segundo Florestan Fernandes, significaram transformar, pela primeira vez, “o marxismo em processo revolucionário real”.

Duas questões aparecem como ponto de partida para uma discussão sobre o significado da obra. A primeira e mais óbvia tarefa é circunscrever os limites do texto ao contexto histórico em que foi escrito, sem atualizações mecânicas e, principalmente, sem considerar os apontamentos de Lênin como um “livro de receitas” de organização política. Não se pode falar em uma técnica política leninista, mas, antes, em exemplos práticos de como o marxismo vai se manifestando enquanto prática política pela intervenção de Lênin.

O segundo problema é, ao contrário, ir buscando o que há de atual e universal nas teses políticas “d’O que fazer”, o que, entendemos, significa menos as teses por elas próprias e mais o seu sentido naquelas circunstâncias, ao aspecto mais emblemático e exemplar das teses. Assim como Lênin em seu tampo, cabe aos socialistas da América Latina formular uma teoria revolucionária de seu tempo, “propagar o socialismo revolucionário nesses setores da sociedade (trabalhadores e povo) e, com o amadurecimento da experiência política, tentar-se o equacionamento do “por onde começar”. (Florestan Fernandes).

As críticas ao economicismo e ao espontaneísmo

Economicismo (ou trade-unismo) e espontaneísmo referem-se às tendências internas do POSDR que se diferenciam do grupo Iskra (do qual Lênin é o porta-voz) por sua intervenção centrada ora na luta econômica ora no trabalho artesanal, sem um horizonte claro e cotidiano de afirmação do socialismo e de uma profissionalização militante. A centralidade das greves e das lutas por melhorias econômicas por elas próprias não surtirão efeitos sem uma politização externa ao movimento correspondente ao partido social democrático. Neste ponto as críticas também se direcionam ao chamado espontaneísmo, a idéia de que lutas independentes são capazes de se generalizar num sentido revolucionário sem coordenação geral. Neste aspecto Lênin é enfático: da consciência em si (reforma) para a consciência para si (revolução), o movimento necessariamente precisará de teoria e de uma organização fortemente preparada, centralizada e que conte com confiança política (sem “falsos democratismos”) para incutir neste movimento uma luta geral contra a ordem. A linha de raciocínio de Lênin é a de que o socialismo enquanto teoria é exterior à classe operária russa daquele momento.

A contundência com que Lênin vai debatendo com as variações economicistas e espontaneístas do movimento revela sua confiança na viabilidade da revolução (mesmo numa conjuntura em que isto parecia pouco provável, daí sua famosa afirmação de que “é preciso sonhar”.) Revela também a caracterização dessas vertentes como oportunistas.

A crítica ao trade-unismo já remete ao que será a linha política social democrática da 2ª Internacional. Lênin defende que toda e qualquer manifestação de opressão e violência (dentro e fora da esfera do trabalho local) devam ser objetos de politização. A Luta econômica em Lênin deve estar subordinada à luta pelo socialismo, ao contrário do entendimento de que a luta econômica é uma “etapa” para a luta política, ou que as lutas econômicas por elas próprias generalizam-se em luta revolucionária.

Alguns aspectos reivindicados pelas organizações revolucionárias do espontaneísmo pecam por não levar em consideração a difícil correlação de forças frente ao Estado autocrático: não se pode intervir a nível geral com formas de trabalho militante “artesanal”. Sem preparo teórico e forte organização, os socialistas seriam presas fáceis da repressão do Estado. O mesmo vale com algumas discussões entendidas como “principistas” – o falso democratismo de eleições para cada execução de cada tarefa dentro do partido não deve sobrepor-se a uma relação de confiança e solidariedade política, dentro, mais uma vez, de um quadro de intervenção política ilegal, dentro de um regime autocrático em que qualquer vacilação ou erro significam prisão e morte. Muito resumidamente, estas são algumas das críticas de Lênin dirigidas aos demais setores do Partido.

Uma provocação

Algo que vai sendo mais ou menos permanente nas discussões do movimento socialista daquele período é a relação entre consciência e organização política – as chamadas condições subjetivas e objetivas da revolução e as tarefas do partido revolucionário. Se por um lado reconhecemos ainda hoje a importância da teoria como forma de direcionar as organizações e fazer com que elas incidam sobre os problemas gerais dos trabalhadores e do povo, politizando-os, não entendemos ser a teoria nem construída nem difundida de forma exterior à classe ou mesmo introjetada de fora para dentro.

Em Lênin há a necessidade da teoria e de um trabalho intelectual “externo” ao movimento operário, que é incapaz de espontaneamente conduzir a luta. Num novo contexto do capitalismo em que há a maior qualificação e complexidade do trabalho no âmbito do toyotismo, passa a ser necessário discutir a real atualidade desta tese. Aliás, as novas formas de organização do trabalho foram apropriando e reproduzindo exatamente formas de resistência autônomas dos trabalhadores num contexto de lutas anticapitalistas (greves, tomadas de fábricas, movimentos sociais e estudantis, etc.) dentro de ciclos de mais valia relativa (João Bernardo). Se em Lênin nós percebemos uma forte ênfase da teoria à prática revolucionária, passamos também a reconhecer a importância da prática à teoria revolucionária, levando em consideração as formas independentes de resistência, o saber e as práticas populares, etc. Conciliar o trabalho de base com radicalidade política e capacidade de incidência geral e organizada sem implicar nas vertentes economicistas/reformistas é o desafio inconcluso.

Ainda assim...

Porém, contemplando Lênin, é necessário desmistificar o trade-unismo que se serve, ainda hoje, do eixo político “democrático-popular” para, conscientemente ou não, desenvolver a política de reformar o capitalismo.

“É Preciso Sonhar”

Responde Lênin àqueles que, julgando-se marxistas fiéis, não reconhecem possibilidades de construção do socialismo na Rússia naquelas condições históricas. A ocorrência do místico e da utopia também está presente no pensamento do autor, ainda que muitas vezes vão prevalecendo os aspectos mais “duros” da sua narrativa (a denúncia, os embates, a ironia, etc.). Reproduzimos uma passagem longa, mas bastante expressiva, em que Lênin vai descrevendo a situação de seu pequeno grupo de revolucionários frente à fragilidade do movimento e à conjuntura difícil, ainda assim resistindo e lutando.


“Marchamos em pequeno e unido grupo por um caminho escarpado e difícil, de mãos dadas firmemente. Estamos rodeados por todas as partes de inimigos e temos que marchar quase sempre debaixo de seu fogo. Estamos unidos por uma decisão livremente tomada, precisamente para lutar contra inimigos e não cair, com passos em falso, no pântano vizinho, cujos moradores nos censuram desde o início por nos separarmos num grupo à parte e por escolhermos o caminho da luta e não o da conciliação. De imediato alguns dos nossos começam a gritar: “Vamos para o pântano!, E quando se tenta envergonhá-los, replicam: “que gente tão atrasada vocês são! Como é que não se envergonham de nos negar a liberdade de convidar-vos a escolher um caminho melhor”!. Sim, senhores, sois livres não só de nos convidar, senão de ir aonde melhor vos aparecer. (....) Neste caso, soltai as nossas mãos, não nos agarrai, nem manchai a grande palavra liberdade, porque nós também somos “livres” para ir aonde nos convier, livres para lutar não só contra o pântano, como também contra os que se desviam para ele”!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

São Paulo - Sociedade Anônima

Resenha Filme #2 - São Paulo Sociedade Anônima - Direção: Luís Sérgio Person - São Paulo - 1965





O Filme de Luís Sérgio Person retrata a São Paulo de meados do séc. XX e aspectos de nossa modernidade inconclusa. O elenco conta com Walmor Chagas e Eva Wilma

SINOPSE

Carlos é um jovem Paulistano de classe média e protagonista da história. Vive numa cidade em que se nota consolidação do ritmo industrial, com a instalação de montadoras de automóveis, incremento da oferta de emprego e crescimento da população. Sua vida pessoal divide-se entre o envolvimento com mulheres diferentes e o trabalho na indústria de carros: inicialmente como fiscal e posteriormente como gestor.

Certa insatisfação permanente é perceptível em Carlos, mesmo depois de casado, com filhos e estabilidade familiar. Na verdade, a insatisfação cresce e é produto de sonhos frustrados, de expectativas que remetem ao senso comum de um homem de sucesso dos anos 1960. No trabalho, Carlos atua em parceria com empresário que super-explora seus funcionários, sonega impostos e corrompe fiscais do trabalho. O sucesso profissional e financeiro da classe média viabiliza-se pela espoliação de trabalhadores em conluio envolvendo empresários e Estado. A família e o casamento também vão sendo desconstruídos, seja pelo seu aspecto de rotina maçante seja através da traição.

A contradição decorrente das expectativas ou dos sonhos de uma sociedade de consumo e sua experiência prática levam Carlos à fuga: outros personagens reagem às contradições com o suicídio, a corrupção ou a resignação. Se o ideal do American Way Of Life é o horizonte da classe média paulistana, este mesmo ideal vai levando o protagonista ao abismo. O sociedade de consumo vai ruindo como um castelo de areias.

Destacamos a bela fotografia do filme, com boas imagens da São Paulo dos anos 60. Podemos ver o comércio nas regiões do centro (muito parecido com hoje em dia), a corrida de São Silvestre realizada durante a noite de ano novo, o trânsito de carros e pessoas no Viaduto do Chá, exposição das regiões ocupadas pelas montadores ao longo das rodovias de acesso à cidade (áreas, até então, sem adensamento urbano). Surgem as festas e as músicas cantadas nas festas de ano novo e o uso do lança perfume no carnaval.


São Paulo S/A e possibilidades de Análise Histórica

A obra data de 1965 e retrata ou narra a vida de personagens que têm suas experiências mediadas por aquele contexto histórico: a São Paulo do desenvolvimento industrial, o advento de novas tecnologias, industrialização, mudanças no campo da cultura e do comportamento.

Identificamos aqui um duplo sentido de análise histórica: trata-se em primeiro lugar de refletir sobre o que são e o que significam as mudanças decorrentes da modernização capitalista tardia brasileira (o que significa atentar-se para as imagens da cidade, as tecnologias de comunicação e transporte, as diferenças de gênero, a estrutura da família,etc.); trata-se em segundo lugar de analisar/refletir sobre a percepção que o diretor Luís Sérgio Person tem daquela conjuntura: como, naquele tempo de transformações, o filme retrata seu respectivo momento histórico (o que significa buscar compreender qual é o sentido que em meados do séc. XX se dava à consolidação do capitalismo industrial e à sociedade de consumo, o que parece ser, aliás, uma intenção importante do autor). Em síntese, assistir filmes como São Paulo S/A significa tanto reflexão sobre a história da São Paulo dos anos 1960 quanto sobre a forma como nos anos 1960 São Paulo interpretava a si. Daí o seu sentido especial, 50 anos depois.


Novas Tecnologias e Modernidade Aparente

Em todo filme, há a preocupação do diretor em retratar São Paulo levando em consideração as mudanças pelas quais a cidade passa com o desenvolvimento industrial. Os carros, os viadutos, o fluxo intenso de pessoas, o telefone, a televisão e o comércio vão sinalizando uma cidade em vias de desenvolvimento econômico, com os respectivos impactos no mundo da cultura e da sociedade.

Como todo período de transformação, identificamos elementos de progresso e atraso convivendo e estabelecendo contradições a partir das quais a narrativa se serve para descrever os limites da modernidade brasileira, ou, em particular, paulistana. Por exemplo, se a indústria de carros gera o desenvolvimento econômico que impulsiona uma sociedade de consumo, por outro lado, subsiste a super precarização do trabalho – retratada de forma simbólica numa montadora em que trabalhadores não registrados são escondidos da fiscalização no banheiro.

Podemos, neste sentido, falar em Modernidade Aparente ou inconclusa levando em consideração que o desenvolvimentismo e o progresso tecnológico retratados no filme não são acompanhados de mudanças estruturais que incidissem sobre o problema da igualdade social. A modernização capitalista brasileira é bastante conservadora (mesmo em relação à Europa, onde há revoluções burguesas) e mantém, lado-a-lado, elementos do progresso e do atraso: o acesso ao consumo por parte da Classe Média e a espoliação dos trabalhadores; a afirmação de leis trabalhistas, fiscalização do Estado nas relações de trabalho e a sobrevivência da corrupção, do conluio entre capitalistas e os fiscais públicos; mudanças no papel da mulher com sua maior participação no mercado de trabalho e a manutenção da centralidade do homem nas relações de família; a formação de uma classe média liberal e a sobrevivência do racismo e do machismo em suas mais diversas manifestações.

Neste ponto, entendemos serem as mudanças históricas retratadas por Luís Sérgio Person referentes à espécie de reestruturação produtiva do capitalismo, que promove transformações aparentes sem implicar em mudanças estruturais, que carrega, em cada período histórico e de forma dialética, elementos do passado e os germes ou as condições para mudanças futuras dentro do presente. E se falamos aqui em modernidade inconclusa, não entendemos nem por um lado a existência atual de "pós-modernidade" (como falar em "pós" algo não concluso?) nem por outro lado à possibilidade de encerramento da modernidade no âmbito do capitalismo.


Algumas idéias sobre trabalho, alienação e São Paulo S/A

São Paulo S/A fala do desenvolvimento industrial do Brasil dos anos 1950-60. A super-exploração do trabalho a partir de conluio entre empresas e Estado (que admite o não registro dos operários e a sonegação de impostos) viabilizaram o enriquecimento de uma nova classe de gestores que usufrui do desenvolvimento, enriquece e promove uma sociedade de consumo. O desenvolvimento do consumo decorrente da expansão industrial encerra a cadeia produtiva, implicando na criação de mais capital e na consolidação de novos mercados de trabalho alienado.

Ocorre que São Paulo S/A volta-se antes para as reações da classe média paulistana (gestores e empresários) às mudanças decorrentes da reestruturação produtiva do capitalismo. O que podemos identificar aqui é uma certa crise de sentidos, dificuldade de conciliar a plena satisfação da vida frente às contradições decorrentes de um mundo em transformação. As promessas de uma vida de felicidade absoluta enunciadas por anúncios de propaganda e pela importação do american way of life confrontam-se com a insatisfação da vida familiar e profissional.

Neste aspectos, vamos sentindo como se a questão da alienação assumisse um caráter mais universal, como se estivesse vinculada à experiência necessariamente frustrante de uma sociedade baseada numa relação fetichista com relação às mercadorias e carente de sentidos humanos. Se pensarmos que hoje, o consumo de drogas ilícitas e antidepressivos atinge emblematicamente EUA e Europa Ocidental, percebemos que, neste sentido em que abordamos a idéia de alienação, São Paulo S/A possui grande atualidade...

Recomeçar, recomeçar de novo...

A importância de São Paulo S/A reside na preocupação do diretor em identificar transformações, mudanças históricas viabilizadas pela nova etapa do capitalismo brasileiro – industrial, urbano e moderno. A saída encontrada por Carlos frente à sua insatisfação (ou “loucura”) é a fuga, ainda que provisória. A cidade o traz de volta por vias oblíquas (no caso, o caminhão em que pega sua carona, retorna à cidade de que ele quer escapar). Carlos fala em recomeçar, recomeçar de novo: ao fundo há imagens de fluxo de pessoas nas ruas da capital. Pode-se interpretar esta passagem final sob diversas formas. Não optamos entender o recomeço como algo que implique numa espécie de “fim da história”, como se as possibilidades humanas estivessem circunscritas ao modelo de cidade São Paulo/SA e à sociedade de consumo. Podemos entender o reinício como um novo ciclo que abre possibilidades para transformações, não se podendo, porém, "fugir" ou escapar da história. Os homens fazem a história, mas não a fazem como a querem, a fazem de acordo com certas condições históricas.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Aelita – A Rainha de Marte

Resenha Filme#1 - AELITA - A Rainha de Marte - Yakov Protazanov
Rússia - 1926





Obras de arte assumem significados políticos nem sempre correspondentes às intenções mais ou menos conscientes do seu autor: os sentidos sempre lhe escapam à medida que as circunstâncias históricas, inevitavelmente dinâmicas, vão imprimindo diferentes significados aos eventos e personagens retratados em filmes, músicas, textos literários. Processa-se também no campo das artes certa batalha de idéias. Interpretar um filme russo de 1926 (quando ainda são vivos o enfrentamento dos novos desafios abertos pela revolução de 1917) quer dizer ainda hoje, 84 anos depois, expressar visões de mundo e posicionamentos também políticos num contexto de disputa (ou consolidação) de hegemonias.

Aelita – A Rainha de Marte tem algumas particularidades que o fazem ainda mais aberto às reflexões e ao embate de idéias: o enredo, que aborda uma viagem fantástica de um engenheiro russo à lua onde dirige uma revolução proletária; a plasticidade das imagens e a riqueza dos detalhes nas roupas dos habitantes de marte com os recursos de um filme dos anos 1920; o fato de ser este considerado o primeiro longa-metragem de ficção científica da história do cinema, ainda mesclando elementos do cinema político soviético e do humor.

A história

Aelita é uma adaptação de livro homônimo de Leon Tolstoi. Los é um engenheiro dedicado ao trabalho e aos cuidados de sua mulher Natasha. A vida do casal entra em turbulência diante do assédio de Natasha por um vigarista pequeno- burgues que vive de pequenos golpes. A descrição dos anos imediatamente posteriores à revolução sugere o sacrifício de muitos em contraponto à corrupção de poucos: o individualismo de Natascha cede à sedução do vigarista burguês, acompanhando-o a um baile de luxo clandestino. Levado pelo impulso da desilusão amorosa, Los constrói uma espaçonave e parte para Marte – seu centro de interesses sai portanto do universo doméstico.
O mesmo ocorre com o seu ajudante Gusev, soldado combatente da Revolução que, atordoado pelo tédio da vida familiar, aceita imediatamente aderir à aventura.

Rainhas fazem a revolução?

Aelita é a rainha de Marte: observa através de um telescópio superpotente a Terra e apaixona-se por Los. Enquanto isto, em Marte o poder político – que envolve reis e rainhas e um conselho de velhos – força os trabalhadores ao isolamento no subsolo marciano. Este é o destino dos terráqueos capturados e com eles, Aelita. A mobilização é conduzida por Los e Gusev: algumas cenas muito bonitas de trabalhadores marciano rompendo com suas correntes de ferro remetem ao universalismo da luta dos oprimidos. Por outro lado, notamos que a trilha neste momento – assim com em outras passagens – não é a do hino internacional dos trabalhadores, mas o hino da Rússia.

Aelita, rainha de Marte, toma parte da luta e chama para si a responsabilidade de dirigir a luta do proletariado marciano. Rainhas podem conduzir revoluções? Deixamos de responder a pergunta, por suposto, para quem ainda não viu o final do filme.

Discussões

A percepção do autor sobre os problemas da Rússia nos anos pós-revolução está longe de ser equivalente ao propagandismo, favorável ou contrário aos bolcheviques. Identificamos, sim, identidade entre a história de Los, Natasha e Aelita e à revolução, especialmente em seus aspectos mais subjetivos: psicológicos e simbólicos. As relações entre a vida familiar e a intervenção política através do trabalho e da aventura espacial, a crítica ao excesso de ciúmes do homem e à super-proteção feminina (expressos na esposa de Gusev) dizem respeito à formação de novos valores, sugerem mentalidades transformando-se aceleradamente. Lênin dizia que na Rússia revolucionária a consciência do povo avança 20 anos em 20 dias. Deixando de lado excessivo (e compreensível) propagandismo da mensagem, Aelita talvez seja uma boa fonte para se identificar a história das mentalidades numa conjuntura de radicalização política. Neste ponto também é possível reconhecer a beleza da obra: um filme sobre política, feito em um e para um contexto revolucionário que, outrossim, aborda temas mais ou menos universais como o amor e a curiosidade humana sobre o que há no universo. Não há socialismo e revolução sem empatia humana.


Yakov Protazanov




Apesar da longa lista de filmes, há poucas informações a respeito do diretor aqui no Brasil, mesmo na internet. Aliás, após a extinção formal do capitalismo estatal soviético, a abertura ao mercado mundial tem significado maior interesse e acesso às produções culturais da Rússia. Aelita, por exemplo, foi inicialmente aceita e posteriormente censurada na URSS: seu lançamento no Brasil pela Continental data dos anos 1990.

Sobre o diretor, Yakov Protazanov é conhecido como um dos pais do cinema russo. Produziu filmes antes e depois da revolução, tanto na Rússia Tzarista quanto na Rússia bolchevique. Após a revolução, segue para a França e só retorna à Rússia em 1923 – um ano depois faria o seu filme mais famoso, Aelita. Morreu aos 65 anos em Moscou.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Algumas anotações sobre Estado e lutas sociais em João Bernardo



Resenha #4

Sobre o Autor

João Bernardo é um ativista e intelectual autodidata português com certa influência no pensamento/movimentos autonomistas do Brasil. Filia-se à tradição do comunismo de conselhos, sendo um crítico não só do leninismo, mas de certos aspectos mesmos das ideias de Marx. Dois elementos importantes na sua obra: a idéia da teoria das classes dos gestores, classe distinta de burgueses e proletários (burguesia e gestores se apropriam da mais valia, porém, de formas distintas, os primeiros a partir da propriedade privada individual e os segundos a partir da participação em órgãos apropriadores coletivos, incluindo o Estado); a percepção do Estado como parte da esfera da produção, noção que dá aporte para uma crítica radical do reformismo e da inviabilidade das formas “passivas” de luta.

Conflitos e Formas de Resistência no Capitalismo

Para João Bernardo, compreender os conflitos sociais significa olhar para as relações de trabalho, ou, mais especificamente, para a indeterminação entre o seu valor de remuneração e a geração do valor excedente – esta indeterminação no grau de exploração do trabalho tanto é necessário para a exploração capitalista quanto cria condições para os conflitos a partir dos quais surgem lutas. A apropriação da mais valia pelos patrões determina o que João Bernardo coloca como “relações sociais enquanto relações de conflito”.

A centralidade do trabalho e dos aspectos da produção, aqui, aponta para o tipo de intervenção política reivindicada por João Bernardo. A superação do capitalismo vai além da superação das relações de propriedade, e muita mais além ainda do que a simples tomada do poder político do Estado: superar o capitalismo deve significar incidência sobre campo onde se processam os conflitos sociais, a saber, as relações de produção. As lutas contra o capitalismo são retratadas no paralelograma:

-----------------Lutas Ativas
Lutas Individuais------------Lutas Coletivas
-----------------Lutas Passivas

As lutas classificam-se a partir da combinação entre duas das formas das lutas. Ativas são lutas de caráter anticapitalista ao violarem “as normas da disciplina social”. As lutas passivas se inserem no âmbito do controle legal/institucional. Formas individuais de resistência, tal qual o ócio/alcoolismo (forma passiva) ou a sabotagem (forma ativa), ou coletivas como a greve controlada pela burocracia (forma passiva) ou pela tomada independente das fábricas (forma ativa), demarcam transformações da insatisfação social decorrente da natureza conflituosa das relações sociais.

O modelo não parece ter um caráter ilustrativo ou “esquemático” – o autor chama atenção para as transições entre as diversas formas das lutas, para o dinamismo ou a “plasticidade” das formas de resistência e, em particular, como o capitalismo é eficiente em sua apropriação dos conflitos. O modelo serve para perceber como as formas de luta de processam de forma dinâmica e concorrentes aos ciclos de reprodução do capitalismo.

Ordem, Revolução e Lutas

“(Entendo) Ordem como um quadro em que os conflitos, ao se inserirem nas estruturas sociais vigentes, acabam por reproduzi-las. (...) Revolução como um quadro em que os conflitos criam estruturas sociais novas, antagônicas ao capitalismo. (...) A revolução dentro da ordem é o fascismo. (...) A ordem dentro da revolução é a burocratização das lutas”.

Assim, as lutas não estão tão relacionadas apenas ao “nível de consciência” dos explorados, parte, aliás, das justificativas dos dirigentes burocráticos para a desmobilização. As lutas são expressões de relações permanentemente conflituosas e vão assumindo diferentes formas conforme sua incidência contrária ou favorável à reprodução do capital. As relações sociais de novo tipo, ou um avanço no nível de consciência estabelecem-se apenas a partir das formas coletivas e ativas de luta, quando novas relações sociais antagônicas ao capitalismo – a solidariedade e o coletivismo – são formadas. Na verdade, os novos valores acabam sendo também condições para as lutas ativas e coletivas.

A provocação ao leninismo- marxismo é explícita e sarcástica em João Bernardo: “É curioso observar que os marxistas, embora considerem que não existem idéias sem uma base social própria, não admitem que as concepções do comunismo decorram de um quadro social já existente. Os marxistas têm de preservar o seu papel de vanguarda iluminada e, sobretudo, iluminante”. O que João Bernardo quer dizer e qual é a implicação desta crítica ao vanguardismo? (E, aqui, caberia pensar se o problema do vanguardismo é algo relacionado antes a certos marxistas do que a Marx).

São nas lutas anticapitalistas com ampla participação e autogestão que se criam novas condições para uma sociedade sem Estado e sem classes. Ocorre que, ainda segundo João Bernardo, as lutas sob a forma “coletiva” e "ativa” pressupõem relações sociais de novo tipo, genericamente colocadas como solidariedade e coletivismo. Comunismo ou sociedade sem Classes deveriam refletir as experiências autogestionárias e autônomas dos trabalhadores, tomando as fábricas e criando suas formas de atuação política via conselhos. A dificuldade – reconhecida, aliás, pelo autor – é a de se saber como viabilizar a generalização das novas relações em níveis nacionais e mundiais.

Uma última questão sobre a luta como parte dos conflitos sociais, que são conflitos das relações de produção. Como vimos, João Bernardo reivindica as lutas anticapitalistas como aquelas antagônicas ao modelo de geração de valor no capitalismo. Não há experiência fora do capitalismo havendo relações de produção capitalista: heterogestão e ausência de relações sociais de novo tipo. Uma outra perspectiva se dá a partir da proposta de diferenciação entre Capital e Capitalismo em Mészaros: o capital antecede o capitalismo, sendo este uma de das formas possíveis de realização do capital. O que João Bernardo e outros autores classificariam como Capitalismo de Estado, em Mézaros significa sociedades pós-capitalistas que não conseguiram romper com a identificação conceitual entre capital e capitalismo, não se superando o “sistema metabólico” do capital. As duais visões reforçam a saída anticapitalista de caráter revolucionário, com implicações importantes no debate Estado x Revolução.

Vitórias parciais: Conquistas ou concessões?

Os Ciclos de mais-valia relativa dizem respeito à natureza ideológica das reivindicações mais imediatas dos trabalhadores. Seguindo o esquema proposto por João Bernardo, nas lutas passivas, enquadradas na lógica do capitalismo, as reivindicações não se chocam com as relações de produção e tornam-se parte de” ciclos” de transformação aparente do capitalismo, de maneira a estabelecer a aceitação formal das bandeiras e incrementar ainda mais a exploração. Os ciclos de mais-valia relativa são evidenciados na luta pela redução da jornada de trabalho e aumento salarial – a contrapartida dos capitalistas é o aumento da complexidade, da intensificação e da qualificação do trabalho.

O aumento da produtividade significa a incorporação em cada produto de um menor tempo de trabalho. Já o aumento do salário do trabalhador pode até gerar uma aquisição de maior volume de bens, porém, bens produzidos em condições de produtividade crescente, de maneira que em termos de tempo de trabalho, os trabalhadores eventualmente reduzem o seu consumo ao invés de aumentar. E, afirma João Bernardo, “é porque os trabalhadores consumem uma maior quantidade e variedade de produtos materiais e de serviços, que se tornam mais resistentes fisicamente e mais instruídos, sendo portanto capazes de proceder a um trabalho mais complexo, e, assim, mais produtivo”. E, sintetizando o significado mais geral das formas de apropriação das lutas pelos capitalistas, reproduzimos uma passagem longa, porém bastante clara que dá exemplo do ciclo de mais valia relativa:

“A redução da jornada resulta na imposição de um maior tempo real de laboração, e o aumento das remunerações resulta no consumo de um menor tempo de trabalho. O segredo da capacidade demonstrada pelos capitalistas de recuperarem os aspectos mais imediatos das reivindicações laborais reside no fato de os trabalhadores se referirem sempre a valores de uso – número de horas da jornada de trabalho – enquanto os capitalistas responderem exclusivamente em termos de valor de troca – tempo de trabalho complexo efetivamente executado e tempo incorporado aos bens adquiridos”.

Uma luta pontual em que a redução laborial é acompanhada de novas formas aparentes de exploração situa-se naquilo que João Bernardo chama de ciclos curtos de mais valia relativa. Já os ciclos longos da mais valia relativa possui um tempo de processamento maior e decorrem, espantosamente, justamente das formas ativas e coletivas luta. Experiências autonomistas e independentes que expressam relações sociais de novo tipo entram em colapso pela burocratização. Importante salientar que a burocracia não nasce necessariamente de uma ação “maquiavélica” de uma direção política recuada. Não parte sempre da iniciativa de dirigentes, mas é um processo decorrente do esvaziamento das lutas – a ausência da mobilização em caráter permanente implica na burocracia e no colapso das novas relações sociais e a apropriação do capitalismo inclusive daquilo que de melhor nasceu/partiu dos movimentos independentes – criatividade, independência e modelos “inovadores” de gestão são as novas formas com que o capitalismo opera sua lógica de exploração do trabalho.

Ao pensarmos nos discursos de” empreendorismo” dos neocapitalistas, no ambientalismo empresarial ou nas novas técnicas de gerência do trabalho – trabalhadores convertidos em “colaboradores”, “associados”, “apoiadores”, etc. – identificamos um encerramento de todo um ciclo de lutas ativas e não burocráticas.Toda capacidade e talento dos trabalhadores em seus esforços pela emancipação são apropriadas como forma de qualificação e maior complexidade do trabalho. Isto além da já notória cooptação de antigos lutadores às empresas e Estado como gestores. O primeiro passo para o retrocesso que se encerra no fechamento do ciclo a favor do capitalismo é a burocratização.

Balanços Provisórios

A crítica aos processos de burocratização e a idéia de “latência” do capitalismo mesmo sobre as experiências de resistência mais avançadas, não implica, é claro, em um derrotismo nem por João Bernardo, nem pelos autonomistas, nem pelos marxistas anticapitalistas. Constata-se, sim, certa desorientação política decorrente do encerramento de um ciclo de mais valia relativa, com a ofensiva neoliberal e a saída do ” keynesianismo” de esquerda como o horizonte estratégico máximo de uma boa parcela da esquerda.

Porém, acentuam-se, neste quadro, os conflitos e as lutas também latentes nas suas mais diversas manifestações. Uma primeira conseqüência da idéia das relações sociais enquanto relações de conflito significa a afirmação permanente da possibilidade de resistência a partir das várias formas combinas de luta (individual, coletiva, passiva e ativa). Outra contribuição de João Bernardo: determinar os limites das lutas não comprometidas com um eixo antiburocrático e permanentemente mobilizador, para se criar novas relações sociais.
Passamos, finalmente, ao debate sobre Estado e Poder. Repolitizar a política de uma forma radical vai além de receitas mecânicas que estabelecem o poder político como mera superestrutura reflexiva dos fenômenos da economia. O novo grau de complexidade do trabalho aliado à intensificação de sua exploração faz como que a idéia do Estado enquanto um mecanismo mais geral do poder, vinculado às condições gerais de produção, favoreça o entendimento, por exemplo, aumento da criminalização e isolamento dos movimentos sociais no governo Lula – há necessariamente uma relação de complementariedade entre Estado e Mercado/Capital e não antagonismo, como apregoa a esquerda reformista. Marx foi o primeiro a ocupar-se de uma crítica política da economia. Como sugere João Bernardo, os incremento e maior complexidade dos conflitos (e suas apropriações via ciclos de mais valia) tornam a crítica econômica da política ainda mais necessária. Ainda que não concordemos inteiramente com sua estratégia política, o autor traz um debate fundamental para a saída do isolamento da esquerda anticapitalista.